"Passamento"...


Começa a ser muito frequente receber notícias de passamentos. É natural, penso, conheço muitas pessoas e já vivi alguns anos, logo, tenho que os registar, algumas vezes com naturalidade, outras com certo incómodo, por vezes com sentida tristeza e até mesmo com sentimento de perda. Começa a ser frequente receber notícias de passamentos. São tantos que às vezes chego a confundi-los com os meus pensamentos. São tantos que acabo por mergulhar em pensamentos construídos à custa das suas vidas e confissões. Quem diria que muitos dos meus pensamentos são frutos de vivências, do convívio, das confissões e do conhecimento de muitas histórias que a morte apaga num dia qualquer, indiferente a tudo e a todos. Desaparecem uns atrás de outros e eu acabo por ficar com algumas das suas recordações. Recordações que nunca partilharam com mais ninguém. Fui o único espetador de muitas representações singulares, em que a tristeza, a angústia, a amargura, o mistério, a volúpia, o ato reprovável aos olhos de Deus, mas nunca aos meus, foram-me oferecidos em toda a sua nudez, numa verdade pura a oscilar entre os extremos da condição humana e por esse motivo escondidos dos semelhantes. Segredos? Sim, muitos, talvez em demasia, mas suficientes para compreender bem a natureza humana. Segredos? Sim, muitos, talvez em demasia, mas suficientes para construir muitos dos meus pensamentos. Segredos? Sim, muitos. Guardo-os após a morte os ter apagado aos seus autores. E agora? O que é que vou fazer com eles? Guardá-los, claro, mas vou revivê-los nos meus pensamentos. Dou-lhes vida, conto-os para mim. Sempre conseguem viver durante mais algum tempo, mas acabarão por desaparecer. Um segundo passamento. 
- Hoje morreu o meu avô.
- Sim? Disse não muito surpreendido. Senti respeito, mas não fiquei incomodado. Disse-lhe, em tom de conforto:
- Ainda conseguiu viver dez anos! E com qualidade de vida. Nem sei como, mas cumpria com todas as minhas recomendações. Só assim se explica. Claro que era uma pessoa interessante. Nem imagina as histórias que me contou. Era cada uma. Valha-me Santa Ambrósia! Foram tantas, qual delas a mais curiosa e malandra. Estou certo de que só nós os dois é que as conhecíamos. Não acredito que as tenha contado a mais ninguém.
- Sim. Ele era malandro, mas nunca as contava. E se as contava ao senhor doutor era porque tinha muita confiança em si e fazia tudo o que lhe mandava.
À medida que a conversa decorria, tive que sorrir porque muitas das suas histórias assobiavam ao meu ouvido como se estivesse a ouvi-las da boca do próprio. Presumo que foi a primeira vez que ri a propósito da notícia da morte de alguém. Mas que fazer? Se ele pudesse ouvir a conversa decerto que daria umas boas gargalhadas e ainda era capaz de contar mais algumas historietas. Não tenho qualquer dúvida! 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II