“Sabor da própria morte”

Certas frases e palavras têm a capacidade de nos agredir, de aliviar, de fazer sofrer, de sentir o que é o amor, o desejo, o ódio e, até, o sabor da própria morte. São poucas as que se podem considerar amorfas ou insípidas, mas há outras que são mais destruidoras do que o Vesúvio quando se lembra de incomodar os humanos.

A conflitualidade religiosa ou as decisões tomadas em seu nome são, por vezes, iníquas ao esconderem a malignidade humana sob a pretensa magnanimidade do amor a um deus qualquer.

O jovem médico no serviço de urgências do velho hospital, que nunca conseguiu adaptar-se às suas funções, descansava, feito porteiro, na noite fria do inverno. Muitas horas já se tinham passado desde que iniciou o seu turno, quase uma dúzia e meia, e ainda faltava meia dúzia, a mais dolorosa, em que o tempo demora a passar. Aquela hora é, habitualmente, uma hora meia-morta, permitindo um breve relaxar. Eis que a noite é interrompida com a entrada de uma mulher, pequena, arranjada à pressa, muito simples, com ar rural salpicado de ansiedade. Pediu uma maca. Naquele tempo chegava-se a esse ponto, entravam na urgência à noite, porque o porteiro recolhia-se no interior para fugir às agruras do frio noturno. Dois curtos minutos depois entrou o corpo de um menino. Deveria ir para o Hospital Pediátrico, disse ao porteiro. Já tem onze anos, ripostou. Na altura, com esta idade atingia-se a maioridade para entrar no hospital de adultos. Branco, quase inanimado, com sobrancelhas juntas e inserção de cabelo muito mais baixo do que é normal, denunciando anormalidade evidente, levou-me a desviar o interrogatório para a mãe perguntando-lhe qual o sofrimento do menino. Seria muito mais fácil fazer o diagnóstico. Ao levantar o braço de cera, aguardava pela resposta da mãe, viu muitas cicatrizes na mão e no antebraço. As formas como estavam desenhadas eram perfeitamente compatíveis com fenómenos de automutilação. Nasceu assim e morde-se com frequência, sobretudo quando se agita. Não foi difícil chegar a uma conclusão. Doença congénita grave, automutilação, hemorragias. O hemograma revelou que o menino estava mesmo anémico. Tomou as medidas necessárias, internando-o numa das “suas” camas, que estava vaga, com as necessárias instruções para ser repetido novo hemograma. Havia um processo crónico de anemia, provavelmente agravado por uma hemorragia mais violenta. Suspeitou da necessidade de realizar uma transfusão sanguínea. O tipo de sangue era pouco comum e as reservas do mesmo não abundavam. Teria de reavaliar a situação com o colega da hemoterapia. Um pouco antes de dar por concluído a transferência de turno foi até à enfermaria. A situação não tinha melhorado. Falou com o enfermeiro chefe. Antes de ir para casa descansar um pouco, disse-lhe que ia arranjar duas unidades para o menino cuja alma desconhecia o mal que fazia ao seu corpo ou quem sabe se não saberia, desejando libertar-se. O jovem interno não sabia dar a resposta, competia-lhe apenas cumprir o seu dever, salvar uma vida, mesmo que fosse a de um deficiente profundo. Conseguiu as tais duas unidades, para começar. Sentiu um alívio e foi para casa. No dia seguinte ao entrar na enfermaria a primeira coisa que fez foi dirigir-se à cama do menino para ver como estava. Entrou no seu setor. A cama estava vazia. Vazia? Onde estará o rapaz. Dirigiu-se ao enfermeiro chefe, homem de uma cordialidade e simpatia inimagináveis, questionando-o, o que aconteceu? Onde está? Com um sorriso suave pôs-lhe a mão sobre o ombro e levou-o para um local mais recatado, como se houvesse lugares dignos desse nome. Secamente explicou-lhe, a mãe levou-o. Como? Não pode ter levado, não senhor, é impossível, o menino está gravemente doente. Mas levou o sangue que lhe arranjei, não levou? Não! Não? Mas prometeram duas unidades para começar. Sim, pelas onze horas vieram com o sangue. Então o que é que aconteceu? Não estou a perceber nada. Ansioso, sentia algo a emergir da boca do estômago a subir e a comprimir o coração, algo muito pesado a querer sair pelas goelas, mas esbarrando num barreira intransponível, provocando-lhe uma angústia que nunca tinha sentido. Mas, ó chefe, o que é que aconteceu. A mãe recusou que fosse ministrado o sangue e exigiu alta a pedido. Alta a pedido? Rejeitou o sangue que lhe podia salvar o filho? Sim. A religião da senhora não permite essa prática. Abraçou-o de uma forma paternal. Como era um homem que já tinha visto muita coisa compreendeu muito bem o sofrimento do jovem médico. Durante longos instantes travaram um diálogo surdo, um diálogo que nunca mais esqueceu.

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