Coletânea...

Tive preguiça. Não publiquei na altura. Agora apeteceu-me. Aqui vai uma pequena coletânea de textos.


Almoço
Almocei. Almocei bem. Soube-me tão bem! Descanso um pouco, porque daqui a pouco vou trabalhar, e ainda bem. Não há bem maior do que ter trabalho, trabalho que me faz sentir bem. O meu trabalho é diferente de muitos outros, ajudo e aprendo a fazer o bem. Não sei o que me espera, não interessa, porque se estiver atento vou descobrir tanta coisa que me vai fazer sentir bem. Não é só um bom almoço que me faz sentir bem, uma conversa, uma história também me faz sentir bem. O que eu quero é sentir-me bem. Não tarda e vou a correr. Para quê? Para descobrir onde para o meu bem, um bem que justifica o meu desejo de ser um homem de bem.
Eu quero ser um homem de bem.

Mensageiro
Não a via há muito tempo, desde o dia em que lhe fiz o diagnóstico de um mal. Sei o que lhe andaram a fazer. Nunca mais apareceu, também não tinha de aparecer, andava e anda no sítio apropriado para tratar e remediar o mal. 
Hoje via-a. Chamaram-me a atenção para a sua presença. Já tinha passado à sua frente mas não lhe dei atenção. Parei e cumprimentei-a. Magra, pálida, e com olhar perdido. Olhou-me e senti que não queria cumprimentar-me, mas como é uma pessoa educada estendeu-me a mão. O seu olhar denunciava o que estava a sentir no seu coração. Eu percebi, eu entendi. Ainda tentei quebrar o gelo do contacto. Tentou esboçar uma resposta, fugindo com o seu olhar perdido, baço e ofendido. Não é a primeira vez que sinto o que é ser-se um mensageiro maldito. Eu fui o mensageiro de uma má notícia, eu sei. Ninguém gosta de olhar duas vezes para o arauto de um mal, que provoca sofrimento no corpo, na alma e que provoca a morte. O seu olhar perdido, baço e ofendido viu-me vestido de negro empunhando a foice da morte. Eu sei o que ela sentiu. Não fico ofendido, apenas incomodado por ter dado a má notícia e não ter sido correspondido. Eu compreendo-a, não fico ofendido.
  
Viajar sem fim
Os meus dias conseguem ser diferentes todas as noites. São as noites que dão sabores aos meus dias. Espero que a noite adormeça para poder pensar sobre o dia, o dia que passou. Começo a pensar, sinto que vou ruminar, desejo reviver, preciso de saber, mas por vezes não sei o que fazer. Sento-me. Olho para a televisão, deixo-me enlevar pelo som, sem querer entender o que está a acontecer. Apenas ver, sem ver, criar espaço, subir um pouco a temperatura para que os meus dedos comecem a escrever. Deixo-os à vontade, dou-lhes toda a liberdade, só espero que me contem toda a verdade. Ei-la que surge por toda a parte, a manhã plena de conversa, cheia de sol e de algum silêncio. Ouvi curtas histórias e fiz tudo por mudar o curso de algumas vidas, sem sobressaltos. Ajudar a criar novos acontecimentos é uma forma de exprimir suaves sentimentos. Viajei e deixei embalar-me nos meus pensamentos. Fico com eles, sempre afasto os meus tormentos. Depois foi o habitual, pesquei algumas almas, deixei-me seduzir por palavras, senti medo de certos olhares e temi com o que terão pensado de mim, Mas, mesmo assim, fui até ao fim. A noite serve para isso mesmo, por fim ao dia, coisa que só a noite consegue, viajar sem fim. 
Fim. 

