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A mostrar mensagens de setembro, 2013

"Tempestade"...

Adoro as montanhas. Adoro ver as mudanças de humor, calma, suave umas vezes, agreste e bruta outras. Adoro ouvir as montanhas, adoro ouvir os seus sons, gritos de dor, urros de raiva, murmúrios de ternura, cantares de alegria e mudez de espanto. Adoro ver as montanhas. Têm vida, estão em constante movimento e são como os humanos, imprevisíveis, amorosos, violentos. Adoro as montanhas. Hoje, a montanha assustou-me. Chorou de raiva e gritou de dor. Os meus ouvidos tremiam sempre que a ouvia. As nuvens esbarravam nas encostas. Fugiam com medo dos violentos ruídos. Hoje, a montanha encantou-me. Vi nuvens atarantadas sem saberem por onde ir. Vi pássaros suspensos no ar lutando pateticamente contra o vento. Hoje, a montanha seduziu-me. Se pudesse, ficava ali até desaparecer o seu mau humor e ver novamente a beleza da tranquilidade das folhas douradas, dos verdes da vida e o encanto do vermelho de bagas. Hoje, a montanha acalmou-me. Regressei. Assim que cheguei pus-me a saborear as emoções

"Desenho"...

Há tempos, uma colega mostrou-me a fotografia de um quadro que retratava a igreja de uma aldeia. Obra de um parente seu. As cores eram vivas, quentes, cheias de alegria, como se o sol estivesse em todo o lugar, na torre, na cruz, no sino, nas paredes, nos muros, nas árvores envolventes, num casario indefinido e em carreiros tortuosos. Um quadro em que a realidade se tinha transformado numa visão que só um artista consegue colher. Neste caso, o quadro era quente, quente no tempo, quente na fé, quente no calor humano, quente para os não crentes, apenas quente, cheio de todos os tipos de calor. Nunca mais o esqueci. É uma daquelas obras que fica registada para sempre. Um dia cheguei a passar pela localidade em questão. Vi a igreja, as paredes, os muros, o arvoredo, o velho casario e os tortuosos carreiros. Vi. Gostei. No entanto, gosto mais da lembrança do quadro. Muito mais, porque apesar de ter feito a visita num dia de calor, procurei os outros calores, mas não os encontrei, apenas me

"Purgatório"...

Sinto-me numa espécie de purgatório, um local que sempre imaginei ser confuso, indefinido, triste, doloroso, cinzento, uma espécie de corredor da morte à espera da aplicação da sentença ou de uma inesperada mas pouco provável absolvição. Em pequeno ouvia aterrorizado os três patamares do outro mundo, a promessa do inferno era mais do que certa. O cinismo, o sorriso amarelo e frio recaíam sobre mim de forma violenta. Tremia sempre que o ouvia falar para onde iria caso não cumprisse com a ditadura e a norma da religião. Ir para o céu estava fora de questão, tamanhas eram as exigências e condições. Como não era destituído de razão não me foi difícil perceber que nunca lá poderia entrar. Restava o purgatório, um espaço confuso, indefinido, triste, doloroso e cinzento, no qual, na melhor das hipóteses teria de ficar quase uma eternidade a não ser que rezassem por mim ou metessem cunhas e mais cunhas para ir para cima. Nunca acreditei que tivesse tal ajuda para alcançar o céu. Vendo como

"A tela"...

O pintor pegou no pincel, deitou-o ligeiramente de lado sobre o montículo da cor, rodopiou-o com gentileza, embebendo-o de emoção, e começou a beijar a tela. A tela, pálida de ansiedade e ávida de vida, estremeceu ao primeiro contacto. Tentou perceber de onde vinha o calor da carícia. Uma breve carícia que desapareceu imediatamente, deixando-lhe uma sensação amarga e uma delicada dor a querer rasgar-lhe o peito. Não demorou muito esta inquietação, porque de seguida começou a sentir novas carícias, que lhe iam aliviando as dores e a ansiedade, enchendo-a de emoções, despertando-lhe prazeres nunca sentidos e embriagando-a de sensações voluptuosas. Fechou os olhos, cheia de curiosidade, tentando adivinhar quem lhe dava vida, e esperançosa em ter uma alma. Sempre desejou ter uma alma. Ouviu vezes sem conta conversas sobre a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e sobre ter alma. Sonhava em receber no seu peito a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e, sobretudo, ter alma. Quando olhava

"Meio-dia"...

A manhã passou depressa e o dia começou a enriquecer-se sem ter necessidade de fazer qualquer esforço. Ouço, comento, e depois deixo correr as almas dos meus interlocutores como se fossem bolas coloridas nas mãos de crianças. Mas não são crianças, longe disso, às tantas já têm dificuldade em recordar esses momentos, porque as doenças, os desencantos e as vicissitudes da vida, espelhados em olhos tristes e nos corpos doloridos, começam a fazer das suas. Sinto que têm vontade de voltarem a ser crianças. Sorrio. Empurro-as, e elas deixam, não se importam, até me agradecem. Contam tudo, falam de tudo, desnudam os seus pensamentos, dúvidas, temores e incertezas, quase que se esquecem das dores e dos tormentos do corpo. Às vezes esquecem-se mesmo. Reparo que têm necessidade de alguém que os possa ouvir, que os deixe falar, lamentar e purgar muita coisa que lhes vai na alma. Eu ouço-os. Não me canso, pelo contrário, fico com a sensação de que descanso. Os dias vão passando, e eu acabo por ir

"Novo dia"...

Começa um novo dia, um dia que vai gerar histórias, um dia que me vai surpreender com palavras, gestos, angústias, alegrias, tristezas, dúvidas, um pouco de chuva, com toda a certeza, e com algum cansaço que, a esta hora, hora em que começa o novo dia, já se faz sentir. Cansaço do corpo? Cansaço da alma? Cansaço da vida? Cansaço das desilusões? Talvez, um cansaço estranho e mais estranho fica no começo de um novo dia. Todos os dias têm um começo, mas há alguns que são a mera continuação ou uma péssima reprodução de outros que ficam na memória pelo desencanto. Há dias que começam com uma sensação de cansaço. Há dias que começam com ar fresco, frescura que não acalma, não adoça e nem embeleza o novo dia. Há dias, em que o começo do dia é velho, feio, pesado como muitos outros dias. Dia sem interesse, dia sem valor, um dia para passar como tantos outros dias. Talvez não, talvez não seja assim, tão mau, tão cinzento, tão desesperançado. Quem sabe se não terei arte e engenho para transforma

"Nomes"...

