"Café pingado"!

Quando começamos a frequentar certos lugares desconhecidos torna-se indispensável criar rotinas de toda a espécie, onde ir tomar o café da manhã, onde almoçar, onde repousar durante alguns minutos antes de reiniciar o trabalho, o que fazer durante este período e como adaptá-lo ao sabor das estações, ou seja, somos obrigados a criar mecanismos de ajustamento à nova realidade. Não é fácil, leva algum tempo, mas depois torna-se tudo mais aligeirado e, sobretudo, menos angustiante.

A manhã tinha despertado sob um frio intenso agravado pelo correr da brisa. Ainda faltavam alguns minutos para começar a trabalhar o que me deu tempo mais do que suficiente para ir a um café próximo, que está na mira de se tornar um ponto de atração. Já lá tinha ido algumas vezes, não muitas, pequeno, familiar e com padaria associada. Vi que o senhor que me atendeu se tinha apercebido de ter lá ido outras vezes àquela hora e, sorrindo, perguntou se queria um café. Disse que sim. Enquanto aguardava, ouvi alguém a meu lado, uma voz feminina, com timbre a sugerir vida ao ar livre e maltratada pelo tabaco, a pedir se lhe dava uma bica. Não entendi muito bem o pedido e aguardei que o reformulasse. Olhei-a e vi que era de estatura baixa, limpa, embora com alguns traços desgrenhados, com uma fácies sem bolsa de gordura, tipo talhada em pedra, revelando má nutrição, doença ou falta de cuidados de saúde. Foi a primeira vez que me pediram uma bica. Entretanto, o senhor do café já estava a entregar a chávena. Entreguei uma moeda de dois euros e disse para pagar a bica à senhora. Os dois olharam-se, silenciosamente, às tantas já se conheciam, e ela, determinada, estabeleceu os critérios, bem cheia e pingada, se faz favor. O funcionário vira-lhe as costas e satisfez o pedido. Sem mais delongas, pega na chávena e vai sentar-se a uma mesa, sem dizer água vai e sem ter agradecido, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Desconfio que a senhora deve ter este comportamento diário e que antes de começar as suas atividades, não imagino quais, mas muito provavelmente um dolce far niente alimentado por expedientes que deverá ir construindo ao longo do dia, vai aquele local desjejuar. Em termos de rotinas deve bater qualquer um e desconfio que não deverá sofrer de ansiedade nem nada parecido. Não sei o que terá ocorrido após a minha saída, mas, atendendo a que estava numa padaria, com o pão a entrar e a sair dos fornos, via-se perfeitamente pela porta entreaberta, deverá ter pedido a algum cliente que lhe desse pão com manteiga e, desta forma, concluir pela tomada do pequeno-almoço fora de casa a par de outras pessoas que iam saindo e entrando. Ao sair, chamou-me a atenção uma senhora bem arranjada, simpática que, acompanhada de um cavalheiro, me olhou como se me conhecesse. Também tive essa impressão, a cara era-me familiar, e, com um sorriso discreto, retribui-lhe a atenção. Depois fiquei a meditar durante uns breves instantes, será que o cumprimento foi devido a ter-me conhecido ou foi o resultado da interpelação cafeínica de que foi alvo? De qualquer modo, acabei por reconhecer que a "mendiga" deve saber muito bem o significado de rotinas e que as cumpre sem sentir o mínimo de ansiedade. Ao refletir sobre isto, consegui, embora momentaneamente, acalmar a minha ansiedade, a da falta de rotina e a da rotina do viver, uma rotina que me incomoda muito e cada vez mais.


Comentários

  1. (...)Ao refletir sobre isto, consegui, embora momentaneamente, acalmar a minha ansiedade, a da falta de rotina e a da rotina do viver, uma rotina que me incomoda muito e cada vez mais."

    Caro Professor, pressinto algum desalento! Bem sei que há motivos de sobra, tudo é cinzento, mas troquemos as voltas ás rotinas que nos incomodam...

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