Coimbra, quinta-feira à noite. 31.10.2013

Populismo
Em democracia, por definição, temos os mesmos direitos, os mesmos deveres e podemos escolher quem quisermos para governar. Tão simples como isso. Mesmos direitos, mesmos deveres e liberdade para escolher os governantes. Na prática não é assim, e nem para lá caminha, os deveres de alguns são espremidos até dizer basta, os direitos de muitos são roubados à vista de qualquer um e a liberdade de escolha é condicionada por inúmeros fatores, a pequena promessa pessoal, a influência partidária, os jogos de interesse, o nepotismo, a vigarice institucionalizada e até a loucura de prometer o que não é viável, vendendo sonhos verdadeiramente patéticos. Há quem caia nas promessas? Há. Há quem vá atrás de sonhos fáceis e patéticos? Há? Porquê? Muito simples. Queremos viver com conforto, com qualidade, com dignidade e tudo o que vier ao encontro destas aspirações acabam por nos levar a acreditar nas promessas. É fácil vender promessas, tão fácil como vender iogurtes para baixar o colesterol ou uma maquineta qualquer para tirar as banhas. Compram? Ai não que não compram! Tem efeito? Tem pois, efeito estrondoso nas bolsas dos negociantes. Politicar transformou-se num negócio como qualquer outro. O que interessa é vender o "produto" e depois gozar a vida com os proventos daí resultantes. Estamos sempre a cair no mesmo. Vamos sempre atrás de sonhos fáceis e ficamos deslumbrados com os vendedores da banha da cobra. Um círculo que não se quebra, um círculo que empobrece muitos para enriquecer outros. Chegar ao poder por via democrática é a forma mais honesta e elegante que qualquer povo deseja. No entanto, no contexto da charlatanice que vigora democraticamente, os melhores são travados ou inibidos de chegarem aos locais certos. A democracia é aberta, não tem barreiras e nem mecanismos que impeçam os vigaristas e sacanas sem caráter de tomarem conta do poder. Quando as coisas dão para o torto, então, sempre é possível, através da pancadaria dar cabo dessa corja. O pior é que a corja também sabe da poda e acaba por usar os mesmos meios, pancadaria, nas suas múltiplas facetas, para dominar o povo. O equilíbrio é instável, o prognóstico reservado e as soluções não são as melhores e as mais adequadas, sobretudo quando nos tornamos pobres e limitados nas nossas esferas de ação e de influência. E assim passamos a vida, num vaivém sem fim, sempre a viver os mesmos problemas, sempre à espera de messias psicopatas, logo, desejosos em os abater, ardendo furiosamente com fé e esperança num mundo melhor e diferente, acabando por sucumbir ao tempo, à ignomínia e à frustração de ter nascido. 
Sempre a mesma merda.  


Cedo
Acordar cedo dói, dói quando é cedo demais. Hoje foi cedo demais, demais porque tinha sono, demais porque queria dormir um pouco mais. Dormi um pouco na viagem, o suficiente para compensar, mas também escrevi e li, pensei, vi e ouvi. O dia não foi cumprido, foi até um pouco divertido. Trabalhei, discuti, argumentei e retornei. Contei histórias e criei espaço para outras mais novas. Nada de especial, exceto relembrar o dia de hoje. Falar e silenciar ao mesmo tempo é algo pouco habitual, mas dá jeito quando procuro o efeito de viver a recordação que navega no coração. Assim que cheguei fugi para o meu recanto onde me escondi como que por encanto. Agora faço tudo por sonhar. Sinto o sono a chegar, sinal de que vale a pena viajar e esperar.

Santa Comba Dão, sexta-feira, 01.11.2013

Encanto do meu canto
Fujo para o meu canto. O meu canto é especial, é onde me sinto diferente, onde me esqueço de tudo, onde consigo ver a noite silenciosa, onde saboreio o cheiro da saudade, onde aguardo a chegada da esperança, onde arrumo a dor, onde o tempo não se sente, onde o calor me aquece. O meu canto tem encanto. Sabe bem viver no meu canto. Sabe bem pensar no meu canto. Sabe bem escrever no meu canto. Um encanto.