Nomes. Tudo tem um nome, se não tiver deixa de existir. É o nome que identifica o objeto, a ideia, a pessoa ou a montanha. Tem nome? Tem. Então existe. São tantos os nomes de pessoas que até custa a crer. Podiam ser todos diferentes mas não, algumas partilham os mesmos, sonoros, fechados, alegres, sorridentes, macambúzios, irritantes, disparatados, há para todos os gostos e para quem não tem gosto. Gosto de os pronunciar em voz alta ao mesmo tempo que olho para a face do dono. Gosto de misturar a musicalidade ou o ruído do nome com a expressão facial. Gosto de perguntar o nome dos filhos, gosto, porque sinto que o nome não é uma mera indicação de singularidade de uma pessoa, é muito mais do que isso, por vezes é o nome que molda a personalidade de um indivíduo. Há cada nome, há cada razão sem razão, há muita confusão e quem se lixa muitas vezes é o pequenino mexilhão. Eu nem me atrevo a dizer qual a minha opinião. Mas digo, agora estou a recordar. Quando o nome é suave, quando o nome t

"Natureza humana"...

Nasceu mal. Cresceu mal. Vive mal consigo e com os outros. Não presta. Não há solução. Há laivos episódicos de esperança? Sim, há. Há momentos dourados capazes de a enobrecer? Sim, há. Só que rapidamente se esfumam na memória. Há momentos de grandiosidade? Sim, há. Só que morrem rapidamente às mãos dos desonestos. Há garantia de uma melhor vida? Sim, há. Relegada para quando descer ao fundo de uma fria cova, porta de entrada no paraíso prometido. Há sinais de solidariedade? Sim, há. Quando a consciência se esconde atrás de gestos de vergonha de uma nudeza existencial. Há sinais de que a natureza humana irá um dia transformar-se em algo de belo, de poético, intemporal e universal? Não, não há. Nunca houve e nunca haverá. A natureza humana é tudo aquilo que não se vê, é tudo o que não se encontra. A natureza humana é má, má pela sua própria natureza, falsa pela vontade de a modificar, virtual, algo sem igual e sempre à espera de fazer mal. Nada pode a igualar. Há momentos que fazem esque

"Preso"...

Sinto-me preso. Preso ao relógio, preso à espera de outros, preso à vontade de quem desconheço, preso na solidão de um final de manhã, preso às mãos de poderes, preso sem liberdade de sonhar, preso sem poder fugir para os meus recantos, preso à vida, uma vida que não me satisfaz, uma vida que não me dá paz, uma vida que me aprisiona em redes de caprichos e de misérias. Ouço o toque de um sino preso na torre distante. Toca com tristeza. Sente-se preso. Toca de forma pausada como se cada toque não fosse mais do que a lamúria de uma chicotada. É diferente do meu sino, que é mais alegre, livre, espontâneo e que me prende como só ele sabe. Eu não me importo que me prenda, porque o seu som e intimidade são deliciosas formas de me libertar da vida. Aqui estou, ainda estou, preso à vontade dos outros, preso e ansioso por me libertar. Tenho fome, mas troco a fome do meu estômago pela fome de um momento de liberdade onde possa sentir o futuro, ver a esperança, admirar a beleza de um recanto e de

"Fim do dia"...

Aproxima-se o fim de mais um dia. Dei aulas, trabalhei, falei, comentei, passeei, acabei de ler o que me faltava, fui à baixa, cortei o cabelo, vi pessoas, olhei para as ruas, vi o que nunca tinha visto, passeei por locais onde me esqueci de passar, senti o cheiro a urina, ia inebriando-me com o álcool embutido nas vielas e ruelas da alta, fui quase atropelado por dois estudantes cegos de cerveja que se equilibravam agarrados um ao outro, apreciei arte esculpida nas paredes e espalhada nas ruas, revoltei-me contra os graffiti que desfeiam o património mundial, resolvi problemas do dia-a-dia e, agora, sentei-me a pensar no que deveria fazer. Eu sei, mas não me está a apetecer, o que eu queria era escrever e transmitir mil e um sentimentos, desenhar traços de alegria, pintar aguarelas coloridas da vida e terminar com um soluço da alma, um soluço de esperança, um soluço de paz, um soluço de vida. Talvez amanhã, longe, noutros ares, consiga ouvir a voz da inspiração. Talvez amanhã, ou ter

"Hébil"...

O Natal aproximava-se a passos vistos. As noites na baixa eram verdadeiros convites para saborear o frio, ver as montras e sentir o calor das luzes coloridas. O roncar metálico dos elétricos a saltitarem nos carris não incomodava, pelo contrário, conseguia dar um toque de vida forte ao belo espaço que era a baixa coimbrã. Fui de propósito à Galeria do Primeiro de Janeiro ver uma exposição de pintura. Entrei. Estava apenas um senhor de alguma idade, cabelo a cair sobre os ombros e que vestia uma gabardina que já deveria ter conhecido melhores dias. Pensei, deve ser alguma espécie de porteiro a vigiar o espaço vazio. Vi todos os quadros com detalhe até que parei em frente de um. Era o mais pequeno de todos e fugia à temática dos demais, nitidamente. Olhava, olhava mais uma vez e não conseguia sair dali. O senhor aproximou-se por detrás, sem que eu desse conta, e perguntou-me se eu gostava do quadro. -Sim. Gosto. Muito interessante. Tem qualquer coisa que me seduz. Riu-se e comentou: -

"Raiva e ódio"...

