Poluição, ciência e ética

Quando é que o homem se terá apercebido da existência da poluição? Talvez quando olhou para o fogo e sentiu os seus efeitos, muito antes de a nossa espécie ter aparecido. Quem sabe se a sua domesticação não terá sido determinante para o nosso aparecimento, evolução e atuais características que nos distinguem dos outros animais e homínineos? Aquilo que hoje nos preocupa, e muito, a poluição, poderá ter sido no início um dos fatores de evolução da espécie humana, do crescimento demográfico, da colonização planetária e mãe de todas as culturas. Esta breve reflexão tem como objetivo não só fazer um enquadramento do problema mas mostrar a outra face da mesma moeda e saber como conjugar as duas, sem cairmos no relativismo da importância de cada uma delas, nessa forma tão tradicional de vermos os problemas, simples, sem dúvida, mas ineficaz, que é a visão dicotómica do mundo que nos cerca. O homem trouxe o fogo para dentro de casa, os alimentos tornaram-se mais digestíveis, o conforto mais acessível e os efeitos da saúde da exposição aos fumos depressa se terão feito sentir. Incomodava? Claro que sim, mas as vantagens decorrentes da sua utilização sobrepunham-se às consequências que, decerto, não teriam sido identificadas na altura. Aliás, a este propósito foram precisos quase 200.000 anos para saber quais eram as consequências da exposição aos fumos, o que não deixa de ser curioso. Significa esta constatação de que muitos efeitos de exposição a poluentes já identificados ou a identificar irão demorar algum tempo, não tanto como os efeitos dos fumos, obviamente, mas vai demorar. A evolução do homem depende de inúmeros fatores, entre os quais a própria poluição, como já tive oportunidade de dar a entender. Significa isso que temos de mergulhar na mesma? Claro que não. Assim que nos apercebemos de que a mesma é prejudicial à saúde, e ao ambiente, somos obrigados a inverter a situação ou, então, encontrar os mecanismos de minimização e de prevenção. A história da humanidade está repleta destes fenómenos, podemos afirmar que as preocupações ambientais não são de agora, são velhas, pelo menos tão velhas como as civilizações. A poluição atmosférica começou há cerca de 6.000 anos com a utilização dos metais. Na antiga Roma, o teor da concentração de chumbo era quatro vezes superior ao que seria antes do início da fundição dos metais. Séneca lamentava-se do ar pesado na antiga Roma, mas não deverá ter sido suficiente para criar qualquer grupo ambientalista. Em 1285 o ar de Londres estava tão poluído que o rei Eduardo I estabeleceu a primeira comissão da poluição do ar, proibindo, 22 anos mais tarde, a queima do carvão. Um lei sem sucesso a antever, séculos depois, muitas outras, fazendo ver que a necessidade, determinada muitas vezes por interesses económicos ou pessoais, consegue sempre impor-se a quaisquer regras ou aconselhamentos. Um constante típica do comportamento humano, sempre que há interesses económicos, estes conseguem sobrepor-se a quaisquer medidas de correção e de prevenção. São precisos muitos anos, e muito mais lutas, para que consigamos impor regras, regras mínimas de modo a evitar o impacte ambiental e proteger a saúde humana. Olhando em redor, à escala mundial, e também nacional, é fácil de verificar a veracidade desta afirmação. Trata-se de uma importantíssima questão política, que, infelizmente, nem sempre se consegue resolver, pelo menos em tempo útil, originando consequências muito sérias. Na luta entre a defesa ambiental, a proteção da saúde, e os interesses económicos, estes últimos acabam por se impor, prevalecendo a poluição. É uma vitória a prazo, que pode durar muito tempo, tempo suficiente para produzir uma quimérica riqueza, destruir o ambiente e provocar preocupantes alterações fisiológicas que não se esgotam nos expostos ou contemporâneos do fenómeno poluidor. A poluição, seja qual a forma, seja qual for o tempo em que ocorre, seja qual for o maior ou menor conhecimento dos seus efeitos ou suspeita, acaba por se manter durante demasiado tempo e com graves consequências. O que é curioso é o facto dos seres humanos compreenderem bem, ou relativamente bem, toda esta problemática, mas são, mesmo assim, capazes de sacrificar a saúde em prol de um eventual e momentâneo bem-estar. É bom dispor de riqueza e de bem-estar, mas não é agradável sofrer consequências perigosas, por vezes extraordinariamente graves devido à exposição dos fatores poluidores. Ninguém discorda que tamanha atitude é facilitada pelo poder político e, até, pela própria comunidade científica, que é capaz de usar os mesmos argumentos quer para denunciar os seus efeitos quer para demonstrar a falta de evidência dos mesmos - a ciência é mesmo assim, tanto serve para provar, como para por em causa, e, neste último caso, às vezes com um cinismo demasiado evidente, traduzindo, e bem, do que é capaz a natureza humana. É capaz de tudo, claro. Repito que os interesses económicos, acolitados pela indiferença ou cumplicidade política, são os principais responsáveis pelas graves situações que nos atingem. Verificamos que nos últimos anos os ditos interesses económicos são confrontados, num crescendo saudável, por organizações ambientalistas e, também, por cientistas que não se coíbem de os denunciar, sabendo antecipadamente das enormes dificuldades em fazer abortar muitos dos atentados ambientais. De qualquer modo estas lutas contribuem para melhorar e desenvolver a consciência ambiental dos cidadãos, os quais, felizmente, começam a despertar, embora lentamente, sobretudo se virem no processo obstáculos aos seus ganhos e proventos, porque esta coisa de interesses económicos não se restringem apenas a grandes grupos, mas também atingem o