Santa Comba Dão, sexta-feira, 01.11.2013

Saúde do homem
O homem e a mulher sofrem das mesmas doenças, à exceção das que são inerentes ao sexo. Mas existem diferenças na prevalência, algumas são mais comuns no homem do que na mulher e outras são mais frequentes no sexo feminino. As razões, na sua maioria, prendem-se sobretudo com fatores comportamentais, embora haja, também, outros, de natureza biológica, que podem ajudar a explicar as diferenças. 
O comportamento face aos fatores de risco é, ainda, diferente entre os dois sexos, mas, observa-se, desde há algum tempo, a uma tendência para a igualdade. Basta ver o que acontece com o consumo do tabaco, diminuição nos homens e aumento nas mulheres e o aumento substancial e preocupante do consumo de álcool nas mulheres. A diferença da formação cultural e académica, superior nas mulheres, pode explicar algumas diferenças, a forma de as prevenir e o cuidado em as tratar. O homem é tradicionalmente considerado como sendo mais displicente, menos atreito aos conselhos e mais rebelde ao tratamento. Esta imagem tem passado e é alimentado pelo conhecimento pessoal de cada um. Pode, de facto, haver diferenças, mas estão a desaparecer, devido à tendência para a igualdade entre os dois sexos. É curioso observar que a defesa de igualdade entre o homem e a mulher - indiscutível em termos sociais, políticos, económicos e cívicos - possa ter também uma faceta oculta com repercussão na saúde de ambos. Quando a mulher "imita" os comportamentos e atitudes do homem acaba por sofrer, com a mesma frequência e violência, as doenças que eram tipicamente masculinas. Do mesmo modo a preocupação com a saúde, apanágio das mulheres, devido à sua "sensibilidade", "bom senso" e cultura, está a ser adotada pelos homens que, assim, se "efeminizam" no bom sentido do termo, copiando os comportamentos e atitudes das mulheres. Este fenómeno merece ser discutido a todos os níveis, sem preconceitos; a saúde da mulher agrava-se por "masculinizar" os seus comportamentos e atitudes e a saúde do homem começa a melhorar por "efeminizar" os seus. E, deste modo, o mundo vai-se modificando como sempre fez, correr para o lado bom ou desviar-se para o lado menos bom. Neste caso, no que diz respeito ao homem, a "efeminização" que está a viver vai ter resultados muito positivos ao integrar e adotar o que a mulher tem de bom, bom senso, sensibilidade acrescida, preocupações culturais e, sobretudo, mais cuidado com a saúde.

Proibição de anéis
Já nos conhecemos há decénios. Envelhecemos juntos. Ele é muito mais velho. Adoeceu há muito tempo e tem sobrevivido bem e envelhecido melhor. Agora, desde há pouco tempo, a força do tempo roubou-lhe o fulgor das pernas e a agilidade do corpo. A alma está bem viva, embora comece a ter dificuldade em usar as cordas vocais e os músculos faciais. A sua agilidade mental não se perturba por aí além, mas anda de costas avessas com as malditas pernas que não querem arrastar-se. Ri-se, por vezes um pouco mais do que era habitual. Quando acontece os lábios caiem para os lados aos quais aflora com facilidade alguma saliva. Um bom malandro rico em histórias. Meto-me frequentemente com ele, o que lhe provoca particular prazer ao reviver o seu passado. E que passado! Subitamente, usando da confiança que temos um com o outro, aponta-me para a mão esquerda e diz: - O senhor doutor não pode usar isso. - Não posso usar o quê? - Anéis. - Anéis? Mas isto não é um anel, é a minha aliança. - Então o senhor doutor não sabe que não pode usar anéis, e nem gravatas! Olhou-me para o gargalo e disse: - Vá lá, não usa gravata. Mas não pode usar isso. E voltou a apontar para a minha aliança. - É proibido, e o senhor doutor não sabe? - Aí é? - É pois! É perigoso para a saúde dos doentes Sorri e disse-lhe: - Oh meu amigo se tirasse a aliança quem ficava em perigo era eu! A minha mulher tratava-me logo da saúde.