A raiva e o ódio são os gumes de punhais venenosos e mortais. Os seus autores não conseguem escondê-los durante muito tempo. As suas almas, bons berçários, não são o melhor pasto. A raiva e o ódio vivem à custa de almas inocentes. Explodem ao mínimo sinal. Entram nas pobres almas, e, rapidamente, começam a corroer as entranhas. Tamanha é a fome da destruição, tamanha é a dor da destruição e tamanha é a felicidade dos seus autores. Resta a morte da incompreensão, morte adiada, morte certa, morte esperada. Que morra, que mate, que desapareça. Maldito seja o turbilhão da raiva e do ódio que corrói sem compaixão um pobre coração. Santa Comba Dão, 21.09.2013

"Repouso"...

Procuro o repouso, procuro e não o encontro. Procuro o repouso, o repouso de uma noite calma, sem frio, sem angústia e sem medo. Procuro o repouso para um corpo macerado pelo tempo e para uma alma desiludida que se sente meio perdida no dia-a-dia. Mais um dia, um dia que parte e uma noite que rejuvenesce. Procuro o repouso nas entranhas da noite e na escuridão do silêncio. O corpo agradece e a alma enobrece. Procuro repouso em todos os cantos, mesmo que não ouça cantos de esperança. Procuro o repouso no espelho de água da noite, espelho que sabe melhor do que eu o que é o repouso. Invejo o seu repouso. Procuro o repouso nas palavras que penso e nas frases que escrevo. Procuro mas não encontro. Fogem-me as palavras e escondem-se as frases. Apenas a lua se mostra, imponente, vaidosa, brincando com a sua imagem no espelho de água da noite. A lua escreve, vejo bem que escreve, desenha letras, inventa palavras e pinta belas frases no espelho de água da noite. Eu olho para o espelho de água

"Deixem-me viver"...

Deixem-me viver. Eu só quero viver para poder sentir o calor de um novo dia e a frescura tranquilizadora de uma noite escura. Deixem-me viver. Eu só quero viver para poder inebriar-me com um gesto de beleza e retribuir com amor e gentileza. Deixem-me viver. Eu só quero saborear a paz de uma sombra e recordar as alegrias de outrora. Deixem-me viver. Eu só quero sentir o prazer de uma gentil atenção e agradecer com a ternura do meu coração. Deixem-me viver. Eu só quero saborear o silêncio da multidão e não ser reconhecido na solidão. Deixem-me viver. Eu só quero ver as folhas a adormecer e encantar-me com tanto prazer. Deixem-me viver. Eu só quero viver para que todos me possam esquecer. Deixem-me viver. Deixem-me viver. Deixem-me viver que eu um dia saberei como agradecer. Eu só quero viver... Santa Comba Dão, tarde de domingo, 22.09.2013

"Reencontro"...

Reencontrar pessoas permite saborear a juventude do passado na mente atormentada do presente. Reencontrar pessoas permite saborear doces explosões de sentimentos e de lembranças que o tempo quis matar. Reencontrar pessoas permite conhecer os frutos de velhas sementes adormecidas. Reencontrar pessoas permite que as almas se libertem inebriando-se de amor e de saudade. Reencontrar pessoas permite acreditar que a vida tem significado, mesmo que a vida seja um mero parêntesis condenado ao esquecimento. Viver é reencontrar o passado no presente. Viver é semear os reencontros do futuro. Lisboa, sexta-feira, 20.09.2013

"Ditado"...

Entrou revelando alguma dificuldade na visão, mas, mesmo assim, o olhar embaciado pelo tempo não conseguia esconder que ainda mantinha alguma vitalidade física e uma sabedoria interessante. A pele, encarquilhada pela idade e curtida pelo sol, dava-lhe um ar típico de uma figura retirada de um quadro a óleo de cenas agrícolas. Queixava-se de dores nas costas. Tudo aconteceu depois de andar a carregar baldes. - Mas andava a transportar baldes de água? - De água? Não! De milho, milho seco da eira para as arcas. Milho para o inverno. Não me foi difícil saber o que poderia estar por detrás. Mais algumas perguntas, e outras tantas respostas, às quais juntou esclarecimentos sobre o seu pequeno calvário, levou a que o rural, de olho baço mas vivo de sabedoria, começasse a mudar de entoação. Baixou de tom, começou a querer engasgar-se de propósito, denunciando que pretendia dizer algo que não devia. Apercebi-me da sua vontade, logo, utilizei uma estratégia de desinibição, permaneci calado e c

"Fazer horas"...

Pressiono o tempo para ter tempo para fazer horas. Consegui algum tempo e agora estou a saboreá-lo como se fosse um delicioso café. Escolhi a sombra ao ar livre e sinto a frescura do mar que está ali perto sem se preocupar com o tempo. Eu faço horas e o mar faz saudades. Cada um faz o que pode. Ai se  o mar me desse horas, se me desse horas eu enchia-o de saudades. Afinal, o que é que eu quero? Apenas fazer horas para não ter saudades. Que saudades! Figueira da Foz, 19.09.2013

"Pálpebras pesadas"...

Todos os dias conheço novas pessoas, pessoas que me permitem identificar formas diferentes de pensar, de estar, pessoas que me desafiam com os seus olhares, pessoas que se entretém a decifrar o que vou dizer, pessoas que não sabem quem sou, pessoas que eu desejo conquistar, para informar, para debater, para seduzir os seus intelectos e para poder partilhar a minha vida que se arrasta e se encarniça com tantas coisas, coisas que me detestam e que eu detesto, coisas que me desprezam e que eu pretendo ignorar, coisas sem significado, coisas sem sentido e sem fim, apenas coisas à espera de se volatilizarem no esquecimento que tarda, e invejosas de não poderem mergulhar numa esperança adiada que desespera, coisas que só sabem provocar sofrimento e angústia. Tudo passa, pois passa, porque tudo, afinal, não passa de um equívoco. Coisas da vida. Olho e falo com muitas vidas, e vou bebendo e compreendendo o significado da vida. Uma pequena conversa, um pequeno detalhe, um pequeno comentário,

"Recompensa"...

