Pasteis de nata do "Palhoa"

Durante muitos anos comi, mas não abusava, genericamente falando, de doces. Os mais antigos bolos que me lembro ter comido foram o pão-de-ló, que não apreciava muito - exceto quando rapava o tacho onde era produzido, isso sim, dava-me muito mais gozo do que comer o produto final, porque ficava atafegado quando queria mastigá-lo -, o bolo de arroz e um tipo especial de pastel de nata. Mas não se comia muito, só de vez em quando, em dia de festa, ou quando ia ao café do Zé da Estação. Aqui sim, valia a pena comer o bolo de arroz, cujo sabor e textura nunca mais encontrei em local nenhum, mas tinha de pagar dez tostões, o que era obra. O outro bolo era um tipo de pastel de nata que o "Palhoa", fazia. Vinha da vila a pé com uma bandeja de pasteis, cobertos com um pano, fornecendo aos poucos estabelecimentos que havia naquelas bandas. Um pasteleiro especial. Ainda vinha a sair da ponte e já se sentia o cheiro dos mesmos, quentinhos, ou melhor, suavemente quentes. Assim que os entregava ao António, mexíamos nos bolsos à procura de uma moeda de um escudo logo trocada pelo pastel e, quando tínhamos “vinte cinco“ tostões, papávamos dois de seguida, recebendo cinco tostões de troco! Não sei o que é que tinham aqueles pasteis, a massa era delicada e o creme bailava voluptuosamente durante longo tempo na boca evitando ao máximo a natural descarga para o esófago. A sensação que se seguia não é fácil de descrever, ficávamos calmos e calados, o que era estranho naquelas idades, como se houvesse uma ordem a obrigar-nos nesse sentido. Recordo que durante o resto da tarde não mais esquecia o prazer de o(s) ter comido e, pavloviamente, salivava sempre que encontrava o "Palhoa", mesmo muitos anos mais tarde quando a doença já o minava inexoravelmente. Digo pavloviamente, porque, quando ouvi pela primeira vez a descrição da experiência feita pelo cientista russo, apressei-me a substitui-la pela minha própria, sempre era mais fácil de reproduzir.
Veio-me à ideia estes pequenos apontamentos de outrora motivado pela história dos pasteis de Belém. Só muito tempo depois, muitos anos, é que vi um pacote e comi um. Não é que me tenha desagradado, porque como diz o povo o que é doce não amarga. Disseram-me que em Lisboa, em Belém, é que poderia comer os melhores. Mas ir a Lisboa para comer pasteis de Belém não estava no horizonte, nem pensar. Um dia, é uma vergonha confessar, mas confesso, já era avô (!), fui até lá e papei uma pratada generosa com um colega. Gostei. Mas, para falar francamente, não conseguiram destituir da minha memória os outros, os do "Palhoa". Ainda fui uma segunda vez, mas não deveria ter ido, não me passou pela cabeça como já andava, tinha entrado na fase de "irradiado de jogar com doces". Uma chatice que me poderia ter custado caro, se é que não deixou marcas, mas os médicos são mesmo assim, esquecem-se de certa coisitas!
A minha lembrança quanto aos doces e bolos não ficam por aqui, por exemplo, na minha terra fazem uma broinha doce que é um encanto e há quem diga que só se produz naquele sítio.
Li em tempos que o que caracteriza a gastronomia portuguesa é a doçaria, não havendo praticamente nenhum local que não tenha a sua especialidade. Aqui está uma proposta de extensão para "resolver" a nossa crise económica, exportar todas as belezas dos nossos "doces" que, um dia, fizeram a delícia de muitos de nós em criança. Deste modo, o mundo ficaria muito mais doce, mais calmo, muito mais calmo, mas o melhor é despacharmo-nos enquanto a obesidade e a diabetes deixarem...

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