Santa Comba Dão, sábado, 2.11.2013

Conversa num dia cinzento
Velhos doentes, novas conversas, velhos amigos e novas esperanças, tudo mergulhado no cinzento de um dia triste. Não há maleita que resista a um sorriso, a uma história vezes sem conta contada, a uma tirada esperada, a uma expectativa desejada. Não há nada melhor para tratar uma maleita do que uma boa conversa, conversa feita com carinho, feita com amor e não desfeita pelo tempo que se aproxima do fim. Não há fim que resista a uma boa conversa. Adia-se o fim e contraria-se a maleita. Não há nada melhor do que um sorriso de um homem ou mulher doente num dia cinzento, triste e sem sol. O dia cinzento esvanece-se, um novo sol aparece, e fico com mais um recordação, recordação que me enriquece. O dia cinzento e triste não resiste a uma simples e bela conversa cheia de histórias, prenhe de esperanças, contrariando a maleita que aflige e acena para um fim não desejado, mas esperado. Nada melhor do que sentir os raios de um sol que nasce do tormento de uma maleita. Nasce uma vez, mas nunca se sabe se vai aparecer outra vez.

Santa Comba Dão, sábado.
02.11.2013

Calor
Não chove. O sol anda por aí, sem saber o que fazer e o que dizer. Deixa-se andar ao sabor da brisa do outono, dos sonhos dos mais novos e das saudades dos mais velhos. Quer brincar mas depressa arrepende-se porque há quem o chame para junto de si para que possa aquecê-los. É tempo de começar a reaprender a procurar o calor, o calor de uma conversa, o calor do passado, o calor de uma lembrança, o calor de uma lareira, o calor de um sol desnorteado, e envelhecido pelo círculo do tempo, o calor de um bom vinho a afagar a garganta sedenta e seca de castanhas douradas, o que interessa é sentir calor e libertar o pensamento quente, quente de ideias novas, feitas de velhas lembranças. O que interessa é aquecer quem necessita de calor, calor da vida, calor de esperança ou calor de amor. Sentir calor no silêncio de uma tarde desértica, entremeada por recordações frenéticas, liberta a alma, aquece o sol desnorteado de uma tarde de outono e justifica a existência, nem que seja por breves instantes, instantes em que se consegue sentir algum calor. Donde é que ele vem? Do sol, da lareira, do vinho, da lembrança? Não interessa, o que interessa é que me faça sentir bem.

