Pelo brilhante...


Fugir para locais conhecidos é a melhor forma de não perder o sentido da vida. Sempre crente de que o espaço, o tempo, os odores, o vento, as melancólicas águas da ribeira e o ritual absurdo do sol, que se levanta sorridente umas vezes e triste outras, desejam ardentemente enganar-me, como se fosse um dia diferente, cheio de inesperados acontecimentos. 
O livro escorria entre os meus dedos sempre que aparecia um som diferente, fosse o coaxar de uma rã, desafiando as palavras que ondulavam debaixo dos meus olhos, fosse o matraquear de falas chocas de quem gosta fazer-se ouvir. O livro transportava-me para outras épocas e locais. Ia e voltava.  Unia-me ao passado e o passado unia-se a mim, tentando criar um mundo sem tempo e sem espaço. O sol, para quem o nosso tempo não conta nada, um mero pestanejar de enfado, era o denominador comum.Tentei desligar-me do pequeno mundo circundante. Deixei os olhos deslizarem pelas páginas enquanto o meu espírito se entretinha a ver e a ouvir tempos e culturas passadas. Seduzido por tais espaços, e por tão belos diálogos, não me apercebi da sua chegada. Um volume negro e brilhante, inesperadamente, roçou a minha perna. Assustou-me. Interrompi a leitura, um gesto de defesa face à ameaça. Não me mexi. O animal fez-me recordar um outro, o meu, também de pelo negro e brilhante. O animal parou, e a um palmo da minha cara fixou-me com um olhar estranho. Dois olhos castanhos, tristes e enigmáticos persistiam num perscrutar dos mais estranhos que já vi e senti. Ele via os meus e eu os deles, num silêncio físico que se manteve durante algum tempo, tempo do sol pestanejar duas vezes o que para ele é muito. 
Não sei o que é que ele estaria a pensar. Eu sei. Dois belos, tristes e enigmáticos olhos castanhos que, sob o pestanejar de um sol cheio de inveja,  porque nunca conseguirá penetrar na profundeza das entradas das almas, fez-me lembrar tranquilas, doces e inesquecíveis recordações...

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