Sonho



Encontrei um velho amigo, que começou, tal como eu, a sentir abruptamente a ameaça de uma velhice prematura. É certo que algumas maleitas já começam a manifestar-se, mas, mesmo assim, ainda vamos conseguindo controlá-las, graças à experiência e aos nossos conhecimentos médicos. Uma vantagem, sem dúvida, mas que não consegue impedir ou proteger-nos dos efeitos de uma sociedade desestruturada e sem perspetivas. A conversa levou-nos num ápice ao período revolucionário de "74" e à estranha mescla de confusão e de esperança resultante da mesma. Dissertámos sobre revoluções, a nossa, a que vivemos, e outras que foram vividas pelos nossos familiares. Concluímos, rapidamente, como não poderia deixar de ser, que as revoluções servem um propósito, acabar pela força aquilo que não se consegue pelo bom senso e pela palavra. Foi sempre assim, quando a sociedade não consegue resolver os seus problemas de forma pacífica, não lhe resta outra alternativa se não usar as armas. - Pois! É de facto a melhor solução. Disse. No entanto, recordou-me: - Mas só no caso de não estarmos em democracia. - Queres dizer que pelo facto de vivermos neste regime, ("democrático"), não pode haver uma revolução? - Claro, parece que não. - Hum! Olha lá, tens a certeza de que estamos num regime democrático? Com tantos sacanas, vigaristas e trafulhas? Desonestos a dizer basta? Capazes de utilizarem todos os subterfúgios ao seu alcance, poder económico, falta de ética e uso indevido da própria justiça, o soberano pilar que deveria proteger a sociedade? Tens a certeza de que estamos a viver em democracia? Ou será que estamos a viver num palco a representar uma tragédia, um drama "democrático", cujo final anunciado é mais do que evidente para gáudio de alguns filhos da puta que, soberanamente refastelados, gozam connosco, pobres atores? - Olha lá, mas tu queres fazer uma revolução? Tu ainda sabes pegar numa arma? Pensei um pouco e disse-lhe: - Tu bem sabes que eu nunca gostei de armas, mas quem é que desmontava e montava uma G3 em menos tempo? Vá. Diz lá. - Está bem, eras tu, mas hoje já não há G3 e nós somos médicos e médicos não devem utilizar armas. - Está bem, não devemos usar armas, mas interrompíamos a nossa atividade e depois já podíamos pegar nelas. - Nas G3? Já te disse que não as usam! - E depois? Sejam quais forem as que usam hoje em dia eu, em pouco mais de cinco minutos, era capaz de aprender a desmontar e a montar uma. Riu-se. - O pior era a culatra! - Mas o que é que tem a culatra? - Nunca conseguiste colocá-la. - Pois não, como é que tu querias se nunca ma deram. A conversa de dois candidatos sexagenários a quererem transformar-se em revolucionários continuou durante um bom bocado, até que o meu amigo me questionou: - Diz-me o que é que tu fazias se fizesses uma revolução. Confiscava todos os valores aos sacanas que nos espoliaram até à medula dos ossos, caçava alguns gajos que estão atravessados aqui, no meu goto, e mandava julgá-los como deve ser. Riu-se. - Estás mesmo a envelhecer, nem te conheço, tu, um humanista, um defensor dos direitos humanos a sonhar com revoluções? - E depois? Tens uma solução melhor? Se tens diz-me, pode ser que adira. - Não, não tenho. - Ah, estás a ver? E se os que têm as armas em seu poder as usassem? - São piores do que tu, podem ter as culatras, mas não têm c... - Pois não, não têm, não senhor. São uns castrados!
Acordei meio estremunhado e ansioso por ter que viver mais um dia, um dia negro, doloroso e sem esperança. Um sonho que deu lugar ao pesadelo do dia-a-dia. 

Comentários

  1. Um sonho que conquista dia-a-dia, maior número de sonhadores.
    Desde o início do texto, algo me disse que o diálogo se travava entre o Massano Cardoso e o Massano Cardoso. Assusto-me um pouco quando percebo que começo a conhecer melhor as pessoas, cresce-me um certo sentimento de que estou a invador-lhes o mais íntimo de si mesmas.
    Agora ao que interessa.
    Armas, podem ser de diferentes géneros; as que usam culatras, e balas; as que arremessam palavras e ainda, as que operam pela atitude.
    é óbvio que esta última exige carácter e coragem, mas, num contexto de pseudo-democracia, em que a ditadura se impõe, a adopção de uma atitude objectora, é a que poderá resultar em maior eficácia.
    E objectar não tem de ser remar contra a corrente, ou boicotar, ou atentar contra. Basta que seja uma marcação séria e inabalável, convicta de que não se quer o que está, como está. Para isso, basta-nos não anuir, não obedecer e, paralelamente, ir construindo a alternativa.
    Sexagenário?!
    Pfhhh!!!
    Também eu. Mas ainda temos muito para dar, meu Amigo!

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