"A tela"...

O pintor pegou no pincel, deitou-o ligeiramente de lado sobre o montículo da cor, rodopiou-o com gentileza, embebendo-o de emoção, e começou a beijar a tela. A tela, pálida de ansiedade e ávida de vida, estremeceu ao primeiro contacto. Tentou perceber de onde vinha o calor da carícia. Uma breve carícia que desapareceu imediatamente, deixando-lhe uma sensação amarga e uma delicada dor a querer rasgar-lhe o peito. Não demorou muito esta inquietação, porque de seguida começou a sentir novas carícias, que lhe iam aliviando as dores e a ansiedade, enchendo-a de emoções, despertando-lhe prazeres nunca sentidos e embriagando-a de sensações voluptuosas. Fechou os olhos, cheia de curiosidade, tentando adivinhar quem lhe dava vida, e esperançosa em ter uma alma. Sempre desejou ter uma alma. Ouviu vezes sem conta conversas sobre a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e sobre ter alma. Sonhava em receber no seu peito a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e, sobretudo, ter alma. Quando olhava para o lado compreendia o que era a arte, a beleza, a emoção e o sentimento. Faltava-lhe apenas compreender o que era a alma. Fechava os olhos sempre que as pinceladas coloridas lhe corriam pelo corpo. As sensações combinavam-se de forma estranha e cada vez mais duradoiras. Desejava que nunca terminassem. Pensava, é agora que vou ter alma, mas não, continuava a sentir o nascer da vida, o emergir do prazer e o nascimento de uma nova beleza, até que, subitamente, deixou de sentir carícias. O silêncio caiu de forma inesperada. Assustou-se. Abriu os olhos e viu que tinha sido transformada numa obra de arte, bela, provocadora de emoções e capaz de transmitir sentimentos. Olhou para o pintor que estava a admirá-la. Os dois ficaram, toda a noite, em silêncio, a olhar um para o outro. De manhã o pintor foi-se embora. Nunca mais o viu. Soube, então, o que era a alma. O pintor deu-lha em troca da sua alvura virginal. Hoje, a alma do pintor continua guardada na obra de arte. O melhor sítio para uma alma viver.
Santa Comba Dão, sábado, 28.09.2013

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II