Santa Comba Dão, domingo à tarde. 
03.11.2013

Colher de plástico
Passaram-se muitos anos e, subitamente, aflora à minha boca o prazer de um gelado doce. Lembro-me do dia, um dia de sol, um dia de férias, um dia em que uma excursão parou por aquelas bandas, um dia em que uma multidão almoçou numa adega de terra batida, sentados em bancos corridos de costas voltadas para os pipos, numa frescura que só uma grande e sombria adega podia oferecer. Vi esse dia de uma forma diferente, vivi essa agitação e cumpri com a minha missão. Fiz pequenos recados a troco de uma compensação. Sabia que já havia gelados, uma novidade, uma tentação que me provocava a imaginação. Como seria comer aquilo, que não era gelo, mas uma massa fria, pastosa, que se podia comer com uma pequena colher? Nunca tinha comido nada parecido. - Quanto é que vou receber? Perguntei. Olharam-me desconfiados. Às tantas teriam razão, porque nunca tinha manifestado qualquer intenção para negociar o que quer que fosse. Esperei pela resposta. Tardava. Repeti novamente quanto é que iria receber pelos recados que ia fazer. Entreolharam-se perante tamanho dislate e falta de respeito. O dia era de festa e havia muito que fazer. Despacharam-me, perguntando se vinte e cinco tostões eram suficientes. Pensei durante alguns segundos. Lembrei-me dos preços de todos os gelados, já os tinha decorado. O mais caro vinha numa taça de plástico. Tinha direito, caso o comprasse, a uma pequena colher de plástico. Nunca tinha visto nada parecido, e a colher de plástico seduzia-me. O gelado custava vinte e cinco tostões. Respondi que sim. Depois foi a agitação e a confusão de um almoço que nunca mais acabava. Barulho, muito barulho, conversas a destoar, copos a tilintar, jarras a debitar, bancos a tremelicar, espichos dos pipos a mijar, pratos a gritar, cheiros a perfumar, fumos a incendiar, e eu a esperar. Assim que se foram embora, corri a perguntar: - Os meus vinte e cinco tostões? Olharam-me muito admirados com o meu pedido. Viraram-me as costas. Puxei pelas saias e reivindiquei com uma voz aguda e dura o pagamento do meu trabalho. Olharam-me. Esperei de peito feito, até que uma bela e brilhante moeda de prata caiu na minha mão. Virei-a, afaguei-a, apertei-a até sentir dor na mão e corri, sem pedir autorização, até ao café perto do jardim. Pedi a taça de gelado de vinte e cinco tostões. O dono, desconfiado, olhou para mim e perguntou se sabia quanto custava o gelado. - Vinte e cinco tostões! Respondi. - Tens dinheiro? - Tenho sim senhor. Abri a mão e mostrei uma brilhante moeda de prata com uma bela caravela. Deu-me a taça de gelado. Fiquei à espera. - Já tens o gelado. Porque é que não te vais embora? - Eu quero a colher. - Colher?! - Sim, quero a colher pequena para poder comer o gelado. - Mas qual colher? - A colher que está anunciada ali. - Ali, onde? Disse com maus modos, e já com a minha moeda na sua mão. - Ali. Ali. Não vê? E mostrei-lhe o anúncio onde se podia ver a colher pequenina. - Eu não tenho colheres. Disse com umas trombas que arrepiava. - Vai para casa e pede uma colher à tua mãe. - Não posso, quando lá chegar já o gelado está derretido. Olhou-me com enfado, foi atrás do balcão, e deu-me uma pequena colher de plástico, a primeira que vi na minha vida. Corri para o banco do jardim, destapei com dificuldade a taça, lambi gulosamente a tampa e comecei a comer o gelado. Enterrei a colher de plástico e comi gelado pela primeira vez na minha vida. Soube-me bem o frio doce a derreter-se na minha boca, num dia de calor sentado à sombra de uma árvore do belo jardim. Espetei a colher de plástico pela segunda vez. Ao retirá-la parti-a e fiquei de boca aberta no meio do jardim. Fiquei triste, porque o que eu queria mesmo não era só comer o gelado, mas guardar a pequena colher de plástico. Continuei a comer o gelado com o coto da colher, mas não consegui apreciar muito bem o gelado até ao fim, porque eu queria era ficar com a colher de plástico, que acabou, afinal, por ficar no jardim...
Coimbra, segunda-feira.
03.11.2013

À vez
Estou fechado a trabalhar. O trabalho não é árduo. Vejo pessoas que falam e que me contam os seus desejos. Ouço-os e compreendo porque é que alguns irão sofrer. Sofrem porque não ouvem, não querem ouvir, apenas rir do que lhes digo. Não acreditam. Eu acredito mas não os convenço. Fico a olhar para eles e digo-lhes mais uma vez, e por favor, para terem mais tino. Olham para mim, riem-se, dizendo que já ouviram o que eu lhes disse da outra vez. Ah, recorda-se, portanto. Riem-se mais uma vez. Um dia destes deixo de os ver de vez. Não sei qual de nós vai primeiro, é apenas uma questão de vez. 
Coimbra, segunda-feira. 
04.11.2013

