Dois loucos.



Criar hábitos ou rotinas é uma das minhas principais características, é-me tão fácil que chego a pensar se não sofro de qualquer propensão para ser adicto. Por isso o melhor é escolher os mais saudáveis, ou, então, os que não sejam muito perigosos. Ajudam a equilibrar o dia-a-dia e se forem bem aproveitados permitem colher elementos interessantes que nos obrigam a refletir melhor sobre a vida e os seres humanos. Aproveitar a hora de almoço, quando estou fora de casa, para ler ou para escrevinhar é muito agradável. Faço-o frequentemente. Num do locais onde vou regularmente aproprio-me de um banco de madeira à porta de um cemitério, debaixo de uma árvore que faz de excelente guarda-sol. O que já li e o que já escrevi naquele local, e, também, o que já vi! Sabe-me bem. Não me incomoda nada o que está para além do portão. Entram e saem pessoas, eu vejo-as, tentando penetrar nas suas almas, para logo mergulhar na escrita ou na leitura. São muito poucos segundos, não dão para grande coisa. Ao longo deste exercício semanal, que é essencialmente estival, acabei por reparar que, um pouco antes das quatorze horas, aparece sempre um indivíduo meio destrambelhado a falar sozinho e em passo acelerado transportando uma pasta de cabedal que já viu, e há muito, melhores dias. Entra no cemitério com uma bolina impressionante, revelando que não é por motivos sentimentais ou de refúgio espiritual que o faz. Qual quê! Se tivesse de descrever o que penso dele, poderia dizer, mais parece um fiscal das finanças desesperado em colher impostos dos que estão ali deitados de costas, como se isso fosse a salvação do país.
Hoje, apareceu à hora aprazada, mas antes comecei ouvir alguém aos berros, "filhos da puta, só greves, cabrões, só greves, malditos, filhos da puta", afinal era ele, que, muito agitado, passou à minha frente ignorando-me e, também, obviamente, os surdos que estavam lá dentro a repousar. Pensei, este gajo deve estar fulo com a greve dos médicos. Comecei a escrevinhar um pequeno texto que vinha gizando desde a manhã, quando o tolo ou o meio-tolo sai do cemitério esbaforido a dizer cobras e lagartos das greves, mas de todas as greves e de todos os grevistas. Senta-se num banco a meia dúzia de metros e começa a dizer, eu tenho que escrever isto, tenho pois, ai vou escrever, malditos, filhos da puta, só greves, só greves. Tira um caderno da pasta e um lápis e começou, ora, hoje são vinte e quatro, pois é isso mesmo, vinte e quatro do quatro, quatro do vinte e quatro, filhos da puta, só greves, só greves. Olhei estupefacto para o meu vizinho e pensei, que quadro tão curioso, ele escreve as suas notas e eu as minhas. Dois loucos que escolheram dois bancos, debaixo de duas belas arvores à entrada do sítio da verdade. Olhei novamente para ele, mas não se incomodou. Ele olho-me e eu não me incomodei, fiquei apenas com uma curiosidade dos diabos sobre o que conteria aquele bloco. Quem sabe se um dia destes ainda não iremos trocar os nossos apontamentos, eu mostro-lhe os meus e em troca ele mostra-me a sua escrita, escrita de delírios. Faltavam escassos minutos para retomar o trabalho quando uma senhora vestida de negro, testemunhando perda recente, sai pelo portão acompanhada de duas crianças, a mais nova, um rapaz de dez a onze anos, traquina, convencido da sua imortalidade e indiferente ao significado do espaço, dirigiu-se ao meu companheiro, que ia escrevendo em voz alta os seus protestos contra os grevistas, perguntando-lhe, a que horas é que parte o próximo comboio para Lisboa, respondeu de imediato, sem levantar a cabeça, como se fosse um horário vivo, às cinco menos doze, e o comboio a seguir, às cinco menos treze, tal foi a velocidade com que deu a informação revelando que estava mesmo junto de alguém que, se não era louco, deveria sofrer de algum delírio quântico. O puto, que já o devia conhecer muito melhor do que eu, riu-se, e a mãe, que tinha ao sair um semblante triste, conseguiu revelar uma certa cumplicidade com o filho, olhando-me como que a pedir desculpa pela brincadeira, oferecendo-me um discreto sorriso. Retribui-lhe, naturalmente.

Comentários

  1. Pois comigo, passa-se completamente o contrário, Senhor Professor. Não consigo aderir a habitos rotineiros. Nunca fui capaz. Em jovem, pratiquei diversos desportos: futebol, básquete, andebol, vóleibol (tudo à portuguesa e sem acordo ortográfico), natação, polo aquático, vela (cheguei a competir e a ser monitor), remo (competi também) e motocross. Estudei pouco, terminei o antigo 5º ano do curso geral dos liceus já depois de casado, (e por vergonha) participei em diversas acções de vários partidos políticos, mas nunca me filiei em nenhum. Por último, os blogues; comecei por comentar aquilo que os outros escrevem, depois, por vergonha, comeceia a escrever no meu próprio blog, mas, tanto numa situação como na outra, afasto-me frequentemente e faço um esforço enorme para voltar. Quando volto, faço um esforço para perceber porque me afastei, dado que sinto imenso prazer em escrever. Assaltam-me pensamentos e razões díspares. Nenhuma se concerta com o sentido lógico que gostaria de reconhecer nesta minha forma de ser. Penso por vezes se aquilo que me leva a afastar, poderá estar relacionado com algum sentimento escondido... será que me afasto, porque não gosto de pessoas? Mas então, não haveria lógica no prazer de voltar.
    Por outro lado, tudo me leva a concluir que no fundo, sou propenso à solidão. Sou um ser solitário por opção, por convicção, por gosto e por prazer. A solidão conforta-me, propicia-me momentos únicos de reflexão, momentos de verdadeira simbiose com aquilo que me rodeia e de que faço parte integrante. Mas voltar ao contacto com os outros, anima-me também, espevita-me os sentidos, obriga-me a reconhecer o contraste entre a alma e o ser, o físico e o espiritual... e a forma como se completam.
    ;)

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  2. Eu crio rotinas para criar e destruo rotinas para recriar. Utilizo este esquema mais por uma questão de tempo do que outra coisa. As rotinas são meramente transitórias. Também aprecio a solidão e registo um comportamento idêntico ao Bartolomeu, sair e voltar, tornar a sair e voltar, novamente, até que um dia saio mesmo definitivamente. Um abraço

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  3. Tenho para mim que as rotinas, não passam de "lembretes", de "post-its", de mneumónicas, que têm a função única, de trazer de volta os idealistas incompletos.
    Acho que podemos considerar-nos, os três, idealistas e, incompletos.
    Imagino que o o segundo louco, o personagem do texto, se tenha sentado no banco à esquerda daquele onde o Senhor se achava já sentado. Se houvesse um terceiro banco, à direita daquele que ocupou, teria considerado igualmente «Dois loucos que escolheram dois bancos, debaixo de duas belas arvores à entrada do sítio da verdade.»?
    Talvez não...
    Talvez lhe parecesse que do lado de dentro daqueles muros, nada é de verdade. Nem lá repousam a maior parte dos corpos e muito menos as almas que os habitaram. Portanto, parece-me mais um local de pedras que fazem recordar a quem não encontra outra forma de o fazer, aqueles que conheceram e que de alguma forma, fizeram parte das suas vidas.
    Não sei mas, este poderá ser mais um dos mistérios que nos alimenta a loucura, ou então, que nos faz perceber melhor o mundo dos vivos, enquanto não se convertem em mortos.
    ;)

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