"Ferir"...


Não tenho muito tempo para escrevinhar um pouco. Vou tentar. Preciso cada vez mais de tempo, de tempo para ler, para pensar, para escrever e para amar. Sofro ânsias por não ter tempo e sofro por o ter quando mo roubam sem pedir. Hoje feriram-me. Entrou com um olhar pastoso, desconfiado, a combinar com a flacidez de um corpo na meia-idade, mal cuidado por dentro e também por fora. Tomei as minhas guardas, temi que pudesse ser ofendido. O olhar, uma expressão estranha, estranha em termos de fealdade intrínseca, incomodou-me. Sobranceiramente debitou, sem lhe ter pedido nada, o que tinha e o que não tinha, interpretando antecipadamente alguma crítica decorrente de qualquer anormalidade que pudesse detetar. Calei-me e refugiei-me nos meus pensamentos. Tenho de ser cauteloso, a nuvem é negra e quer transformar-se numa intensa borrasca. Comuniquei-lhe a alteração em questão que teve como resposta não fazer a medicação por ser dispendiosa. Deixei-a discorrer o tempo que quis, e propus-lhe que sempre havia a possibilidade de corrigir o problema, problema que ela queria curar. Expliquei-lhe que a medicina trata muitas coisas, mas cura muito poucas. Arrogantemente deu entender a insuficiência da minha arte e ciência. Não retruquei, porque senti o desejo de ofender e de atacar. O olhar gelatinoso competia com a gelatina que botava de todos os poros. Vi que tinha formação cultural e preocupou-me o seu futuro. Dissertei doce e calmamente sobre o que poderia fazer para corrigir a sua anomalia a qual lhe poderia custar o encurtamento dia vida ou originar uma possível existência com sofrimento e limitações. Fi-lo com o desejo sincero de a ajudar. Expliquei-lhe que podia fazer uma terapêutica mais económica e tão eficiente como aquela a que se tinha sujeito e abandonado por motivos financeiros. Sempre era melhor do que os chás de folha de abacate. No final, ao sair, sem me cumprimentar, atirou-me de forma provocadora, às tantas já paguei alguma viagem ao médico. Repetiu mais duas vezes a afirmação, dando entender que os médicos são corruptos. Sorriu com um sarcasmo difícil de descrever e com um evidente desprezo para mim. Disse-lhe, não sei minha senhora, não sei e não a entendo. Bateu com a porta libertando-me daquele estranho olhar gelatinoso, frio e mesmo rançoso.
Pensei, mas por que razão é que devo ajudar certas pessoas, mais valia estar calado e deixá-la que bebesse o chá que entendesse. Não é que o chá lhe valesse qualquer coisa...
Consegui acabar de escrever a tempo de voltar ao trabalho.
Sinto-me mais aliviado...

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