cidadão comum que, face ao risco de pobreza ou manter a sua saúde e a do ambiente, é capaz, com o máximo de naturalidade, optar pelo seu bem-estar, mesmo que saiba que está a contribuir para eventuais consequências para si e para os seus. E, então, em tempo de crise, é certo e sabido observar-se um certo grau de desvalorização em matéria de poluição ambiental. Arrefece o interesse por estas áreas, de forma muito evidente, como se em primeiro lugar estivesse a sobrevivência, e está, tenho que reconhecer, mas presumo que tal comportamento poderá estimular as agressões ambientais por parte dos chamados poluidores crónicos. Não são só estes dois fatores que estão em causa, a desvalorização dos problemas ambientais por parte do cidadão comum, que tem de saber como viver, ou melhor, sobreviver, e a dos grupos poluidores que veem aqui uma maneira de obter mais valias a menor custo, há também um terceiro grupo de pessoas a quem, estejamos em tempos de vacas magras ou gordas, só lhes interessa o bem-estar imediato, desprezando o futuro. Já tive oportunidade de conhecer algumas destas pessoas, a quem curiosamente apodo de sofrerem da síndrome do Rei-Sol. Para eles a vida é uma curta passagem e após a mesma que venha o dilúvio, "Après mois, le déluge" dizia Luís XIV. Uma forma de ser e de estar na vida que contrasta com a sabedoria dos aborígenes australianos e de outros povos que sabem reconhecer o seu lugar na natureza, ao afirmarem, caso dos primeiros, que "nós não herdámos a terra dos nossos pais, mas pedimo-la emprestada aos nossos filhos". Com este último provérbio, cheio de sabedoria, quero abrir neste momento mais uma reflexão, a última em termos de poluição e saúde. Um reflexão interessante suscetível de vir a modificar ou a criar um novo paradigma, que é o seguinte, aquilo que fazemos hoje, em termos de poluição geral ou pessoal - não esquecer que maus comportamentos individuais constituem uma forma de poluição -, não se esgotarão no presente. Há uma estranha ideia de que os nossos males estarão relacionados de forma direta entre o nosso comportamento e o ambiente em que crescemos e vivemos. Não ponho em causa tais conclusões, mas não são suficientes para explicar tudo, ou seja, é muito provável que alguns dos males que nos atormentam sejam consequência da exposição ambiental e comportamental ocorridos nos nossos antepassados. Só assim se poderá explicar muitos fenómenos. Fala-se muito da obesidade e da diabetes, por exemplo, como sinónimos da desadequação entre um excesso de aporte energético e uma diminuição do esforço físico. Uma interpretação simplista que se ajusta à compreensão de todos e que simultaneamente está na base de interesses e soluções muito discutíveis. Apesar de, teoricamente, aceitar as explicações mais simples para compreender e interpretar determinados fenómenos, princípio magistralmente conhecido pela "navalha de Ockham", sou de opinião que as coisas são muito mais complexas do que parecem. Neste caso, falando da poluição ambiental, é muito provável que muitos problemas que hoje estamos a sofrer sejam expressão não só das agressões imediatas, mas, também, consequência da exposição ambiental que os nossos antepassados sofreram mais ou menos remotamente. Sabemos todos que o desenvolvimento social e económico sempre se fez com base em atentados ambientais e em graves e prolongadas agressões contra os humanos. Nós temos esta particularidade, na busca incessante do bem-estar, agredimos e ofendemos a biologia e a natureza, só depois, mas muito tempo depois de termos beneficiado das riquezas decorrentes das nossas atividades, é que nos apercebemos, ou fingimos aperceber, dos muitos problemas intrínsecos ao desenvolvimento. Deste modo e para não me alongar muito na minha exposição queria exteriorizar o meu ceticismo e preocupação quanto ao futuro. Estamos a ser invadidos e agredidos por muitos produtos, isto para não falar nas alterações dos diferentes ecossistemas, que, mesmo em doses baixas, estranhamente ou não, são consideradas como "normais", um critério inventado pelo homem que lhe permite continuar a poluir e a aliviar as consciências de muitos que sabem pactuar com a poluição. Reparem que falo apenas daqueles que, na minha opinião, têm responsabilidades específicas porque são profissionais da saúde. Tudo aponta para que a exposição aos poluentes, micro poluentes, poderão originar alterações estruturais e funcionais ao nível do genoma com impacto no futuro, ou seja, muita da patologia que irá ocorrer nas próximas gerações não resultarão só do comportamento ou do desequilíbrio assumidos e provocados pelos nossos descendentes, mas também poderão resultar da exposição a que estamos sujeitos neste momento. Esta forma de ver o problema da poluição tem como objetivo estender no tempo, desde o passado até ao futuro, a complexidade da exposição ambiental. Hoje, estou convicto de que muitas patologias têm raízes na exposição e comportamento dos nossos pais e avós, e, do mesmo modo, estamos a condicionar o futuro dos nossos filhos e netos. A vida é um continuum, mas a doença também pode ser considerada um continuum que vem do passado e que irá continuar no futuro. A consciência destes fenómenos, que a ciência dos nossos dias começa a desvendar, vai obrigar ao desenvolvimento da ética transgeracional, porque a saúde dos nossos descendentes depende da nossa saúde, da forma como nos comportamos e relacionamos com o ambiente. O que fazer então? Algo simples e ao mesmo tempo muito difícil, atendendo às características humanas, eivadas de um egoísmo atroz, evitar que cada um se comporte como um Luís XIV. Não ao "depois de mim, o dilúvio", mas "depois de mim, mais e melhor vida".

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