Um professor que gosta de ensinar e de aprender necessita de ser recompensado. É humano, é natural. Qual é o tipo de recompensa que procura? Ser considerado? Ser respeitado? Obviamente que ser-se alvo destes tipos de apreciação é agradável. Mas o que eu gosto mesmo é saber que certos conceitos foram ou são apreendidos pelos alunos e ter a certeza de que os mesmos irão mudar e ajudar as suas formas de pensar e, consequentemente, influenciar os seus mundos, profissional, social e familiar. Caso consiga esse desiderato, então, dou por bem empregue o meu esforço e a minha dedicação ao ensino e à investigação. Mas como posso ter a certeza que influenciei ou influencio os meus alunos? Imaginando que sim? Especulando sobre isso? Desejando ardentemente ter sido útil? Não sei. O que eu sei é que de quando em vez, inesperadamente, sou confrontado com situações deveras recompensadoras do meu esforço. Quando tal acontece sinto que vale a pena ter a atividade que tenho. É um belo momento de glóri

"Fantasia"...

Preciso de criar espaços de fantasia. Preciso de subir aos montes da vida. Preciso de saborear a tranquilidade de um silêncio que me recorde o absoluto. Preciso de viver uma vida que não existe. Preciso de inventar fantasias de vida. Preciso de encontrar o que nunca encontrei. Preciso de fugir de tudo o que me rodeia e que não me alegra. Preciso de respirar a tristeza pura do espaço pintado de penumbra. Preciso de espaço, preciso de roubar ao tempo pequenas fatias de minutos, minutos que ele não precisa, mas sem os quais não consigo equilibrar-me entre o mundo real e o mundo da minha fantasia. O mundo real até parece que precisa de mim, rouba-me, mas não me cativa, atormenta-me, mas não me recompensa, obriga-me a fugir como se fosse uma criança para o mundo da fantasia e eu fujo assim que posso. Eu sei que o mundo da fantasia existe. Eu sei onde está, em locais simples, onde a paz está à minha espera, onde a beleza se enerva com a minha falta, onde a reconstrução do mundo espera que l

"Nossa Senhora do Pranto"...

Saí de casa e fui procurar um espaço. Procuro espaços para poder ter o meu espaço. Hoje, o meu espaço é um espaço aberto, cheio de vento suave que foi encarregado de cuidar das folhas do parque. Tremem, e algumas esvoaçam para a liberdade da morte; estão felizes e não se arrependem de ter vivido. Ouço-as e vejo-as por todo o lado. Cantam. O seu cantar é doce, acalma e seduz. O vento consegue criar uma musicalidade única com o contributo das velhas árvores. Pequenos insetos, curiosos, sentam-se em cima de mim espantados com a minha presença. Afasto-os. Não quero perturbar o seu espaço. O espaço está cheio de vida e deserto de almas humanas. Gosto de sentir os efeitos de espaços vazios e cheios de lembranças. Olho para a capela e recordo que existe no seu interior uma bela Pietà. Olho para a capela e recordo outros momentos em que estive sozinho acompanhado da Pietà e de uma alma recém-libertada. Olho para a capela e recordo os sons das ramagens, a sua música e as suas cores como se fo

"Sábado"...

Um sábado diferente, diferente porque não quero recordar outros. Um sábado indiferente, indiferente à minha presença, indiferente às minhas preocupações. Um sábado sem sabor, um sábado sem amor, apenas mais um sábado, um sábado que desperta algum temor. Um sábado não muito quente, um sábado sem ver gente, apenas um sábado a recordar que não passo de um descrente. Um sábado diferente. O sábado não mente, hoje é um sábado indiferente que ignora quem sente. Oh sábado, mais valia ser demente. Santa Comba Dão, sábado, 14.09.2013

"Trancoso"...

Tive que ir a Trancoso. O meu amigo não sabia que naquela vila histórica tinha vivido o famoso Bandarra, sapateiro e autor de profecias que fazem ainda hoje as delícias de qualquer um. Um notável que merece ser emparelhado ao lado dos melhores. Depois de termos chegado, fui à vida, cumprindo o que estava destinado. Ficou à espera, acabando por esperar mais do que o previsto. Quando entrei no automóvel vi que estava a ler. Disse-me que tinha dado uma volta. Não imaginava ver uma preciosidade que desconhecia.  Portugal tem muitos e maravilhosos tesouros que me enchem de alegria, de satisfação e de orgulho. Tomara ter tempo para viver e andar por todas essas terras, embrenhando-me nas suas ruas e convivendo com as gentes. Foi então que apontou, com muita satisfação, o livro, "As profecias do Bandarra". Tinha acabado de o comprar. - Comprei-o por causa da nossa conversa de há pouco. - Fez muito bem. - Mas espere, também acabei por comprar este, era o último. Mostrou-me a obra

"À varanda"...

É tarde, estou cansado, o sono coça-me a alma, quero dormir, mas ainda preciso de pensar, lembrar, sentir, ver, ouvir, tudo debaixo da noite, sentado na minha varanda. O céu está diferente, não se veem as estrelas de outrora, mas o fresco da noite é o mesmo. O silêncio perturba, antes não havia silêncios, apenas rebuliços, conversas em alta voz debitadas através de janelas escancaradas, muitas delas sob o efeito do álcool. As crianças, com os seus gritos, choros e risos, competiam com os latidos dos cães nervosos com tanta algazarra. Não há crianças, apenas vazios, ouço apenas um cão a ladrar ao longe, e um outro ao perto, um ladrar diferente, não estão nervosos, apenas sequiosos de brincadeiras. Algumas conversas não inteligíveis surgem de uma esquina, nada que se compare com os gritos e a vozearia misturados sem tom mas com muito som. Já se calaram, é pena, porque gosto de ouvir o cantar de conversas mergulhadas na brisa da noite. Tudo mudou, até as paredes e varandas das casas viz

"Premonições"...

