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A mostrar mensagens de janeiro, 2013

"Castrati"

Li uma notícia que me divertiu e que parece ter incomodado as mais altas individualidades do país. No decurso da abertura do Ano Judicial o bastonário da Ordem dos Advogados terminou a sua intervenção com o famoso poema de Ary dos Santos, "Poeta castrado, não!", trocando "poeta" por "advogado". Imagino o efeito produzido naquela sala onde nos é dado a contemplar o formalismo na sua pureza, pelo menos é essa a minha perceção.  Estou convencido de que ficará nos anais da justiça portuguesa, pela forma e pelo conteúdo das suas afirmações. Não me pronuncio sobre as suas intervenções, que começam a ser previsíveis em termos de provocação e frontalidade. É o seu estilo, cultiva-o, é facilmente compreendido e consegue passar as mensagens com muita facilidade, uma verdadeira arte de comunicar. Podemos ou não concordar com ele, mas há algo que não se lhe pode negar, revela sinceridade e espontaneidade, e tem arcaboiço mais do que suficiente para suportar quaisq

Cães

Lembro-me de algumas histórias ocorridas com cães, umas agradáveis e outras nem por isso. Em pequeno fugia como o diabo da cruz quando os via. Assustavam-me muito quando ladravam e quando me fitavam calados. No primeiro caso interpretava como um sinal de hostilidade e no segundo como uma ameaça iminente de ser atacado. Fugia. Sabe-se lá o que é que estariam a pensar de mim. Para comprovar as minhas preocupações, um cãozito rafeiro, Piloto de seu nome, lembrou-se um dia, à calada, de ferrar a sua bocarra no meu traseiro. Estava a acenar, no final de uma tarde de verão, ao comboio rápido das sete. Sacana. Doeu que se fartou e, depois, o mercurocromo fez o resto. Dois dias de rabo alçado. Se tinha medo com mais medo fiquei. Mais tarde, o Pinóquio, quem sabe se a reencarnação do anterior, nunca me chateou, nunca me ladrou, mas era um animal esquisito, sofria de satiríase à enésima potência. Chegava a desaparecer dias seguidos. Quando perguntava por ele ao dono, respondia-me, "foi às

Dois sítios

Há sítios que obrigam a encontrar-nos, encantam, seduzem e tranquilizam. Não são muitos, mas existem. É preciso procurá-los ou deixar que nos procurem. Opto pelos últimos.  Dois momentos despertados pelo trabalho, dois locais distintos, dois pontos diferentes, duas fontes de emoções, duas atmosferas de reflexões, dois impulsos da alma e duas explosões de escrita. Transcrevo-os. "Estou no meu sítio. Encontrei-o. Sinto-me bem. Quem diria que que num espaço destes pudesse encontrar-me também. Olho em redor e não há frio nem calor, nem sombra de dor. Olho em redor e sinto calor, mesmo num dia frio. Que estranha sensação. Que deliciosa sensação. Desde cedinho que tudo fiz para estar aqui e dispor o pouco tempo que iria receber, aumentei-o, dilatei-o e transformei-o no meu tempo, tempo de tranquilidade, tempo de paz, tempo de saúde, tempo que não quero que se mova, que não ande, que pare, se possível de vez, porque eu sei que há de chegar a minha vez.  Encontrei o meu espa

"Fugir à justiça"...

Morreu a freira espanhola acusada de ter roubado filhos a mulheres à nascença distribuindo-os, ou "vendendo-os", a famílias desejosas de satisfazer as suas libidos maternais. Um escândalo, uma verdadeira iniquidade, que pôs muitas mulheres na loucura quando souberam ou se aperceberam da maldade que lhes tinham feito. No caso vertente o problema é agravado pela circunstância de estar em causa uma religiosa, alguém que pela natureza e particularidade da condição abraçada consegue exponenciar ao infinito a maldade humana encapotada pela sombra da capa de serva de deus e do amor ao próximo. A denúncia ou qualquer comentário a propósito deste caso, tratando-se de uma irmã da caridade, é capaz de ser entendida por alguns proselitistas como um ataque à religião católica. Uma atitude que considero uma obscenidade, já que o que está em causa não é a religião, ou os seus princípios, mas quem os adultera e abusa da sua sombra. Aqui é que está o cerne do problema, um atentado aos direi

