Taça de Prata


“O melhor sono da nossa vida, em que na nossa alma, docemente, penetra Deus”
(José Oliveira Ferreira)

Viseu. Depois do jantar fui dar uma volta pela cidade. Há muito que não passeava nesta localidade à noite. Tinha acabado de chover. Estava tudo impregnado por finas camadas de água que brilhavam sob os olhares dos candeeiros e dos faróis dos automóveis. Andei sem rumo e desfrutei a tranquilidade do silêncio noturno, ao mesmo tempo que me embrenhava em recordações que só a noite e a ausência de pessoas permitem.
Conheço esta cidade desde sempre. É uma referência importante na minha vida. Foi aqui que fiz todos os meus exames. Foi aqui que me trouxeram vezes sem conta em criança devido a doenças que me atormentavam. Nessas andanças dolorosas, o esforço dos meus pais era evidente. Tinham que pagar os tratamentos e aos médicos. As posses não eram por ai além e a obrigação de pagar os honorários era um ponto de honra. Chegou mais um dia em que tiveram que saldar as dívidas da dor de uma criança.
Recordo-me de um centro de mesa de prata, lindo, uma taça grande, pesada, trabalhada com figuras humanas e flores a lembrar um vaso grego, assente em três elaborados pés e ornamentado no rebordo por fileiras de flores entrelaçadas. Guardavam-na zelosamente. Era uma herança de família. Tinha vindo da casa dos avós da minha mãe. Uma bela peça de arte que enfeitava a mesa da sala nos dias de festa, no Natal e na Páscoa. Nessas alturas era limpa. Demorava um bom bocado porque era difícil penetrar naquelas re-entrâncias. No final brilhava, faiscava com alegria. Chamava-me a atenção. Presumo que deve ter chamado sempre a atenção desde que me conheço. Não sei explicar o porquê, mas punha-me, com as mãos debaixo do queixo em cima da mesa, a olhá-la tempos infinitos. Ficava colocada em cima de um pano engomado e artisticamente elaborado que a minha avó teria feito pouco tempo antes de morrer, era a minha mãe uma criança. Colocava dentro do centro um pano de linho e depois enchia-o com saborosos e carnudos biscoitos, tapando-os. Não lhes tocava até ordem em contrário. Quando me davam permissão mergulhava a mão e retirava um ou dois biscoitos sem os ver, com muita dificuldade, porque tinha de subir para uma cadeira para lá chegar. Atribuía o cheiro e o sabor únicos dos biscoitos ao facto de eles repousarem naquele vaso misterioso.
Um dia vejo a minha mãe a meter o vaso de prata num saco aquando de mais uma ida a Viseu. Não disse nada, mas estranhei. - Por que é que leva o centro de prata, tão pesado, no saco? Não entendi, mas fiquei com a sensação de que seria a última vez que o veria. Em Viseu, após mais uma visita médica, e depois de ouvir a empregada do consultório a advertir que já eram muitas as consultas sem pagar, a mãe retorquiu que ia resolver o problema ainda nesse dia. A poucos metros do local, numa rua que desemboca no Rossio, bateu à porta de um prédio alto em que sobressaia uma varanda barriguda. Subimos e mandaram-nos entrar para uma sala cheia de coisas lindas, precisamente a que tinha a varanda bojuda. Eis que a dona, uma senhora também barriguda e com um colar muito grande à volta do pescoço e que descia até ao volumoso abdómen onde dançava ao sabor dos movimentos, perguntou com uma voz grossa o que é que pretendia. Ao mesmo tempo que tirava o vaso da saca, a minha mãe disse que sabia que a senhora gostava de pratas e mostrou-lhe a que tinha nas mãos. A matriarca olhou, sopesou-a com ambas as mãos, porque era de facto muito pesada, e disse, sem mais, não estar interessada. Perante a mudez da minha mãe, continuou, dizendo que lhe podia fazer o favor de a pagar pelo preço da prata em vigor, um escudo por grama. – E como deve ter meio quilo dou-lhe quinhentos escudos. Retira uma nota da carteira e espetou-a na mão. A minha mãe ainda hesitou, dizendo-lhe que pesava muito mais, além de ser antiga e muito trabalhada. – Olhe, o problema é seu, se não quer leve-a. Nesse momento esboçou um gesto de a querer entregar. Perante esta situação, amachucou a nota e, agradecendo, saiu de casa, levando-me, cabisbaixa, pela mão sem dizer uma palavra. Voltou ao consultório, subiu as velhas escadas e pespegou a nota meio amarrotada, acabadinha de receber, na mão da empregada, ouvindo o reparo de que tinha ainda que pagar o que faltava. Não sei quanto é que faltaria.
Sempre que venho a esta cidade sou atormentado por este episódio ocorrido há quase meio século e passo, inconscientemente, pela rua, acabando por olhar para aquela varanda barriguda onde um dia ficou uma bela e misteriosa taça de prata que nos dias de festa guardava saborosos biscoitos. Só os retirava após autorização e, desde então, nunca mais encontrei na minha vida nada que tivesse semelhante sabor e que me desse tamanho prazer. Sei que a taça anda por aí. Não deve estar naquela casa, agora desbotada, triste, morta e feia. Mas foi aí que desapareceu parte de uma memória em construção...
Continuei a marcha, a fim de regularizar a glicemia pós prandial, e acabei por ficar frente-a-frente com uma maravilhosa estátua de autoria de José Oliveira Ferreira, no Jardim das Mães. A mãe, sentada com as mãos postas em jeito de oração, olha para o filho que dorme com a cabeça pousada no seu regaço. Ninguém em redor, só eu e a estátua numa noite fria. Iluminada, podia ver finos fios de água a escorrerem pela face como se fossem ribeiros de lágrimas. Curiosamente, a face do petiz estava enxuta, protegida pelo braço.
Nunca tinha entrado no jardim, apesar de ter passado vezes sem conta nas proximidades. Anos mais tarde descobri-a ao longe. Achei-a bonita, como todas as maternidades, mas adiava para uma outra altura o momento de me aproximar e de a desfrutar. Acabei por entrar, finalmente, no jardim à noite, sem que vislumbrasse viva alma em redor ou qualquer som que perturbasse tão aprazíveis momentos ao olhar para uma obra-prima e tudo o que ela simboliza.
Na base da estátua pude ler o seguinte verso: “O melhor sono da nossa vida, em que na nossa alma, docemente, penetra Deus”.
À minha frente, uma aspiração antiga que não envelhece, e que me atrai, vi um petiz a dormir sob o olhar protetor da mãe. - Será que está a sonhar? E será que sonha com a sua taça de prata?
- Eu sonho!


Comentários

  1. É sempre uma sensação boa, quando nos entregamos por inteiro ao porvir, e a mão invisível da providência nos guia ao encontro com nós próprios.
    E depois, instalados numa sala da memória, assistimos confortávelmente ao desfilar das "estrelas" (herois e vilões) que, co-representaram as cenas do filme das nossas vidas.
    Fernando Pessoa, no seu "Cancioneiro", apresenta-nos a seguinte reflexão:
    «Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.»
    Como relativamente a tantos outros momentos na vida, subsiste a dúvida, se na realidade nos encontrámos em algum tempo passado, ou se vivemos antecipadamente um tempo futuro que receamos... porque não o conseguimos prever.

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