Uma manhã diferente das outras em que as consultas se transformam em tertúlias, os diagnósticos em recordações do passado e as receitas são pintadas de quadros, de arte e de história. Afinal, são consultas de vida, consultas de tranquilidade e consultas de saudades. Transformar a ansiedade de uma consulta numa conversa delicada e prazenteira paga o tempo, e paga o ter que acordar cedo e voar, preguiçosamente, pela estrada. As conversas despertam necessidades e estimulam a curiosidade. O regresso não foi feito pelo mesmo caminho. Enveredei por outros arruamentos, vielas, a fim de desfrutar e ver com outros olhos o que já conheço e já vi inúmeras vezes. Há uma grande diferença quando se conhece certos pormenores que até ao momento nos são desconhecidos. Como era ainda cedo, enfiei por certos locais, os quais me obrigaram, inesperadamente, a fazer desvios. Quando pensei em mudar de rumo fui assaltado por uma pequena preocupação, a de ter algum contratempo, como esmurrar o carro. Que rai

"Tic-tac"...

A notícia de um estudo recentemente publicado em que é "revelado" que os homens com testículos mais pequenos aparentam ter mais cuidados e atenção face aos que apresentam os ditos cujos com maiores dimensões levou-me a escrevinhar uma curta opinião. É recorrente a publicação na comunidade científica de certos trabalhos ditos "sensacionalistas" que são de uma apetência extraordinária para a comunicação social e para o público em geral. É certo que divulgar conceitos científicos é de uma importância inquestionável e que ajuda o progresso, a cultura e o desenvolvimento do ser humano. O pior é que o conhecimento não deve ser feito nesta base, porque pode levar a interiorizar na comunidade conceitos banais, simplistas, enviesados e até, porque não, disparatados, comprometendo a tríade que já foquei, progresso, cultura e desenvolvimento do ser humano. Uma contradição em crescendo, ou seja, cada vez há mais informação que, não sendo devidamente tratada, pode constituir u

"Fome"...

Sinto fome. Não é habitual. Falta pouco tempo para poder ir almoçar. É bom sentir fome, penso menos e menos me preocupo. O estômago vazio tem esse condão. Arrepia-me ter as mesmas conversas, vomitar os mesmos conselhos e advertir os mesmos perigos para receber em troca a mesma indiferença, a mesma desconfiança, a mesma, quase que me apetecia dizer, brutalidade. Lentamente começo a ficar indiferente face aos factos. Mudar comportamentos? Seria bom, mas nem sempre se consegue e sempre que falo, quase sempre sinto um olhar de descrença, e às vezes de náusea, como se estivesse a insultar ou roubar a tranquilidade a uma pessoa. Não suporto alguns olhares, não é que fique intimidado, mas incomodam-me, não escondem o que pensam, mostram o que são, convencidos de que estão protegidos atrás de barreiras intransponíveis. Barreiras de cartão, é o que são. É quase tudo a fingir. Só o sofrimento é que não, esse dói, perturba e rouba a tranquilidade. Nessa altura, a humildade brota lágrimas de dor,

"À pressa"...

Comi à pressa, estava com pressa, matei a fome e corri à pressa. Sento-me, ainda tenho alguns minutos, não muitos, mas os suficientes para dar ao dedo, libertar a alma e dar descanso ao estômago para que possa trabalhar. Já o adverti, sem pressa, não vá a pressa dar-me cabo da tarde. Não sei se me ouviu ou não, mas quero pensar que sim. Sento-me, ainda tenho alguns minutos, não muitos, mas os suficientes para dar alimento à minha alma, sem pressa. Gostava de permanecer aqui muito tempo, o tempo necessário para matar qualquer pressa, a pressa de viver, a pressa de trabalhar, a pressa de me incomodar, a pressa de me libertar e a pressa de sofrer. Tudo merece ser feito sem pressa. Eu queria mas não consigo. O único sítio em que o tempo passa sem pressa é aqui, ainda não passou muito tempo, não o sinto, nem quero senti-lo, quero apenas ficar sentado na penumbra do espaço e na sombra do tempo, onde o sol não entra, o calor também não, o frio desaparece e a tranquilidade nasce e renasce num

"Conselho"...

Estar sentado sozinho numa esplanada ao fim da tarde é aliciante porque permite conjugar muita coisa, o sol, a brisa fresca, os sons da água, o agitar da passarada, o coaxar das rãs e o silêncio dos humanos. Eis que alguém me cumprimenta. Não o vi chegar, mas a sua voz inconfundível, espécie de mel embrulhado em eterna malandrice, denunciou-o. Olhei e cumprimentei-o com prazer. Estava agarrado a um gelado. Parecia um puto. Apesar da proeminência abdominal, e do bigode e pera que começam a perder o grisalho, via-se que o saboreava com particular prazer. Olhou-me e atirou: - Um gelado! Tem que ser, apeteceu-me, estava em casa e disse para mim, agora, que não está lá ninguém, é a altura de comer um gelado. E a minha mulher também saiu. Um gelado não faz mal a um diabético, pois não, senhor doutor? - Ah! É diabético? Perguntei-lhe. - Sou! Mas não sou daqueles que tomam as injeções, como é que se diz? - Insulina. - Pois, isso mesmo. Não sou desses, eu sou um diabético normal. - Quais são o

"Sopro"...

Um sopro para poder começar a tarde. Pode ser um sopro de indiferença, um sopro de alegria, um sopro de esperança, um sopro de criatividade, um sopro de vida, o que eu quero é sentir, ouvir ou tocar um sopro. O sopro desperta-me. O sopro tranquiliza-me. É a força da justificação capaz de invadir o corpo e a mente que lutam sem ter nada para lutar. O sopro é a única unidade de tempo que vale a pena utilizar, mede, marca e não deixa recordação. É apenas um sopro. O que eu precisava agora era mesmo de um sopro, vindo não importa de onde, apenas um sopro que me levasse a recordá-lo no futuro através de curtas linhas para o poder saborear. Saborear um sopro ou respirar um sopro? Afinal tudo começou com um sopro e irá terminar com um outro. Dois sopros. Não me lembro do primeiro e não quero lembrar-me do último, o que eu queria era um pequeno sopro de vida, de satisfação, de alegria ou de tranquilidade, apenas um, um sopro, mas neste instante. Não o sinto, não o vejo, mas desejo-o.

