"E o sol ficou feliz"!

Hoje tenho de dar por terminada uma história que comecei a escrever há três anos a propósito de uma "fotografia". Na altura pensei que ela iria ser entregue ao José Luís, que sofria de grave perturbação visual, estava quase cego, e nunca tinha visto a mãe, nem em fotografia, mas não, por um conjunto de vicissitudes não foi possível. Por causalidade, a prima, que tinha conseguido uma ampliação da única fotografia que havia em casa, foi apresentada a uma senhora acompanhada de uma menina de sete anos. Sabes quem são, perguntou-lhe a madrinha, não, não sei, são tuas primas, primas, sim a filha e a neta do José Luís. Ficou de boca aberta, perguntando, onde é que ele está, onde é que ele está, quero vê-lo e entregar-lhe uma coisa. Disseram-lhe onde estava e, passado pouco tempo, o primo viu pela primeira vez a imagem da mãe, sessenta e sete anos depois de ter entrado neste mundo. Testemunharam o facto a neta e a bisneta que também passaram a conhecê-la.
Antes de dizer o que aconteceu neste encontro, o melhor é transcrever o que então escrevi...


A fotografia...


Não sendo determinista, nem fatalista, reconheço que muitas pessoas nascem e vivem sem sorte. Há dias, a minha mulher mostrou-me uma fotografia de uma senhora empunhando orgulhosamente um bebé. Via-se que era uma reprodução de uma foto com mais de meio século. Senhora trigueira, mas bonita, com cabelos ondulados à época segurando uma criança de poucos meses, ricamente vestida, provavelmente tirada no dia do batizado A foto conseguiu captar um momento mágico em que o olhar da mãe, cheio de amor, de carinho e de alegria captava a atenção de um petiz com um olhar meio-esbugalhado. Perguntou-me: - Sabes quem é? – Não. Respondi. É a minha tia Ilda. – E a pequena? Não é uma rapariga! É um rapaz, o meu primo José Luís. Subitamente fiz uma revisão sobre o assunto. A senhora tinha falecido muito nova, há uns sessenta anos, durante a segunda gravidez. A história familiar revela que não foi bafejada pela sorte e muito menos pela felicidade, a que não foram alheios os maus tratos. O pai refez a vida, mas, incompatibilizado com os familiares, impediu qualquer relacionamento do miúdo com os seus parentes mais chegados. Quer o pai, quer a madrasta, nunca revelaram afetos por uma criança com grave problema de visão, traduzido no uso de óculos com as lentes mais grossas que já vi em toda a vida. Quando era miúdo cheguei a conviver com ele, apesar de ser “muito” mais velho do que eu. A memória que guardo dele é de um jovem muito triste, que falava baixinho e que andava sempre cabisbaixo, isolando-se de tudo e de todos. Não conhecia o seu passado, nem nada da sua família. Gostava muito de jogar dominó e ping-pong com ele, à noite, na Casa do Povo, porque era um dos poucos a quem conseguia ganhar, facto a que não devia ser estranho a sua péssima visão, já que não era uma grande espingarda no uso das raquetes. Ao fim de alguns anos deixei de o ver. Saiu da vila na companhia do pai, da madrasta e do meio-irmão. Sei que se casou e que vive para as bandas de Tábua numa pequena aldeola. Nunca houve qualquer aproximação com os familiares da mãe, apesar de alguns esforços nesse sentido. Mágoas antigas aliadas à privação já denunciada deverão explicar a situação. Enquanto congeminava nestes factos, a minha mulher explicava-me que a madrinha lhe tinha perguntado se não teria uma foto da tia Ilda. É que um grande amigo, o Só, pediu-lhe se não arranjaria uma foto, porque o Zé Luís tem uma grande mágoa em não ter conhecido a mãe, nem através de uma fotografia! Este lamento levou-a à procura de uma foto. A única que encontrou em casa foi tirada há mais de 60 anos em Nova Lisboa, na altura do batizado. Fotografia pequena, mas que, graças às técnicas de computorização, aumentou substancialmente de tamanho, sem perder qualidade, facto que irá permitir ser melhor observada por quem está praticamente quase cego. Ao fim de mais de sessenta anos o filho vai ver pela primeira vez a mãe, num momento íntimo, em que os dois olhavam um para o outro. Estou convicto que deverá ser a maior alegria da sua vida, porque poderá ver a mãe a acarinhá-lo e a dar-lhe amor. Amor que nunca sentiu, mas que agora vai ver pela primeira vez, antes que a escuridão chegue...
(4 de julho de 2009)


Numa tarde de inverno, transparente e iluminada pelo sol radioso, algo difícil de escrever e de transmitir ocorreu debaixo de uma oliveira centenária. Um choro convulsivo, acompanhado de um doce afagar de uma cópia ampliada, libertou ondas de ternura até às profundidades do universo. Um momento singular. Um desejo realizado. Um sinal de nobreza a obrigar-nos que ainda vale a pena acreditar na humanidade. Entretanto, nas terras quentes do planalto angolano, numa campa desconhecida e abandonada, flores de uma beleza impossíveis de visualizar cobriram os restos mortais de uma alma angustiada e sofredora. Agora já pode voar alegre e livremente. O seu receio de que cegasse sem a conhecer atormentava-a. Agora não, está em paz.
- Ainda me viu.
- Consegui ver a minha mãe pela primeira vez!
E o sol ficou feliz.

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