Estar calado
É bom estar calado. É mesmo muito bom. Não falar, não dizer nada a ninguém, apenas desejar o bem. É muito bom estar calado e não dizer nada a ninguém, apenas ouvir-me a mim próprio aguardando pela chegada do bem. Apetece-me silenciar as minhas palavras, descansar os meus dedos e fugir a qualquer um. Para isso tenho de me calar. Tenho de me esconder, não de mim, mas dos outros. Cansado de ouvir os outros? Não. Cansado de ver os outros? Não. Cansado, sim, cansado de falar para outros. O silêncio das palavras estimula o grito da criatividade do pensamento. Estar calado liberta as ideias, acalma as angústias e não provoca alergias em ninguém, apenas me ajuda a sentir bem. Preciso de me sentir bem, preciso de escrever, de ler, de imaginar, de fantasiar. Preciso de viver, mas para isso preciso de me esconder. Escondo-me dos outros. Escondo-me do mundo. Escondo-me para descobrir um novo mundo. O meu mundo, a minha paz, a minha alegria, mesmo que não passe de uma mera fantasia. Vou colecionar os meus pequenos textos e colá-los numa caderneta como se fossem cromos. Sempre gostei de cadernetas de cromos, nunca completei nenhuma, mas, também, nunca foi preciso. Basta pensar e fazer com que me sinta bem. Um dia escrevo um texto, outro dia dois ou mais, às vezes nenhum, o que vai ser muito improvável, e, deste modo, vou brincando e divertindo-me a colecionar o que é meu e um dia, quem sabe, revelarei o que penso e o que sinto quando estiver nos braços de Morfeu. Estar calado é abrir as portas do meu pensamento e descobrir o que é mesmo meu.
Coimbra, terça-feira. 
04.11.2013

Fazenda
Em pequeno tinha de ir até à fazenda. Ficava longe e eu não gostava. Nunca gostei de andar, ao fim de alguns metros começava a barafustar e a chorar porque não conseguia acompanhar a passada dos adultos que não andavam, para mim corriam. Tanto refilava, tanto chorava que não tinham outra alternativa senão pegarem em mim. Mas o que eu gostava era de ir às cavalitas, em cima dos ombros, sentado em cima do cachaço. Uma maravilha, não me cansava e via a paisagem de uma altura muito diferente da minha. Assim estava bem. Ao chegar à fazenda as forças invadiam de imediato as minhas pernas, corria, saltava, ia até à mina, chapinava nos regos de água, caçava peixes-cabeçudos e tentava descobrir pequenas sereias à entrada da mina, acreditava que eram elas que emitiam estranhos sons vindos da negra bocarra de terra que ainda conseguia ver ao fundo. Comia maçãs tiradas das árvores, esfuracava os cachos cheios de pó roubando as uvas, fingia não ouvir os sucessivos avisos de cuidado e de perigo, borrifava-me para tudo o que ouvia, o que eu queria era sentir os cheiros. Cheiros da terra, seca, molhada e das ervas, todas diferentes, que me entusiasmavam. O que eu queria era cortar pequenos vimes para fazer chicotes, e depois sentava-me em velhos troncos, imaginando cavalos e mulas aos quais tocava para andar, para galopar. Eu ouvia-os a relinchar. O que eu queria era beber a água fresca e límpida da mina. Bebia-a com sofreguidão. Água muito fria e doce. Os dentes doíam assim que a bebia, mas a imaginação logo aquecia e nem o sol do meio-dia me impedia de apanhar com pequenas hastes de ervas os grilos que se escondiam do sol. Um, dois, três, apanhei-os com facilidade e coloquei-os de imediato na pequena gaiola de madeira tosca. Corri até às alfaces, retirei uma e depois ofereci aos gordos bichinhos que eram o meu encanto. O que eu queria era capá-los. Tinha um pequeno canivete, tão pequenino que mal conseguia abri-lo. Olhei para o lado e ninguém me ligou. Abri o canivete, virei o grilo e não vi o sítio para poder capá-lo. Estava calado há algum tempo. Mau sinal para os adultos. Fui apanhado na posição de joelhos na terra, rabo alçado com um minúsculo canivete e um pobre grilo de barriga para o ar, mais assustado do que eu quando vi que estava a ser observado. - O que é que estás a fazer? - Eu? - Sim, tu. O que é que estás a fazer? Tive de confessar. - Estou a capar o grilo. - O quê?! A capar o grilo. Mas tu és doido ou fazes? - Eu não sou doido. O meu avô deu-me este canivete e disse-me que era tão pequeno que só servia para capar grilos. Como apanhei três, eu agora queria ver se conseguia capar um - Aí sim? Então, olha lá, ó meu safardana - um insulto de que era alvo frequentemente - também gostavas que te capassem? - Eu?! Eu não. Lembro-me perfeitamente de apalpar o apêndice com a minha mão. Quem ganhou foi o grilo que, com a minha distração, se escapou. Uma mão no apêndice e a outra no canivete deu nisso. Vá lá ainda ficaram dois. Depois foi hora de jantar e de dormir uma boa sesta em cima da palha de milho do barracão. Ao fim da tarde comecei, no regresso a casa, a sofrer de "terríveis" dores nas pernas, muito cansaço e, claro, tive que saltar para o cachaço.