"Testículos"...

A notícia de um estudo recentemente publicado em que é "revelado" que os homens com testículos mais pequenos aparentam ter mais cuidados e atenção face aos que apresentam os ditos cujos com maiores dimensões levou-me a escrevinhar uma curta opinião. É recorrente a publicação na comunidade científica de certos trabalhos ditos "sensacionalistas" que são de uma apetência extraordinária para a comunicação social e para o público em geral. É certo que divulgar conceitos científicos é de uma importância inquestionável e que ajuda o progresso, a cultura e o desenvolvimento do ser humano. O pior é que o conhecimento não deve ser feito nesta base, porque pode levar a interiorizar na comunidade conceitos banais, simplistas, enviesados e até, porque não, disparatados, comprometendo a tríade que já foquei, progresso, cultura e desenvolvimento do ser humano. Uma contradição em crescendo, ou seja, cada vez há mais informação que, não sendo devidamente tratada, pode constituir u

"Folhas"...

Ainda não começaram a cair em força, mas já estão a perder a frescura, dobram-se, não falam, não cantam de alegria e gemem de dor sob o vento que lhes seca as poucas lágrimas que ainda tem. Querem amarelecer e envergonham-se de não poderem viver. Querem fugir para longe nas asas do vento. Ficam livres da vida e presas da morte. Envergonham-se, mas não têm medo. Querem voar e sentir o que nunca sentiram. Como se pode sentir o mundo quando se está preso à vida? São folhas, algumas a avermelharem-se, outras a serem salpicadas de pequenos pontos amarelados e outras a quererem ansiosamente morrer antes do tempo ou marcar o início do novo tempo. Algumas folhas vêm atrás de mim. Correm. Param. Voltam a andar e os seus sons secos de lamúria ou de desencanto chamam-me a atenção. Paro. Olho para trás e elas param, não com medo, mas aflitas por não saberem para onde ir. Sons de brisa, sons de folhas secas a seguirem-me e sons de árvores desejosas de se despirem, sons dentro do meu silêncio. Têm s

"Escrever"...

Sinto uma sonolência matinal. Não é habitual. Não sei o que fazer. Apetece-me fugir. É normal. Fugir dos outros e fingir para mim. Escrevo, o que é natural, não para os outros, mas só para mim. Partilho ou não partilho? Hoje não me apetece partilhar com ninguém, hoje escrevo apenas para mim, não vá alguém ler o que é só para ti.

"Ansiedade"...

Há dias em que a ansiedade esmaga dolorosamente as vísceras, importunando e confundindo a alma, que começa logo com tremores fruto de um estranho frio que o calor do verão não consegue apagar. Há dias em que a simultaneidade de acontecimentos perturba as lembranças e os factos, misturando-os, e dificultando o discernir de cada um deles. A ansiedade e a tristeza de uma memória são obnubiladas pela preocupação do momento. O passado e o presente misturam-se em ondas de angústia e de tristeza com cores diferentes. As formas desaparecem e misturam-se, criando outras, diferentes, como se cada uma quisesse diminuir a dor da outra. Sentir é viver. Viver é recordar. Recordar é apagar. Mas eu quero lembrar-me, talvez amanhã ou daqui a alguns dias. Vou recordar, porque não é todos os dias que os outros se lembram de mim. Hoje lembraram-se. Eu também vou lembrar-me, pena que as lembranças do passado e a inquietação do presente não me tivessem deixado perceber o que aconteceu. Vou recordar, amanhã

"Sábado e uma água fresca"...

Sabe bem estar sentado na esplanada numa tarde de sol não muito quente. Sabe bem ser acariciado por uma brisa nervosa e beber uma água fresca. Sabe bem estar sentado numa esplanada e ver o ar limpo, de uma transparência primaveril, apesar do avizinhar do outono. Um estertor estival a querer marcar o fim anunciado do verão. O sol, cansado, começa a descair no céu. Sabe bem estar sentado numa esplanada, numa tarde de sol, com uma brisa nervosa a acariciar-me e a beber uma água fresca. Sabe-me bem, despertam agradáveis sensações e permitem-me sonhar com a tranquilidade, que foge sempre que a procuro. É uma deusa ou é um demónio? Não sei, nem me interessa, só sei que é mesmo desejada. Sabe bem beber uma água fresca. Sabe bem estar sentado numa esplanada numa tarde de sol. Sabe bem ser acariciado pela brisa nervosa e sabe ainda melhor pensar que a tranquilidade tão desejada possa aparecer quando o sol se deitar ou o outono chegar. Sabe bem. Sabe bem desejar. Sabe bem esperar.

"Templo"...

Entrei no templo ao final da tarde. A mistura de sol, sombra e ar fresco não me incomodou, empurrou-me delicadamente para a entrada. Fiquei encostado à parede. Olhei e não havia lugar para mim. Fiquei. Tinha de ficar. Olhei e abarquei todo o espaço. Olhei e vi em toda a plenitude o velho templo repleto de pessoas. Olhei e recordei. Saiu daquele espaço há um ano, num dia gémeo ao de hoje, o sol era o mesmo, a brisa também e a claridade do ar, testemunha da pureza dos sentimentos de uma alma que partiu, vestiu-se com as vestes da tristeza. Fiquei. Assisti. Tinha que ficar. Tinha que assistir. Olhei e abarquei o meu passado. A mesma atmosfera, os mesmos santos, o mesmo encanto e a mesma beleza. Os pensamentos, esses não, mudaram, tinham que mudar, mas quiseram recordar outros, velhos, ingénuos, assustadores, agora transformados em saudade. Olhei para o altar e vi as duas portas que lhe dão acesso. Estou longe no espaço do templo e muito perto no tempo longínquo. Nunca me atrevi a passar

"Um ano"...