Recriação

A evolução da espécie humana é muito aliciante, em todos os aspetos, cativando mesmo os não especialistas ao quererem saber mais sobre o seu passado.  Quando se esbarra em enigmas somos de imediato confrontados com a elaboração de teorias e vários tipos de especulações. Criam-se deste modo explicações deliciosas, que, apesar de nem sempre corresponderem à verdade, enchem os sonhos míticos de uma espécie que até hoje ainda não provou a razão da sua existência. Somos um artefacto, uma singularidade sem pés nem cabeça, uma espécie que deixa muito a desejar e que, pelo andar da carruagem, nunca irá a lugar nenhum. Nem mesmo certas iniciativas, algumas conquistas e interessantes manifestações artísticas e culturais são capazes de manter viva a esperança num futuro melhor, porque somos submergidos nas ondas da tortura, do sofrimento, da iniquidade e da intolerância.  Observo com algum cuidado a emergência de explosões provocadoras por parte de alguns pensadores. Foi o caso de um cient

Quando morre um amigo...

Foi um fim de semana devastador, chuva, vento, tempestade, destruição, falta de luz, alteração dos hábitos, regresso a um passado não lembrado, uma sensação diferente, um esboço de anormalidade que nos faz despertar para a realidade da fragilidade humana, dependente de tudo e de todos. Uma lição de humildade que em breve será esquecida. Nem os resquícios de árvores tombadas, nem o rugir dos cursos de água, nem as pedras roladas das encostas são capazes de mudar o que quer que seja. O mundo gira a uma velocidade louca em que o esquecimento é rei e senhor. O tempo, meio escalavrado, serve para isso mesmo, para nos relembrar a nossa frágil e fatal perenidade. Assusta, e muito, mas ao mesmo tempo recoloca-nos num estado de letargia, à espera de alcançar um qualquer utópico nirvana, como se tivéssemos direito à felicidade. E não temos? Não sei, nem me interessa, o que importa é viver na ilusão de que sim. Foi tudo alterado. Ainda bem, assim, a rotina patológica do fim

Chapéus-de-chuva

Fim de tarde, chuvosa, irritante, deprimente, fria de sentimentos e despovoada de gente. Saio pela porta principal e sou aspergido por gotas amaldiçoadas de um tempo de homens sem tempo, de um povo descoroçoado, de almas sem esperança. O avolumar das notícias e dos acontecimentos são verdadeiras e destruidoras tempestades para quem quer viver e não sabe como, seres que nasceram na esperança de um futuro melhor, um futuro que se transformou no presente repleto de ouro da angústia e de prata do desespero, seres que sofrem na carne e na alma fomes sem sentido. É desesperante chegar a um ponto da existência sem que se consiga descortinar caminhos ou vielas para a vida. Ei-los nas faculdades. Ei-los a prepararem-se para o futuro, mas qual futuro? O desemprego decerto, antes de tudo, e, depois, uma ou outra ocupação temporária, quase sempre sujeitos a regras que envergonham os tempos idos da escravatura. Sempre ganham em estudar, dizem. Sim, ganham conhecimentos que

"Liga dos Maltrapilhos"

Não é difícil compreender a afirmação de que escrever é o mesmo que andar à procura de problemas. Seja, sempre é melhor do que estar quedo e mudo. Os “atrevidos” são, muitas vezes, direta ou indiretamente, convidados a não se pronunciarem sobre determinadas matérias ou problemas. Pessoalmente não tenho razão de muitas queixas, embora já tenha sido objeto de atenção por parte de alguns proselitistas, que, fiéis aos seus dogmas, pensam que são os únicos detentores da verdade. Quase que me apetecia contra-argumentar dizendo que cérebro e intestino andaram sempre ligados durante a evolução darwiniana; quem sabe se por isso não possamos explicar tais comportamentos.  Face à situação em que vivemos não é difícil de verificar a explosão de um sentimento de revolta e de indignação. Paira algo de estranho em Portugal que merece ser analisado. O cidadão comum anda atordoado, sente que está a pagar uma fatura pesada, dura, inconcebível, provocada por uns sacanas que sabem “honrar” como ning

Alma única

Discute-se imenso, por vezes com muita paixão, a questão do direito à eutanásia, que muitos consideram ser uma iniquidade, um atentado contra a vontade divina a quem é atribuída o direito exclusivo de dispor da vida e da morte. Compreende-se que mexer na vida, encurtando-a, possa ser considerado como um crime, um atentado aos direitos humanos, porque, apesar das condições em que é pedida, dramáticas, impossíveis de resolver, pode levar a um abuso ou banalização. Presumo que são estes os dois perigos, o não respeito pela vida concedida por um deus e o risco de banalização. A maioria dos países opõem-se à eutanásia ativa, embora "fechem" os olhos à "passiva" ao considerarem o "encarniçamento terapêutico" como uma forma inumana, violenta e obscena de prolongar inutilmente a vida à custa de meios terapêuticos que hoje são bastante sofisticados. Este último aspeto parece ser consensual mesmo entre os obedientes da vontade divina. Um passo positivo. Quanto à

Um momento diferente num dia igual a tantos outros...

