Cinzas de esperança

Tinha que acontecer. Acontece sempre. Sinto, desde há muito, que a passagem do tempo se acompanha do encurtamento da tranquilidade, anunciando, fatalmente, a desgraça. Ondas de angústia movem-se a estranhas velocidades, crescentes, desejosas de morrerem na parede do imprevisto. É a única possibilidade de as eliminar. Morre a angústia, nasce a dor mergulhada na incompreensão.
Aconteceu. Toca o telefone. O visor diz quem é, e quem é, é sinal de que algo de anormal estará a acontecer. Aconteceu mesmo. Um violento curto-circuito cerebral obrigou-me instantaneamente a levantar a hipótese do diagnóstico mais provável, e, também, o mais grave. Contactos, muitos contactos, todos eles filhos de curtos-circuitos desesperados. Objetivos: confirmar o diagnóstico e estabelecer estratégias imediatas e a curto prazo. Ao final do dia fui buscá-la. Meio-admirada, ou talvez não, deixou-se transportar. Nunca perguntou o que estava a acontecer ou para onde dia. Também seria indiferente. O seu mundo interiorizou-se há muito. As poucas vezes que vem à janela é para fazer pequenas comunicações em que a memória não consegue saber onde está o passado ou o presente e muito menos sabe que existe o futuro. Passado pouco tempo o meu diagnóstico confirmou-se. E agora? Pouco a fazer. Apenas medidas paliativas. Tudo o que fosse de natureza mais agressiva seria doloroso e despropositado. E eu não quero sujeitá-la a essa violência. Desapareceu a angústia, agora substituída pela dor e incompreensão. Desapareceu a angústia, porque já sei como vai morrer, e de que doença, meu Deus. Agora vivo com a dor da certeza e a incompreensão do sofrimento.
Não é por ver muitas vezes o sofrimento que uma pessoa se torna insensível, antes pelo contrário, e quando o sofrimento se alimenta do corpo de quem nos deu a vida, então, a incompreensão é rainha. Ao olhá-la começo a recordar o passado. Quando não a olho sinto imensas ondas de lembranças a quererem arrastar-me, esfomeadas, e eu deixo, não posso fazer outra coisa. A dor irá crescer como chamas poderosas capazes de incinerar qualquer esperança. Cinzas de esperança me esperam, cinzas frias, desprovidas de sentido, filhas de um deus distraído e pouco preocupado com pequenos e pensantes animais que vivem num pequeno grão de poeira cósmica perdido na imensidão de um universo, que um dia julgaram ter descoberto que havia alguém que se preocupasse com eles. Que ingenuidade! Uma ingenuidade paga com muita dor, sofrimento e incompreensão.
Deus, a existir, nunca de preocupou com o homem. Para quê preocupar-se? Mas há muitos seres humanos que se preocupam com Ele. Para quê?

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