Coimbra, segunda-feira à noite.
04.11.2013

Almoço de palavras
Comecei a sentir fome. Pensei, devem ser horas de almoço. Olhei para relógio e vi que ainda faltava algum tempo. Então, imaginei, deve ser fome de palavras. Sentei-me. Estava sozinho e violei a hora do almoço. Comecei a comer, sopa, onde as palavras se misturavam umas com as outras, diferentes, algumas boiavam, outras mergulhavam e muitas dançavam. Entraram na boca e senti um turbilhão, todas falavam ao mesmo tempo, todas queriam fazer um sermão. Deixei-as à vontade e ouvi o seu encanto, e senti prazer na boca e no coração. O vinho olhou-me, triste e ansioso por desejar participar no festim. Vi que estava nervoso, peguei no copo e bebi. Estava ainda a saboreá-lo e ele já andava a cantar poesia pelo corpo. Feliz e livre fazia belos poemas que nunca senti. Continuei a comer, enquanto o meu estômago agradecia a minha alma explodia com o encanto que as palavras lhe produzia. Estava sozinho até que o tolo entrou. Sentou-se, encomendou, começou a beber a cerveja e olhou para mim com alguma inveja. Só um tolo consegue transformar a minha sobremesa num belo bolo. Entretanto, o vinho, triste, perguntou porque é que não bebia mais. Expliquei-lhe, mas não entendeu, quis dizer-lhe que só me apeteceu ouvir as palavras de um almoço que era só meu. O pão gritou de raiva e de estupefação, porque é que não me comes, eu que fui a tua paixão? Não te como pão, porque continuas a ser a minha perdição. Calou-se, pois então, mas mesmo assim fiz a vontade ao meu coração, mandando às malvas a razão, e comi, no final, um pequeno pedaço de pão. Uma ode à vida ou uma oração ao céu passa sempre por um saboroso pedaço de pão, capaz de provocar a mais estranha emoção. Acabo por ver que estou a escrever num espaço dedicado à oração, fazendo a minha digestão. Palavras, poesia e vida, pois então, chegam para tranquilizar o meu coração.

Pombal, terça-feira, hora do almoço.
05.11.2013

Charuto de água
Queria fumar um charuto de água.
- Tem água? Perguntou.
- Como?
- Tem água?
- Água para quê? Perguntei.
- Para acender o meu charuto de água.
Vasculhei os bolsos e não encontrei o meu isqueiro de água.
- Não, não tenho.
- Que pena...
Pombal, terça-feira.
05.11.2013

