"A oliveira e os Pássaros"...


As tarefas profissionais aprisionam-me nas suas malhas absorventes e grades de responsabilidade, atormentando o desejo de fugir para a liberdade. Ontem, dia da espiga, não fui livre e nem parei um momento que fosse. Tive inveja dos pássaros e senti saudades do primeiro dia em que me inculcaram o seu significado. Como qualquer criança que se preza, reti somente o que de mais fantasioso havia nas palavras da minha avó, o resto não entrou nessa altura, ficou para muito mais tarde. Na velha cozinha, a sala do trono da casa, onde se fazia toda a vida da altura, contou-me, na véspera, que amanhã é um dia muito sagrado, tão sagrado, tão sagrado que nem os passarinhos põem as patinhas no chão. Abri a boca de espanto. Continuou, é o dia da Ascensão de Nosso Senhor ao céu, e as oliveiras, aquela hora prestam homenagem cruzando as suas folhas. A boca, que já estava aberta, manteve-se durante mais tempo sem que pudesse dizer nada, tamanho era o meu espanto. Continuou nas suas descrições, como as merendas que se iam fazer para o lado das Pedras Negras, chamado "o buçaquito", talvez em consideração ao Buçaco, floresta onde as romarias se faziam sentir com outra dimensão. Não me interessou muito este aspeto, o que eu queria mesmo era ver as folhas das oliveiras em cruz e se os pássaros punham ou não as patinhas no chão. - A que horas é que eu posso ver isso? - Quando derem doze badaladas no sino da torre. Passei o resto da tarde ansioso e    a pensar como é que poderia arranjar maneira de, no dia seguinte, ver tamanhos fenómenos. A minha idade não me permitia que saísse de casa à procura de oliveiras, mas não preocupei muito porque no quintal havia uma, embora pequena. A manhã não passava com a velocidade que desejava, subia e descia as escadas, rondava freneticamente a oliveira e ouvia os cantos frenéticos da passarada. O sino começa a tocar e, junto da oliveira, preparei-me para assistir ao cruzamento das folhas. Acabou de dar a última badalada e nada. Esperei, esperei e nada. Ansioso, tive vontade de ir à cozinha perguntar à minha avó porque é que o fenómeno não estava a decorrer, mas com medo de que elas entretanto se pusessem a beijar, não arredei pé. Eu ouvia a passarada e, de facto, nenhum deles colocou as patinhas no chão, mas a minha atenção estava presa à pequena oliveira. Ouço-a a chamar-me para ir almoçar.  Triste e cabisbaixo entrei na cozinha dizendo-lhe que a oliveira não tinha cruzado as folhas. Sorriu e explicou-me, mas a oliveira do quintal é pequena é muito novinha e ainda não sabe que dia é hoje, é como tu, é uma criança. Viste algum pássaro por as patinhas no chão? Não, não vi. Pois, esta hora é muito sagrada para nós e também para eles. Fiquei um pouco mais tranquilo com a explicação. À tarde fui merendar até ao "buçaquito".
Ontem, ao meio-dia, ao sair, ouvi no pequeno espaço arborizado muita passarada a cantar. Fiquei durante alguns momentos a ver se algum deles punha as patinhas no chão, não, por acaso, não vi. Não havia oliveiras, mas recordei uma, pequena, éramos, então, crianças, hoje poderia ser adulta. Ceifaram a oliveira, mas não vou deixar que ceifem a minha lembrança...

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