O negro vestido de cor de rosa.

Há uma pequena recordação de infância que nunca pude esquecer, pela beleza, pelo toque e, sobretudo, pela sensação que me produziu. Nesta altura do ano, quando me levantava mais cedo, agora é mais do que habitual, passou a ser um castigo, sentia ao alvorecer a ameaça do calor e a frescura matinal. Uma estranha combinação, sensação de calor e de frescura simultaneamente, que ocorre apenas durante um breve período. Está dito, é a combinação mais preciosa que conheço, porque consegue justificar a vida, pelo menos temporariamente. As justificações têm uma duração própria, renováveis caso o interessado assim o manifeste.
Hoje, durante a curta viagem, surgiu na minha mente a figura do negro vestido cor de rosa da cabeça aos pés. Chapéu cor de rosa, casaco, camisa, gravata, calças e sapatos cor de rosa a realçar o negro brilhante da cara. Na mão direita um trompete, na esquerda um lenço, por acaso também cor de rosa. Surgiu do nada, no outro lado da rua, em pleno início da manhã. Tinha acabado de tomar um pequeno-almoço prematuro. Com tempo mais do suficiente para retomar as minhas atividades deu-me na veneta dar uma volta pela cidade, cidade que se esqueceu dos passeios. Era a segunda ou terceira vez que visitava aquele lugar, que não me desagradava de todo, confesso, exceto a mania de fazerem tudo de carro, esquecendo-se da importância de caminhar na urbe. Outro país, outro continente, outros hábitos, outra cultura. De repente, surge no meio daquela combinação, que tanto aprecio, ameaça de calor e frescura matinal o estranho e enigmático negro vestido de cor de rosa. Acenou-me com um largo sorriso mostrando-me o piano perfeito dos seus dentes. Aproximei-me cheio de curiosidade, estava na idade em que ainda se aprende muito. Olhou para mim, fez um pequeno compasso de espera, colocou o trompete na boca e começou a tocar um solo surpreendente que encheu por completo a atmosfera de calor e de frescura naquela manhã cheia de vida e de esperança. Tocou, as notas pareciam pequeninos diamantes lançados com alegria por uma alma tranquila, desprendida e deliciosa. Fiquei de boca aberta, não queria acreditar no que via e ouvia. No final, limpou as bocas, a sua e a do instrumento e olhou sorridente para mim. E agora, pensei, que é que vou fazer, será que tenho de lhe dar alguma coisa, talvez tenha exteriorizado as minhas interrogações com um levantar interrogador dos meus ombros. Riu-se. Lançou uma rouca gargalhada tão bela como os acordes que tinha tocado, e disse, it's for you my friend, it's for you. Have a nice day. Virou as costas e pôs-se a balancear ritmicamente como só os negros sabem, como se estivesse a ouvir os acordes de uma qualquer banda de jazz composta de anjos e serafins. Deixei de o ver quando se embrenhou na primeira cortada, deixei de o ver, mas nunca deixei de o ouvir. Hoje deu-me para pensar, por onde andará o negro vestido de cor de rosa? Não sei, mas gostava de o ver e que muitos mais também o pudessem contemplar. Se um dia alguém me perguntar como imagino um anjo digo de imediato, negro, vestido de cor de rosa da cabeça até aos pés e a tocar um belo solo de jazz tal e qual como naquele breve período matinal onde a ameaça de calor copulava voluptuosamente com a agradável frescura do novo dia...

Comentários

  1. É impressionante o poder que a música comporta, no campo da comunicação e entendimento entre os homens.
    E sim, esse negro que o caro Professor teve o privilégio de encontrar numa rua de uma cidade americana - presumo - só podia ser um anjo... pois contentou-se com um simples erguer de ombros.
    ;)

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  2. Não tenha qualquer dúvida. E não foi só a música, Bartolomeu, mas a gargalhada e o belo riso. Tão belo, tão puro que nunca encontrei outro igual até hoje.

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