Mandrongo...

Passar pelo tempo é partilhar vivências, sentimentos, emoções e saborear recordações. Passar pelo tempo é esquecer as más memórias. Não as esquecemos? Não faz mal, é sempre possível retocá-las com cores menos dolorosas, desenhando traços finos de saudade. Passar pelo tempo é transformar a realidade do passado no encanto do mundo da fantasia. São momentos deliciosos quando conseguimos misturar tudo, imagens dinâmicas, coloridas e quentes, com desejos ardentes, sensações estranhas, cheiros deliciosos, emoções perdidas e vontades achadas. O tempo mistura tudo, sem respeito por ele próprio, criando novas realidades que só ele sabe. O tempo faz esquecer a realidade dos momentos do passado, confundindo-nos propositadamente para que a saudade tenha outro sabor e cheiro. O tempo consegue o impossível que é recriar situações temporais distintas como se tivessem ocorrido no mesmo momento. Vale a pena viver a fantasia da realidade, uma fonte de prazer a que não devemos fugir. 
- Então, ainda cá estamos?
- É por pouco tempo. Deve ser a última vez que nos vimos.
- Oh homem não diga isso.
- Digo, digo, eu é que sei.
- Mas não está a dar a côdea, pois não? O miolo ainda funciona. Um sorriso alargado, com alguma baba a cair do canto da boca a testemunhar o ocorrido há cerca de trinta anos, fez-me recordar o passar do tempo.
- Afinal, envelhecemos juntos. Disse-lhe meio espantado.
- Pois é, mas ainda vai sentir saudades minhas. Vai ver que vai. E bate com o punho no peito, dando a entender a fragilidade crescente do corpo e da alma a querer libertar-se.
- Vá, deixe-se disso, vamos daí. Suba. Subiu com muita dificuldade.
- Estou um mandrongo.
- Qual quê! Vamos conversar um pouco. E assim foi, com alguma provocação à mistura, ou melhor, com muita, as lembranças iam-lhe saindo a uma velocidade razoável, tendo, por vezes, misturado momentos, prazeres e aventuras, algumas mesmo loucas, quase que diria irreais. Uma verdadeira caldeirada de sabores, experiências, vivências e sentimentos que rapidamente despertaram velhas emoções fazendo com que o tempo andasse num corrupio louco, saltando anos, não interessa quantos e nem como, o que interessa foi recordar o passado através de tempos diferentes que eram e são sempre seus, e alguns também meus. Uma alegria efusiva, acompanhada de sonoros risos, inundava-lhe a fácies conseguindo repuxar os beiços descaídos, num interessante rejuvenescer em que o futuro conseguia mergulhar no seu passado.
Uma delícia, um alívio, sentir a vontade louca de recordar o que aconteceu como se o presente necessitasse desse belo e estranho alimento. O tempo da conversa não passou, foi apenas saboreado como se tratasse de um delicado copo de vinho. Mais uma memória construída para ser recordada amanhã. Amanhã? Não, ainda hoje, enquanto é tempo. 
Eu não sou mandrongo.   


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