São Brás


Soube desde muito pequeno que o dia 3 de fevereiro era dedicado a São Brás e o dia 2 à Nossa Senhora das Candeias, tudo por causa da minha mãe que nasceu a três e do seu pai a dois, avó que nunca conheci. Ouvi-a contar histórias de romarias à Nossa Senhora das Candeias, que para mim se traduziam em procissões em que as pessoas deveriam levar as típicas candeias, algumas das quais ainda havia lá em casa. Punha-me a imaginar as festividades e perguntava para quê "candeias". - Para alumiar os nossos caminhos, dizia. Claro, pensava, de noite dá muito jeito levar uma candeia pelos caminhos. - Não é para alumiar os caminhos, é para alumiar as almas, para que não façam disparates. - As almas precisam de candeias? Então, elas não veem no escuro? - Veem, mas olha lá, não consegues fazer outro tipo de perguntas? - Consigo. E para que serve o São Brás? - Para curar as doenças da garganta. - Ai sim? Então por que é que o Brás, que tem o nome do santo, anda com aquelas escrófulas no pescoço? - O Brás, mas qual Brás? - O meu companheiro de carteira. - Explica-me melhor o que é que se passa com o teu coleguinha. Eu expliquei-lhe que andava doente, com panos e pensos ao redor do pescoço, que deitava uma espécie de pus, parecia queijo derretido e queixava-se do incómodo e de dores na garganta. - Ora, se ele se chama, também, Brás, tal como o santo, que tu dizes que cura as doenças da garganta, então, deveria curá-lo porque tem o seu nome. Era o mínimo que podia fazer. - Mas para isso tem que rezar ao santo e ir em romaria. - Onde está o São Brás? Desesperada, dizia: - Olha, não sei, hoje é o dia dos meus anos e tenho que fazer um bolo. Não queres comer bolo? - Quero pois. - Então faz o favor de bater os ovos, a farinha e o açúcar. - Só se me deixares rapar o tacho no fim. - Deixo, mas é só rapar, não te ponhas a comer a massa, porque depois faz falta. Uma delícia lambuzar-me com aquela doçaria.
Todos os anos comemorava os seus anos, presencialmente, e, depois, telefonicamente.  
Dava os parabéns e um beijo e lembrava-lhe o dia de São Brás. Foi assim durante muitos anos, até que para o final lhe perguntava: - Sabes que dia é hoje? - Não. - Não? Não sabes que é dia de São Brás? - Não sei. É? - É. Em seguida, como o silêncio queria entrar em cena, dizia-lhe: - Hoje fazes anos! - Faço? - Fazes. - Se o dizes, está bem. A conversa continuava entremeada de meias lembranças a quererem impor-se a um esquecimento atormentador. 
Hoje não lhe telefonei, hoje não lhe falei, hoje não lhe dei um beijo, hoje não consegui lembrar-lhe que era dia do seu aniversário, dia de São Brás. Hoje, em silêncio, estive a seu lado, lembrei-me dela, de São Brás, de bater e rapar a massa dos bolos, e senti um aperto angustiado na garganta para o qual não há São Brás que valha.

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