"Confidência de um sino"...


Quem vive necessita dos outros. Sem eles a existência seria um inferno, vazia, dolorosa e deprimente, um convite à não-vida. Mas há quem viva sem gostar dos outros, ou, então, se gostar devem ser tão poucos como os dedos que lhe restam depois do arrebatamento do foguete nas mãos durante a festa que tanto abomina. 
Nasceu assim, com dedos para os perder, com dentes para nascer, que um dia desapareceram sem que ninguém desse conta que alguma vez os tivesse, e com um olhar vidrado sempre pronto a lançar quebranto aos vizinhos e, até, às pobres galinhas que cacarejavam angustiadas na rua sempre que o viam. 
Sombrio, sudoroso, sebento, sacana, sem fé, sem caráter, fazia arrepiar qualquer um. Até o sino parecia que perdia o seu belo timbre quando sentia que ele estava a observá-lo. Lembrava-se muito bem do dia do seu batismo. Esqueceram-se de que não havia água benta e para a substituir usaram a que estava dentro de uma pequena garrafa que alguém tinha deixado num canto da sacristia. No final, o sacristão, ao subir à torre para comunicar a Deus e ao mundo que o seu último filho tinha acabado de ser batizado, tropeçou nas escadas e só conseguiu obter um estranho sonido, mais de lamento do que alegria, quando ainda conseguiu agarrar-se à corda que pendia no longo fosso. DLIM, DLOM, dlim, dlim, dli e calou-se. Calou-se o sino e calou-se o sacristão. Lembrava-se muito bem disso. Não se recorda de ter tocado no seu casamento. Não se lembra, nem se podia lembrar, porque nunca se casou. Agora anda assustado. Se tiver que tocar aquando da sua morte ainda lhe pode sair um toque de alegria em vez de tristeza e de saudade, mas como erva ruim não morre, ainda vai respirando de alívio. Que morra longe, mas muito longe, pensa o velho sino incomodado pelo frequente mau-olhado que lhe lança frequentemente. 
O sino também necessita de vida, da vida dos outros, embora toque na morte, mas neste caso só se tocasse com o seu badalo na cabeça do safado. Vontade não lhe falta... 
Confidência de um sino. 

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