Foi há um ano, mas parece ter sido ontem ou, então, parece que nunca aconteceu. Não sei descrever o fenómeno, longe e perto no tempo ao mesmo tempo. Recordo o que o tempo ainda me vai deixando recordar até o dia em que nunca mais me vou lembrar. As memórias nascem, vivem e morrem. Não precisam de corpos, alimentam-se deles, até que o pó ou as cinzas as varrem do mundo. Memórias que fogem para o espaço frio onde navegam à deriva à procura de outras memórias, as dos que não partiram, para que juntas possam descansar em paz. Viver em paz é viver na memória.

"Pedidos a Jesus"...

Comparar uma criança a um livro é testemunhar a criatividade, a inspiração, os dotes e o caráter do novo ser. Não precisa de prefácio, entra-se de imediato na escrita, com uma introdução atabalhoada, desgarrada, com sons dispersos, olhares interrogadores e sorrisos de tranquilidade. Ao fim de algumas páginas de leitura ficamos na mesma, não se sabe o que é que vai sair dali, qual a história e o enredo da nova vida. As palavras começam a surgir, as frases adquirem corpo e o sentido da existência balanceia entre a fantasia e a realidade. Escrevem muito depressa, todos os dias surgem com novos conhecimentos, alguns ensinados, e muitos aprendidos, para não falar dos que vão construindo graças à sua imaginação e interpretação do meio que vão conhecendo. Precisam de papel e de tinta, coisas que não faltam por estas bandas. Dá-me particular prazer vê-los a escrever os seus próprios livros. Cada um com o seu estilo, a mais velha introspetiva, sensata, silenciosamente criativa e espiritualmen

"Cedinho"...

Passava pouco das sete quando o telemóvel começa a tocar. Horas impróprias é habitualmente sinal de alarme. Sonolento, levantei-me para atender, começando a preparar o "interior" para o impacto de uma má notícia. - O que será desta vez? Do outro lado, uma vozita fresca começa com uma alegria indescritível. - Vovô! Sabes o que é que o Jesus me deu? Dois póneis. Dois! Um amarelo e o outro cor-de-rosa. Estás a ouvir, vovô? Eu estava e ao mesmo tempo tentava compreender o fenómeno afastando a angústia de uma má notícia. Não me foi difícil perceber o que é que estava a acontecer. Apareceu-lhe, debaixo da almofada, o pedido que tinha feito ao Jesus no dia anterior. Depois a conversa continuou, como é natural. A mocinha fala que se desunha e, então, hoje, inundada de felicidade, como é compreensível, distendeu a história com todos os pormenores visíveis e não visíveis. - Depois mostras-mos? - Claro, mas só à tarde depois de sair da escolinha. - Olha, um dia feliz para ti, está bem?

"Outono e outonos"...

É  interessante a forma como o homem divide o tempo da sua existência. Decalca-a da passagem do tempo da natureza. Uma das fases que o entristece é o seu outono, altura em que as forças começam a enfraquecer apesar do brilhantismo multicolor da vida que, num ato genuíno da natureza, se manifesta através de vermelhos, castanhos, amarelos e dourados capazes de fazer inveja ao ouro. Tudo enfraquece, sobretudo as capacidades de defesa. Tantos anos de vida e tantos erros acumulados. Não há meios para enfrentar tantas necessidades de reparação. O sistema nobre do nosso corpo, o sempre vigilante sistema imunológico, não consegue, a partir de certa altura, dar resposta a tudo. Logo, as doenças surgem, sobretudo as degenerativas, tão típicas das idades mais avançadas. Proteger o sistema que nos defende poderia ser a solução para grande parte dos males, mas, felizmente - não é erro, não! -, ele tem de passar pelo outono para terminar no inverno da vida, mas o mais tarde possível, já que temos d

"Medo"...

O amanhecer nem sempre é sinónimo de um novo dia, por vezes anuncia-se sob a face fria da dor, assusta, inquieta e até mata. O sol eleva-se no horizonte e escalda o corpo. Corpo quente e alma fria, um contraste duro, doentio, que provoca ainda mais ansiedade. Depois, os olhos, remelados pela tristeza do amanhecer, procuram apenas o que é maléfico, querem fugir da dor mas não conseguem, buscam belas notícias e não conseguem, atormentando-se com agruras anunciadas. Um contraste feroz entre o sol solitário e as almas geladas que começam a cercar-me, a tocar-me e a quererem quebrar o frio da existência. Um caso lembra outro e esse ainda outro, numa cadeia ininterrupta de acontecimentos como se fosse uma escadaria em caracol a querer empurrar-me até às profundezas do inferno, onde um calor frio tenta imitar e convencer-me de que ali está o sol da vida. Uma forma enganosa para me atrair. Velha, mas não estranha. Sento-me, cansado, e deixo-me adormecer profundamente, convicto de poder fugir p

"Frescura"...

Pedi ao tempo um pouco do seu respirar, e ele atendeu-me, acabando por me dar um belo sopro de frescura. Estou a saboreá-la como só eu sei. Há momentos que competem com a eternidade, este é um deles. Não importa o tempo que passa lá fora, ele prometeu-me esquecer-se de mim durante algum tempo, tempo que para ele não é nada, mas para mim é mais saboroso do que parar o tempo, é poder viver sem o sentir e sem ter necessidade de o compreender. Ele deve rir-se de mim. Não me importa, o que importa é não sentir o tempo, não entender o tempo, não desejar o tempo, mas apenas ficar naquele ponto solitário, feliz, sem saber para onde ir, nem querer saber de onde venho. Um ponto sem tempo e sem espaço, apenas algo que vai vagueando na imaginação pelo universo que ainda está para nascer, universo que não sei se algum dia irá ter vida ou dar vida à vida. Não importa. Não me importo que o tempo possa rir-se de mim. Eu não me rio dele, apenas lhe peço que durma, que durma, nem que seja por breves se

"Ardor"...

