"São João"...


O mês de agosto, o mês de não fazer nada, é muito importante. O não fazer nada leva-me a fazer coisas que, de outro modo, não me lembraria de fazer. Abrir gavetas, consultar velhos papéis, redescobrir livros, apreciar e tocar os mais diversos objetos, mas sempre com um objetivo, recordar, viver e desfrutar episódios que se vão acumulando ao longo do tempo. Envelhecer é isso mesmo, trazer o passado até ao presente para ter a esperança de o poder recordar novamente num qualquer futuro.
- Onde está o "Galeno"? - Está na vitrina pequena. Vai vê-lo. - Está bem. Levantei-me e fui ver. Fica nem. Reparei que para colocar um objeto outro teria de ser "sacrificado". - Falta aqui o São João! - Pois falta. Foi para a outra, a maior, onde estão os teus "santos". Assim fica melhor, fica junto dos seus "irmãos". Coitado. Aqui sozinho e a vê-los além. Agora fica mais satisfeito. Abri a vitrina, retirei a peça e pus-me a analisá-la. - Já estás farto de a ver! - Pois estou. É uma peça interessante. Ingénua, bem conseguida, com um traço de santeiro artesanal. - Sabes, o velho do "Borrabotas" tinha mesmo jeito. Analfabeto, pedreiro da construção civil e santeiro nas horas vagas. Eu ainda o conheci e até cheguei a consultá-lo, não sei se foi a ele ou à mulher. Só sei que era recém-licenciado e fui a sua casa. Os dois, velhos e doentes, "jaziam" numa cama de ferro, num silêncio que me incomodou, como se estivessem a preparar-se para a grande viagem. Nessa altura desconhecia que fazia santos e conhecia pouco do seu passado. Depois disso fiquei a saber quem era, um pedreiro. O que me cativou mais foi terem-me dito que fazia santos, e contaram-me uma história a esse propósito. Parece que lhe tinham encomendado um santo, não sei qual o seu nome, que acabou numa igreja ou capela. Quando havia procissões era hábito - hoje também é -, de os levar a dar uma volta pela vila, para muitos devia ser o único passeio que faziam todos os anos. Eu recordo-me que, em pequeno, as pessoas se ajoelhavam à passagem de todos os andores. Passava um andor com um santo e tínhamos de ajoelhar. Depois levantávamo-nos, porque não fazia sentido permanecer naquela posição perante os fiéis. Quando se aproximava outro santo ou santa voltávamos a ajoelhar durante breves instante, às vezes só dava tempo para colocar uma rótula no chão. Hoje já não se vê isso. Um dia, durante um dos tradicionais passeios de santos e andores, o santeiro estava a desfrutar a procissão com alguns amigos. Passava um andor e todos se ajoelhavam, até que à passagem de um "santo" o "Borrabotas" não cumpriu com o formalismo, foi o único que ficou de pé. Chamaram-lhe a atenção para o facto, ao que ele respondeu: - Ajoelhar-me àquele? Era o que mais me faltava. Fui eu que o fiz e agora tinha de me ajoelhar ao gajo? Está bem, está! Era o que mais faltava.
Olho com alguma ternura para a peça que saiu das suas mãos, onde se pode ver a candura com que o São João, menino, dá alimento ao cordeiro sedento de fome, e lembro-me sempre da história da procissão e da tranquilidade da velhice a carcomer o seu corpo. Caiu-me um dia nas mãos. 
Um exemplo de arte, de sentimento, de beleza e de criatividade de um homem, cujo nome não me recordo, apenas sei que o apodavam de "Borrabotas", por ser pedreiro, mas para mim será sempre o criador de "São João, menino, a alimentar o cordeiro de Deus". 

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