Sou atraído pelos mesmos espaços, pelas mesmas figuras, pelas mesmas lembranças, pelos mesmos desejos, pelas mesmas aspirações e pelos mesmos medos. Não sei se tais atrações me acalmam ou provocam mais ansiedade. Não consigo descortinar nada que possa dar sentido a mais um dia da minha existência, mas tento, tento fugir e tento encontrar, mas nem fujo nem encontro. Limito-me a aceitar o que me aparece, não me resta outra alternativa, as nuvens são as mesmas, distorcidas e enegrecidas, as árvores são as mesmas, tristes e despidas, o ar, frio e choroso, é o mesmo de outras alturas, as faces das pessoas são as mesmas, inquietas, belas, feias e vazias, e eu sinto-me aprisionado neste estranho planeta sem sentido e sem rumo, escravo de leis que não sei para que servem, talvez para me atormentarem. Fujo e escondo-me na velha capela, roubo imagens a silenciosas figuras de madeira, perdidas, despidas, à espera de algo, um pouco semelhante ao que procuro, saber porque estão ali e porque é que

Cinzas da vida

A tirania do tempo é uma constante a que ninguém consegue fugir, quer que o contemos em segundos, em anos, no seio da própria eternidade ou no silêncio da morte. Marcamos tudo e todos em sua função, vivemos, amamos, sofremos e descansamos com ele. Talvez seja por isso que damos tanta importância aos aniversários, quaisquer que sejam, como se terminasse um ciclo e se iniciasse outro. Uma monotonia cíclica que nos permite reviver o passado, dar algum significado ao presente e desejar que tenhamos futuro.  Fazer anos é uma forma de ajoelhar perante o deus Chronos, mesmo para os que não gostam de prestar culto a quem quer que seja. Eu ajoelho-me e recordo que, pela primeira vez, comemoro um aniversário sem a presença da minha mãe. Esvoaço rapidamente pelo passado e inundo-me de imagens, sons, cheiros, sol, frio, chuva, doenças, sabores, carícias, presentes e muita ternura numa estranha amálgama em que os diferentes momentos se confundem, convergindo todos para o mesmo ponto, a comemora

Voluntários de Coimbra

Há momentos da vida em que sinto necessidade de confessar alguns pensamentos, ansiedades e esperanças, como se a deusa da liberdade me obrigasse a partilhar com o  próximo aquilo que muitos protegem, a intimidade. Deve ser mais o efeito da idade do que qualquer outra coisa. Não interessa.  Em criança ficava seduzido pela "bomba". Um carro comprido, vermelho, descapotável, com os bombeiros sentados dos dois lados, um deles a tocar a campainha, avisando as pessoas, voando pela estrada. Antes, no quartel, tocava a sirene angustiada com os seus diferentes toques, fogo em pinhal, acidente, fogo em casa, toques que acabei por aprender. Na altura largava-se tudo, as pessoas corriam para o "balcão", fosse noite ou dia, para saber o que tinha acontecido. O rápido matraquear dos passos nas pedras das ruas denunciavam a ansiedade da tragédia, ao mesmo tempo que as janelas se abriam libertando vozes de todos os tipos que interrogavam os passantes, o que é aconteceu, onde é

Dia de Reis

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Antevendo a depressão de mais um domingo à tarde, agravada pela tristeza de um curto dia de inverno, dia repleto de sol mas incapaz de dissipar o frio, hesitei entre dormir e dar um pequeno passeio. Deixei-me dominar pela melancolia e fui na cantiga de Morfeu. Sedução que me libertou momentaneamente da angústia dos sentidos e do temor do futuro. Mesmo assim, meio adormecido, senti o apelo do passeio, como que antevendo o achamento de algo que me desse prazer, que justificasse a minha vida, que me recordasse o passado e que profetizasse o futuro. Foi o que fiz. Saí de casa e acabei por calcorrear um velho caminho mais do que conhecido. O tempo de sol que restava não era muito, mas mesmo assim ainda oferecia alguma garantia de pormenor.  Sei, por experiência própria, que passando várias vezes pelos mesmos sítios corremos o risco de encontrar coisa novas. Foi o que aconteceu. Ao longo da ribeira ouvi sons diferentes, mais quentes, mais musicais, mais alegres, mais despidos, mais selva

