"Piolhos. Castigo de Deus"...


Os meus netos têm sido alvo de ataques constantes de piolhos, apesar de todas as medidas de higiene e de cuidados que esta praga exige, volta e não volta trazem da escola representantes daquilo que em tempos alguém designou por "castigo de Deus". Custa-me aceitar que não sejam tomadas as medidas adequadas para controlar esta "epidemia" escolar. Se não houver cuidados por parte de todos os pais, e dos responsáveis da instituição, muito dificilmente se evitará esta situação recorrente que começa a irritar-me e a causar-me "comichão" por simpatia.
Recolhi um pequeno texto escrito há algum tempo a propósito de tão "divina" praga, onde a evolução, os pelos e o catar tiveram papel importante, nomeadamente o último. Catar foi uma forma de socialização, mas hoje em dia existem outros meios, mais eficientes, entretanto, apetece-me dizer aos dignos responsáveis pela praga que está a atacar os miúdos, entre os quais os meus netitos: "vão-se catar"!

"Oh, praga 
infame! Oh, repugnante enfermidade!

Que torna os orgulhosos reis mais repulsivos do que mendigos
(Envoltos em trapos, sacudindo as costas, 

Atormentados por chagas piolhentas).
Tantas, que nem adianta esfregar, 

Ou trocar camisas e lençóis de cama 

Pois, como nas nascentes, a água segue a correnteza, 

Enxame segue enxame, nascem os devoradores 

Da própria carne frutífera, que (até a chegada da Morte) 

Faz de si mesma um execrável festim."

Guillame de Salluste, huguenote francês do século XVI, escreveu a obra “La Semaine” sobre a criação do mundo. “Piolhos, o castigo de Deus”, constitui um dos capítulos. Acreditava-se então que o mal dos piolhos, “a mais horrível das doenças”, era um castigo de Deus aos tiranos, sacrílegos e inimigos da religião. Na antiguidade, Aristóteles foi um dos primeiros a referir-se a este mal, mas tinha outra interpretação para as causas, atribuindo-a ao excesso de humidade e à temperatura morna do corpo.
A história da medicina revela que se tratava de um verdadeira doença democrática, não poupando a realeza ou as classes mais baixas, cujos corpos serviam de pasto a milhares e milhares de piolhos. Apesar dos dramas, estes insetos repugnantes desenvolveram um papel muito importante na evolução da espécie humana. Como é sabido, os seres humanos, ao contrário dos seus primos antropoides, são desprovidos de pelos. O que levou ao desaparecimento deste revestimento tão característico das outras espécies? A necessidade de libertar as mãos para outras tarefas que não fosse o catar. É curioso verificar que, nos antropoides, o ato de catar é uma forma de socialização, diminuindo a agressividade entre os membros, além de ajudar a estabelecer verdadeiras hierarquias. Ao perdermos os pelos, diminuímos os alimentos dos piolhos e, consequentemente, as mãos libertaram-se para permitir a humanização. Claro que os piolhos, mesmo assim, não abandonaram as suas pastagens preferidas, até porque o cabelo não desapareceu (apesar dos carecas), nem os pelos púbicos.
Os autores portugueses, quando queriam dar uma imagem social de repugnância, utilizavam a expressão “piolheira”. Fialho de Almeida e Raul Brandão utilizaram-na nas críticas e obras. Este último, nas suas Memórias, descreve que, em Junho de 1903, passou a noite em casa do Columbano com o Rafael Bordalo Pinheiro. Conta que o artista das “Caldas”, em Paris, ouviu ao rei dizer: - Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira. Claro que uma expressão real desta natureza propagou-se de tal modo que ainda hoje é referenciada amiúde pelos nossos concidadãos, quando querem expressar de forma ultrarrápida a sua indignação e revolta. Presumo que não haja palavra tão rica e expressiva como esta: “piolheira”. E, com certificado real!
Os piolhos ainda andam por aí, à espera de se banquetearem após jejuns prolongados. Não deixa de ser curioso que o ato ancestral de catar ainda permaneça na imaginação de muitos seres humanos, os quais não abdicam de continuar a usar esta técnica primitiva, face a criativas comichões….

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