Medicina caseira

Sentou-se. Foi a primeira vez que nos vimos. Obeso, calvície evidente e muito envelhecido para a idade, o que foi fácil de verificar através da ficha onde constava a data de nascimento. Atitude defensiva, olhar perscrutador de quem está a ser obrigado a um exame não solicitado, esperando a abertura do interrogatório. Iniciei com as perguntas usuais, onde trabalhava, o que fazia, às quais respondia secamente. De repente, antes de lhe perguntar algo nesse sentido, ou seja, se sofria de algum problema de saúde, adiantou-se dizendo que sofria de doença renal crónica, enquanto empunhava as análises a comprovar. Estudei os resultados e o historial histórico das determinações anteriores. Foi fácil de verificar que era verdade. Mas como tinha havido melhorias substanciais face aos últimos resultados, aproveitei a ocasião para realçar e gratificar o senhor de que estava muito bem compensado. Parabéns! Foi então que me respondeu com um certo ar de superioridade, para não dizer de inesperada arrogância, "e ainda dizem que a medicina caseira não serve para nada". Como? Não percebi. Repetiu, agora sim, num tom mais alto e indiscutivelmente arrogante, "e ainda dizem que a medicina caseira não serve para nada". Mas o que é que o senhor faz? Tomo chás. Chás? Chás de quê? Não tem nada com isso! Perturbou-me bastante a resposta e, imediatamente, comecei a recordar de um caso que ocorreu comigo há alguns anos, mas antes, senti-me na obrigação de o aconselhar a ter cuidado com os chás precisamente por causa de algumas situações muito graves que tive oportunidade de ver. É preciso ter muito cuidado com isso, porque pode trazer problemas. Tive de suspender o meu discurso devido à "superioridade" do olhar que estava a lançar sobre mim, ou melhor, sobre a medicina em geral. Apercebi-me que todo o esforço no sentido de o convencer do contrário seria impossível. Troquei a sua liberdade pelo meu conforto, certo de que não iria conseguir grande coisa, talvez ainda o perturbasse mais, se quisesse impor a minha medicina sobre a "dele".

Há anos diagnostiquei a um doente um problema desta natureza e fiz todos os possíveis para que fosse seguido num serviço de referência. O tempo ia passando, e eu deixei de o ver no consultório. Entretanto ia vendo-o com frequência na rua, cumprimentava-o e recebia em troca uma respeitável saudação. De cada vez que me cruzava com ele, era mais do que visível que não estava bem, anemiado, emagrecido, apresentando sinais de cansaço fácil. Mas com os diabos, como é possível andar assim e em hemodiálise? Há qualquer coisa que não está bem. De ano para ano, a situação agravava-se, até que um dia, um familiar informou-me de que tinha entrado em coma. Em coma? Mas como? Ele anda em hemodiálise. Silêncio. Não, não andava, senhor doutor. Não andava? Mas como? O serviço que recomendei é um dos melhores que conheço, não posso acreditar nisso. Pois, o pior é que ele desde o princípio, desde o momento que o senhor doutor o informou de que teria de fazer diálise, foi apenas a uma ou a duas consultas no hospital. Fiquei estarrecido. Logo de seguida veio a explicação, andava lá para as bandas do Ribatejo a tratar-se com dietas e chás. Depois, ficou sem as massas, e entrou numa situação muito grave. E eu a pensar que andava a fazer tratamento! Agora percebo.

A liberdade é um direito que qualquer um tem de usar, é pena que muitas vezes seja tão mal utilizada, com consequências graves, mas que fazer? Tentar convencer do contrário? Não me parece, algumas pessoas recusam-se a ouvir conselhos adequados e só regressam quando sentem que a situação é periclitante, deixando fazer o que já deviam ter feito.

A pretensa arrogância do senhor, que quis ostensivamente humilhar a medicina, contrapondo de forma soberba as maravilhas da medicina caseira, irá com toda a certeza, infelizmente, originar consequências. Desta feita respeitei a liberdade de outrem não contrapondo as minhas ideias e sugestões, mal grado a péssima sensação de desconforto que senti. Quanto ao senhor, saiu sem dizer uma palavra, convicto de que teria encontrado a solução para o seu mal. E, para confirmar, nem disse o nome do chá! Um dia, eu sei onde irá parar, mas ele não. É o costume!

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