Reis magos

Adoro lendas e mitos, pela poesia, beleza e simbolismo que encerram. Considero as mais perfeitas criações humanas, estimulam os sentidos, preenchem o vazio da existência e acalentam esperança.  Há muito que andava para ler "O Milhão", considerado como um dos documentos mais notáveis da humanidade, livro que relata as viagens de Marco Polo. Escrito há mais de setecentos anos, enche as medidas de qualquer um, pela forma, pelo conteúdo, pelas histórias e descrições relatadas, muitas consideradas fantasiosas, a ponto de, no limiar da morte, os amigos, receosos pela sua alma, rogaram-lhe que se retratasse; Marco Polo declarou: "Só contei a verdade, e apenas metade do que vi.”  Das muitas histórias que me marcaram, destaco uma, a dos reis magos. Os reis partiram de Sava, cidade persa, onde acabaram por ser sepultados. Diz Marco que deve ser verdade, porque a três dias de viagem existe um castelo de adoradores de fogo. Há uma razão para que os reis magos adorassem o fogo.

Saudades do pão...

De manhã cedo, assim que ouvia a buzina da bicicleta a tocar insistentemente, abria de imediato a porta e via a máquina com duas largas anquinhas de verga, tapadas com um pano branco, estacionada junto ao muro. Quando o padeiro destapava os cestos, um cheirinho quente e saboroso a pão fresco invadia subitamente o terraço, perfumando o nevoeiro ou o fresco matinal. Pegava num papo-seco, estaladiço e meio oco. Corria para casa e barrava-o com manteiga, que se derretia deliciosamente em contacto com as paredes ainda quentes, seguido de sôfrega ingestão, desfrutando a saborosa gordura embrulhada na doce textura do trigo, sempre acompanhado do café fumegante de cevada, porque isso de beber leite causava-me enjoos. Ala que se faz tarde, mas mesmo assim ainda levava mais um para comer a meio da manhã na escola. Quando ia comê-lo já estava mole, meio esmagado pelas tropelias, e frio. Ao abrir a saca, os outros meninos olhavam para mim. Via que o cobiçavam. Perguntava se quer

Lenda do vinho

O período de férias é muito agradável porque permite um convívio mais íntimo com os netos. Não há pressas, fala-se mais facilmente, atende-se a pormenores, que de outra forma seriam soberanamente ignorados, e leva-nos a divagar e a criar histórias para o futuro. A neta mais velha, subitamente, durante o almoço, interpelou-me: - Vovô, sabes como é que apareceu o vinho? Olhei para a miúda e lembrei-me de uma velha lenda. Comecei a contá-la. Permanecendo em silêncio, enquanto comia a sopa, disse-lhe que o lendário rei persa, Jamshheed, gostava de comer uvas todo o ano. Para o efeito eram armazenadas em jarras, potes ou tonéis, enfim, num qualquer contentor da época. Um dia, as uvas retiradas de um desses potes estavam amargas, além da presença de um líquido com estranho aroma, que foi considerado como veneno. A jovem esposa, dada à tristeza e à depressão, resolveu aproveitar o tal líquido, classificado como veneno, para por fim à vida. E se assim pensou, melhor o fez. Ao consumir o lí

Inocentes

Gosto de ler um bom livro. Gosto de conhecer um novo autor. Gosto de me isolar e deixar levar na onda de uma deliciosa narrativa. Gosto de esquecer que existo ao embrenhar-me em páginas de dor, de alegria, de tristeza ou na intimidade de personagens criadas, reais, fictícias, não interessa, elas existem mesmo, seja na vida real, seja na imaginação ou no estranho purgatório da existência, com um pé neste mundo e a alma no outro. Gosto. Nem sempre consigo encontrar uma fonte de leitura que jorre desde a primeira à última página lágrimas de prazer ou gotas de sedução que, ao invés de matar a fome, sabe criar desejos e despertar a sede de novas emoções. Quando tal acontece sinto um efeito equivalente ao estado de semi embriaguez, fica-se consciente e livre para voar entre as nuvens da felicidade ou afundar sob o sol da inquietação. Foi o que aconteceu com um pequeno livro de um escritor espanhol, Ramón J. Sender, "Requiem por um camponês espanhol". Adquiri-o numa daquelas feira