"Sombra"...



Surgiu de repente, alongada, negra e a bambolear de forma desastrada sem olhar para trás. Fui atrás dela. De início não se importou, mas na primeira esquina esquivou-se. Desapareceu para logo regressar a meu lado um pouco à frente, mais calma, curiosa e a querer tirar nabos da púcara. Não lhe disse nada. Inquieta, saltou para o outro lado e pôs-se à minha frente a perguntar o que é que eu queria. Não lhe respondi, continuei  no meu trajeto. Deve ter ficado irritada com a minha insolência, porque, temporariamente, desapareceu do meu campo. Depois surgiu quase de frente, acatarroada de tanto protestar. Não percebi o que me queria dizer. Ignorei-a. Fiz mal, porque logo à seguir colocou-se à minha frente, desenhando uma caricatura da minha pessoa, dançando desastradamente. Não me ligas? Então vais ver o que te vou fazer. Aguarda pela noite e, então, assombrar-te-ei com formas frias e distorcidas. À noite não brinco, nem tu irás brincar comigo, à noite não brinco com ninguém, nem comigo. Ouviste? Parei. Ela, a sombra, parou também. Mas o que é que tu queres afinal? Perguntei-lhe. Apenas passear à luz do sol contigo. Mas está tanto calor, tanto sol. Não faz mal. Se brincares comigo prometo que não te assusto durante a noite. Não? Não! Então está bem. Vamos dar uma volta. Fixe! Vamos então, por ali, estás a ouvir, por ali, assim posso desenhar as figuras que quiser. E assim foi. Satisfiz-lhe os seus caprichos. Correu, balanceou-se, dançou, agigantou-se, subiu pelas paredes, desceu pelas escadas, mergulhou cheia de calor na superfície da ribeira, nadou, cantou, brincou e, lentamente, o sono apoderou-se de tal forma que começou a espreguiçar-se pelo chão, pela água, pelas paredes, caindo nos braços dos longos ramos de árvores, até que, silenciosamente, adormeceu. E assim foi o final de tarde de uma sombra. Agora só espero que cumpra a sua promessa, que não me assombre as noites. Se assim o fizer, prometo-lhe que a levo a passear sob o olhar atento e encantador do sol que, divertido com a brincadeira, me perguntou já cansado e com algum sono, amanhã continuamos? Vai ser difícil, amanhã começo a trabalhar. Que pena, mas podes brincar ao menos durante algum tempo? Posso. Fixe! Então até amanhã. Até amanhã. A sombra já não ouviu o resto da conversa, dormia, dormia de cansaço. Pudera! Mas que dois! 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II