"Quem vê de fora vê melhor"!


Primavera instável, chuva por tudo o que é sítio, lágrimas de um tempo desesperado e sem futuro a querer atormentar-nos a existência. Chuva da semana santa a lembrar que as divindades que se passeiam nesta época também sofrem connosco. Só podem.
O trabalho obrigou-me a viajar até à capital. Há algum tempo que não prestava vassalagem à gorda, à dona, à meretriz, à amada mais odiada. Levantei-me de madrugada. Cedo de mais!  Enfim, um erro de horas, mas mais vale assim, porque não se pode fazer esperar a mãe do país, pode irritar-se. Esperei eu, não me custou nada, arranjo sempre maneira de usar o tempo em meu favor. Lá fora, a chuva e o vento dançavam freneticamente como se fossem atingidos pela doença de São Vito, atemorizando-me, como quem diz, quando saíres daí vais ver o que te vai acontecer. E aconteceu, molhou-me e irritou-me. Na baixa, abrandou a sua irritação, permitindo que almoçasse em paz. Depois, passeei, tinha de fazer horas para outra atividade, a conferência ao final da tarde. Fiquei incomodado, porque de cem em cem metros um pedinte perturbava-me o meu sossego, nem a chuva os conseguia demover daquela necessidade em procurar no bolso dos outros aquilo que não tinham nos seus. O incómodo provocado pelos pedintes contrastava com a indiferença e, até, porque não dizer, o desprezo dos sem-abrigo, que, através de olhares enigmáticos, conseguiam afugentar o meu. Mas não pediam nada, olhavam, simplesmente. Passei por locais conhecidos. Gosto de passear por locais conhecidos, sem tempo, sem destino, sem razão, apenas passear. Nem o vento, nem a chuva, nem o incómodo dos transeuntes, com as suas tristezas, olhares sem sentido e cheiros a falta de água me impediram de procurar velhas referências, muitas desaparecidas e outras vilipendiadas pelo destino. Acabei por encontrar um velho livro, "Le Portugal", num dos alfarrabistas. Gosto de ler o que os estrangeiros dizem de nós, talvez devido à máxima, "quem está de fora vê melhor". Publicado em Grenoble, em 1935, rico de belas ilustrações, permitiu-me, num dos acessos de raiva de um tempo epilético, que o acariciasse num velho café, paredes meias com uma livraria desaparecida, para meu desencanto, e numa zona que já conheceu melhores dias. Semi degradado, ou, então, seria a minha visão, a descambar para a decadência, que lhe dava esse aspeto. Não interessa. Como tinha muito tempo para cumprir o meu compromisso de fim de tarde, deixei-me embalar no seio da bela cidade, hoje cinzenta e chorosa, lendo o livro acabado de adquirir. Sempre estava abrigado do mau tempo, do ataque grosseiro dos pedintes, do olhar enigmático dos sem-abrigo e de uma estranha patetice citadina a bailar nos olhares dos transeuntes. Mesmo assim, amo esta cidade, apesar da tristeza do dia. Confortaram-me os autores de "Le Portugal", logo na abertura, no capítulo, "Chegada a Lisboa". Contam a seguinte lenda que desconhecia: "Um dia, há muito tempo, um cruzado, ao chegar a Jerusalém, pediu a um mágico que lhe mostrasse num espelho a mais bela cidade da Europa. Aos seus olhos deslumbrados apareceu Lisboa..."
Deixei-me embrenhar no texto, saboreando a leitura em francês da nossa forma de ser, de estar e da riqueza de um povo que desconhecia poder ser apreciada por outros, numa época em que a pobreza e as dificuldades seriam muito mais gravosas do que são atualmente. Soube-me bem. Talvez, um dia destes, possa esmiuçar alguns capítulos deste livro, a testemunhar que quem "vê de fora vê melhor"...

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