Queijadas...

- Senhor doutor? Está aqui na receção o senhor Américo. Não é para o consultar, passou pelo centro para tratar de uns assuntos, mas como soube que estava ainda a trabalhar gostava de lhe dar uma palavra. - O senhor Américo está aí? Mande-o entrar. - Agora?!- Sim, mande-o entrar. Estava no intervalo de duas consultas. Ao ouvir o nome do senhor, comecei a recordar muitas conversas agradáveis que tivemos ao longo do tempo e que acabaram por ser afogadas numa doença de mau prognóstico há cerca de três anos. Apesar de estar muito cansado, era final da tarde, um afluxo anormal de energia invadiu-me, substituindo a fadiga pela apreensão. Não me recordo quando comecei a consultá-lo, foi há muitos anos. Homem simples, de bom porte, educado, humilde, conversador nato, dono de um sorriso suave, quase que diria sedutor, conseguia-me contagiar com uma estranha sensação de tranquilidade e bem-estar. Mais velho do que eu, entrava no gabinete a baloiçar-se como se um fosse um pato; as artroses das ancas eram razão mais do que suficiente para tão doloroso andar. Mesmo assim não perdia o sorriso. Quando a situação se agravou foi necessário proceder a artroplastia. Primeiro uma anca, depois a outra. Melhorou muito, mas não perdeu totalmente a marcha de pato; foram muitos anos a caminhar daquela maneira e não estava para se adaptar às novas condições. Afligiam-no outras maleitas, mas a terapêutica ia fazendo o que podia. Como tinha de tomar muitos medicamentos, vinha amiúde à minha consulta para lhe renovar a prescrição. Dois ou três minutos eram mais do que suficientes para cumprirmos a rotina, o resto do tempo era passado na calhandrice. Confesso que me sabe bem e tenho a certeza de que é, também, muito benéfico para os doentes. Falar só de doenças, de medicamentos, de complicações é muito chato e deprimente. Temas não faltavam. Abordávamos assuntos de interesse nacional ou, mais frequentemente, regionais e paroquiais. Tornámos-nos amigos e aprendemos a envelhecer. Como era de uma terra próxima onde sabia que faziam boas queijadas, meti, um dia, conversa a esse propósito contando-lhe que em tempos tive na faculdade um colaborador que me trazia pacotes delas que me deliciavam. Depois de ter feito o meu comentário, vi que o seu sorriso se tinha alargado um pouco mais do que é costume, baixou a cabeça, abanou-a ligeiramente, e disparou: vê-se logo que nunca comeu queijadas à maneira. Tenho de lhe trazer umas que são as melhores dos mundo. Vai ver que não se arrepende. Passados uns dias, entrou e pediu-me a chave do carro. - A chave? - Sim. É para deixar uma pequena encomenda. Ainda estão quentinhas. Dei-lhe a chave, mas fiquei a pensar por que é que não mas entregou pessoalmente. Às tantas já deveria antever o perigo das "ofertas", não fosse acusado um dia de corrupção. Ri-me com este pensamento. Não, o senhor só não queria que me vissem com um pacote de queijadas debaixo do braço. Passadas umas semanas veio a pergunta: - Então, quem é que tinha razão? São boas, não são? - Se são! Olhe, mamei umas tantas. Sou um alarve. São maiores, mais baixinhas e com um sabor! - Têm segredo. Têm segredo! Estas é que são as filhas da verdadeira receita das freiras, as outras, as que se vendem por aí são imitações. A velha que as faz, guarda, religiosamente, o segredo. A partir daqui, volta e não volta, o meu amigo trazia um pacotinho das ditas. O tempo passava e começou a surgir um problema que não se resolvia. Tive de lhe dizer que precisava de fazer um exame aos intestinos, mas nada o convencia. Ia dizendo que não era preciso, que já tinha tido aquilo em novo, que já estava melhor, enfim, comportamento típico de alguns doentes. Um dia chateei-me e obriguei-o a fazer o exame. - Pronto, se o senhor doutor quer que eu faça, eu faço. Sempre com o mesmo sorriso. Chegou o exame. Fiquei branco e com suores frios. Tive de lhe dizer que havia necessidade urgente em ser operado. Respondeu-me: - Se o senhor diz, vamos a isso. Telefonema, carta, tudo feito com o máximo de rapidez e o Américo foi operado. O meu colega cirurgião comunicou-me dizendo que as coisas estavam muito feias, fígado metastizado e tinha encontrado outro tumor maligno no rim, mas que não pode ser operado naquelas circunstâncias - Outro? Quimioterapia. Andou desaparecido, mas depois de as coisas terem estabilizado um pouco regressou e trouxe-me queijadas, sabendo que não as podia comer. - Não come o senhor doutor, mas há lá em casa quem as coma, não há? - Claro que há! Sempre bem disposto, sem nunca ter perdido o sorriso. Aquela cor térrea é que me começou a inquietar-me, mas dizia que se sentia bem e até tinha apetite. O tempo passou.
O Américo entra no gabinete. Eu julgava que me vinha trazer queijadas, tinha-me prometido há algumas semanas durante a consulta. Olho para as mãos e não vi nada. Nos últimos tempos já não me pedia as chaves do carro. - Então senhor Américo, como vai isso? Olhou-me com o seu típico sorriso mas um pouco mais apertado e algo sofredor. Não gostei. - Venho dizer-lhe que me vão operar novamente, por causa do fígado, apareceu mais uma coisa e também ao rim que, como sabe, tem um tumor. Vão ser dois cirurgiões, um para o fígado e o outro para o rim. Parece-me que vai ser um pouco complicado. Eu não me importo, mas quis vir dizer-lhe pessoalmente. Não o empatei muito. A situação estava a perturbar-me; desejei-lhe boa sorte e disse-lhe que esperava vê-lo o mais depressa possível. Agradeceu-me e dirigiu-se para a porta com um porte majestático, sem o seu tradicional baloiçar. Ao entrar no corredor parou e olhou-me novamente. Estranho, os seus olhos eram terrosos, e, pela primeira vez, vi-o sem o seu sorriso, como que a prever...

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