"O beijo"...


Viajar em Portugal é um privilégio. Ao fim de algum tempo mudam as paisagens, as humanas e as geográficas. Não há tempo para cair na monotonia. Não há tempo para saturação. Não falta tempo para poder saborear tantos prazeres. 
Entrei em Amarante como se tivesse saído há pouco tempo. Não foi há pouco tempo, não, foi há muito. A água era a mesma, a ponte era a mesma e a igreja também. Só o tempo é que era diferente. 
Passei em frente de Teixeira de Pascoaes, o homem que melhor caracterizou os portugueses. Está magro. Pois está. Está tísico. Entrei no museu Amadeu de Sousa Cardoso. Fui à procura dos seus quadros. Nunca tinha visto um ao vivo. Precisava de os ver. Há muito tempo que prometi a mim mesmo que os iria ver. E fui. Também gosto de cumprir as minhas promessas. Só preciso de tempo. O tempo, desta vez, deu-me um pouco de si. Agradeci-lhe. Coisa rara em mim ter de agradecer ao tempo. Mas fi-lo. Talvez por uma questão de cortesia. Fiquei com os sabores de muitas obras nos olhos e as de Souza-Cardoso no coração. Impressionaram-me. Pois. Ele é um impressionista.
Entrei na igreja. Foi a primeira vez. Da última, que foi há muito tempo, não tive tempo. Procurei o São Gonçalo, o santo a quem é atribuído milagres e "usado" para fins menos ortodoxos. Deparei-me com o seu túmulo. As pessoas entravam pelo lado esquerdo, rezavam, "tocavam-lhe", esfregavam as mãos no corpo, mãos, cara, e no manto. Sem preocupação de tempo vi as pessoas num ritual de beijar e esfregar a estátua jacente. Aproximei-me pelo lado direito, talvez contrariando alguma regra, e continuei a ver a fé das pessoas a tocar o São Gonçalo. Uma das senhoras, um pouco entradota, de baixa estatura, e carregada de negro, estava a rezar com muito afinco. Depois de beijar as mãos e o manto do santo, quis beijar a cara do santo. Pequena como era, antecipava-se o resultado, não conseguia alcançar a face enegrecida da estátua de São Gonçalo. Os familiares, ou amigos, que a acompanhavam, ajudaram-na a subir para um pequeno rebordo do túmulo. Com muita dificuldade, nervosismo e ansiedade, diluídos num olhar profundamente religioso, e indiferente a tudo, a todos e, inclusive, ao tempo, abraça com o braço esquerdo a cabeça do santo e com direito consegue alcançar o ombro esquerdo da estátua. Depois de se sentir segura beija o santo com um fervor que me perturbou. Os seus lábios colaram-se aos lábios do santo num ósculo difícil de descrever. Um estranho beijo, de amor, de respeito, de fé, de prazer, de alegria, de cumplicidade, não sei o que foi, só sei que foi o mais estranho e intenso beijo que vi até hoje. Não sei quanto tempo durou, se durou pouco ou se durou muito, não consigo recordar, senti apenas que o tempo parou. Depois de sair, aproximei-me da estátua e verifiquei algo de curioso, já não havia sinais de lábios. Pensei, tantas vezes o beijaram que até os lábios desapareceram. Sinais de desgaste da pedra eram evidentes. Ao passarem pelo túmulo não vi ninguém que não lhe tocasse, ou melhor, que o acariciasse, mas beijo como aquele, que vi logo à minha chegada, não vi mais nenhum. Perturbou-me.
Amadeu impressionou-me. Pascoaes continua a seduzir-me. São Gonçalo confortou-me. E uma senhora de idade, com o seu estranho beijo, perturbou-me.
Se "tudo está em tudo" também o tempo está no tempo. Só preciso apenas um pouco de tempo...

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