Dia particularmente quente, tão quente a ponto de inibir a inspiração. Convida-me com uma doce sonolência e desafia-me para mergulhar na tranquilidade de uma sombra ou nas águas frescas de um rio. Dia particularmente quente, tão quente a ponto de querer que eu esqueça que o mundo existe. Afugenta-me das alegrias e empurra-me para o sossego de qualquer espaço sagrado. Dia particularmente quente, tão quente a ponto de esquecer o que não quero lembrar-me. Silencia-me tudo, as ideias, as esperanças, o passado e o futuro, e adoça-me com ambrósia dos deuses. Dia particularmente quente, tão quente a ponto de desejar procurar o meu local, onde a frescura tranquiliza a minha existência. Preciso de beber o seu ar, respirar a sua penumbra e adormecer em sonhos prometidos. O tempo não passa. Passa, passa depressa, quer o dia continue ou não particularmente quente, eu só quero que passes ó tempo, passa depressa, passa para poder descansar sem ti, num local onde não precisas de mim. Passa depressa t

"Oração"...

Cheguei à noite particularmente cansado. Não fiquei preocupado, o regresso de férias e o choque com a rotina de trabalho tem destes inconvenientes. O telefone toca. Não gosto dos toques dos telefones, nunca se sabe o que vai sair do outro lado, causam-me ansiedade, mas a partir de certas horas é certo e sabido que despertam uma intranquilidade acrescida. Foi o que aconteceu. O que será desta vez? A tonalidade vocal, ao fim de alguns segundos, tranquilizou-me, não deve ser nada de especial, pensei. Por acaso até era, não em termos de saúde ou de qualquer imprevisto maléfico, mas em termos de satisfação pessoal. Uma breve e bela história a necessitar ser registada, mais uma a somar a tantas outras, uma delícia que mais tarde irá encantar outros e a própria, uma protagonista cheia de criatividade. - Queres saber a melhor? A Leonor viu uma passagem de uma nova telenovela em que uma criança foi abandonada e pôs-se a chorar de pena que nem te digo. Tive que lhe explicar que aquilo não era

"Sombra"...

Surgiu de repente, alongada, negra e a bambolear de forma desastrada sem olhar para trás. Fui atrás dela. De início não se importou, mas na primeira esquina esquivou-se. Desapareceu para logo regressar a meu lado um pouco à frente, mais calma, curiosa e a querer tirar nabos da púcara. Não lhe disse nada. Inquieta, saltou para o outro lado e pôs-se à minha frente a perguntar o que é que eu queria. Não lhe respondi, continuei  no meu trajeto. Deve ter ficado irritada com a minha insolência, porque, temporariamente, desapareceu do meu campo. Depois surgiu quase de frente, acatarroada de tanto protestar. Não percebi o que me queria dizer. Ignorei-a. Fiz mal, porque logo à seguir colocou-se à minha frente, desenhando uma caricatura da minha pessoa, dançando desastradamente. Não me ligas? Então vais ver o que te vou fazer. Aguarda pela noite e, então, assombrar-te-ei com formas frias e distorcidas. À noite não brinco, nem tu irás brincar comigo, à noite não brinco com ninguém, nem comigo

"Texto Fantasma"...

Escrevinhei e publiquei um texto. No dia seguinte, de manhã, olho e leio o texto. Que texto tão estranho. O texto aborda os mesmos tópicos, tem a mesma construção, transpira os mesmos sentimentos, revela experiências idênticas, mas é diferente. Olho e leio. Leio e olho. Senti que já o tinha escrito, os mesmos tópicos, as mesmas sensações, os mesmos espaços, os mesmos sentimentos, só a versão é que era diferente, muito mais bela e mais doce. Fiquei perplexo. Já tinha escrito sobre este assunto? Como é que já tinha escrito e não me recordo? Mas se já o tinha escrito, então, tratava-se de uma versão muito mais bela e mais escorreita. Tinha mais encanto. Agarrei-a. Gravei-a. Suspirei. Já não foges! Estás presa. Agora tenho as duas versões. Gosto muito mais desta, a versão fantasma, mais pura, mais límpida e mais sedutora. Vou relê-la. Fugiu! Fugiu? Como? Onde é que tu estás? Fiquei triste. Apareceu-me a primeira versão em vez da outra, a versão fantasma, que me deliciou, porque as pala

"Viagem à volta do fumo"...

Gosto mais de viajar para o norte e leste do país, onde encontro sempre coisas novas e regalo-me com as velhas. Pensei, é raro andar para as bandas do litoral. Hoje vou nessa direção, pode ser que consiga encontrar motivos ou um verso para compor à noite.  Ao chegar a Mortágua guinei para a direita. Massena teve que recuar no Buçaco e passou por estas bandas em direção a Coimbra. Na altura deveriam ser descampados, pedras soltas e revoltas. Hoje, um tapete gigante de eucaliptos tapa aqueles vales e outeiros. Se ainda houver algum soldado francês perdido não vou conseguir vê-lo. Pensei nisso, porque desejei vê-los na esquina de alguma curva. Que raio de ideia, o que é que eu iria fazer ou dizer? Devíamos ficar os dois assustados, talvez mais ele do que eu. Andar por estes lados obriga-me a rememorar e a "recordar" certos acontecimentos, como se houvesse qualquer coisa a puxar para o passado. Esbarrei em Águeda onde deambulei pela cidade enfeitada com coloridos chapéus na

"Corrida ao ouro"...

Falta pouco para começar o outono, menos de um mês. Antecipo o sabor das suas magníficas cores, uma estranha tristeza colorida, uma época de adormecimento, do sol, das plantas e das pessoas. Aproxima-se o momento em que morrer não é mais do que partir para um breve sono. A natureza precisa de descansar. Passados alguns meses irá acordar meio estremunhada e cheia de vida. Destruir para criar. Só assim pode vingar a vida e afugentar a morte.  Antecipo a sua nudez, quando as folhas, amareladas, douradas, rosadas, vermelhas, castanhas, num jogo de múltiplas combinações, belas e sedutoras, que nunca nenhum pintor conseguiu registar até hoje, começam a dançar deixando-se cair aos meus pés numa inebriante provocação que só o outono sabe proporcionar. O sol, ao longe, sente que não pode saborear este quadro, e chora de pena, enviando belas lágrimas douradas que retocam e adoçam o suave adormecimento das árvores. Num último suspiro, as árvores conseguem que as suas folhas se transformem em