O velho
Passou-se mais um dia, e ainda bem. Passou-se sem dar conta por aí além. Cumpri com as minhas obrigações e não fui alvo de acusações. Limitei-me a transmitir informações e dar algumas opiniões. Escrevi um pequeno texto, à hora do almoço, sobre a fome de palavras. Soube-me bem o almoço e o texto também. Escrevi uma pequena oração, com alguma emoção, num lugar de devoção. Trabalhei, vi, auscultei e aconselhei. Senti-me bem, afugentei a chuva, devorei o tempo e acabei nos braços da escuridão. É com muita pena minha que acabo por cair nesta triste escuridão, negra e pesada como se fosse um arpão a atingir o coração. Cansado, regressei a casa, e deixei-me ir na onda da solidão, embora antes tivesse sido o alvo preferido de uma pequena e alegre multidão.  
Aqui estou, a descansar e a olhar par o velho de cigarro na boca. Velho de olhar cheio e profundo, um velho que é capaz de ver o mundo tal como ele é, um verdadeiro vilão. Fica a compensação de que vale a pena ir ao encontro de uma desafiadora emoção. A emoção contraria a razão, mas ajuda a saborear um quadro que afaga o coração. Afinal, a arte dá a mão a quem precisa.

Coimbra, terça-feira.
05.11.2013

Final de manhã 
Falta pouco, muito pouco mesmo para acabar a manhã. Manhã simples, manhã cinzenta, manhã de trabalho, manhã sem sobressaltos, uma manhã incógnita, como convém a alguém que quer sentir a vida, a sua e a dos outros. É uma maravilha cultivar e semear a discrição para poder colher o fruto do anonimato. Que doce é viver entre os outros sem que percebam que existo, porque só assim consigo sentir a leveza e a tranquilidade da vida. Eu agradeço a todos, e também à manhã, bela, cinzenta e doce como convém a quem quer chegar ao dia de amanhã.
Acabou a manhã.

Coimbra, quarta-feira ao final da manhã.
06.11.2013

Aula
Passei a tarde a dar aulas. Não me cansei, embora sentisse para o fim o tremelicar e a agonia das cordas vocais a quererem lembrar-me o mal que faz falar em excesso. Antevendo a dor da fala, tive que refrear o entusiasmo. Baixei um pouco o tom da voz e tentei adoça-la, não com mel, mas com a doçura da exposição. Soube-me bem cativar a atenção dos alunos, convidando-os a uma profícua participação. Uma aula programada que depressa se transformou numa aula dourada. Foram os alunos que assim quiseram. Vários temas foram abordados e, ao longo da tarde, cresceu o interesse, debateu-se o necessário e aprendemos a conhecer-nos. Muito mais há a fazer e a aprender. Só se aprende ensinando e só ensinando é que se consegue ser criativo. Vale a pena ensinar e muito mais aprender.

Coimbra, noite de quarta-feira.
06.11.2013

Nomes
Não sei como começou, mas não é a primeira vez que comento a importância dos nomes das coisas e das pessoas. Quando se dá o nome a uma pessoa, a um objeto ou a uma flor, a força do nome faz a diferença entre a beleza e o significado do objeto, e consegue inclusive influenciar a personalidade de um ser humano. O que seria da rosa se não se chamasse rosa?  Seria a mesma coisa? Teria o mesmo significado, atração e beleza? Não sei. O que é certo é que o nome de uma pessoa influencia a sua personalidade, a par dos genes, do meio ambiente, da educação e de muitos outros fatores. Há uma carga simbólica que se transfere para o portador, moldando-o, como o nome rosa influência a flor tão apreciada.
Escolher um nome é um ato muito importante, não é uma mera formalidade, mas uma forma de formar, domesticar ou contribuir para a formação da personalidade de uma pessoa. E, assim, de nome em nome, fomos conversando, comentando, explicando e aprendendo a importância dos nomes. 
Chamou-me a atenção o nome de um africano, Kulenfuka Majitulu. Perguntei-lhe se o seu nome tinha algum significado especial. Sorrindo, delicadamente, respondeu-me que sim. Esperei. - Kulenfuka tem dois significados, "obediência" e "pessoa que não tem dívidas com ninguém". - E o segundo? - Mafitulu, "a mãe escolhe como chefe". 
Todos, em silêncio, ficaram admirados com as explicações, que eram bem conhecidas do seu dono. Foi então que comentei: - O senhor com esses nomes comporta-se de acordo com os seus significados, não é verdade? - Sim. Comporto-me, e honro o meu nome respeitando o que eles traduzem. - Então, tem a noção perfeita da força dos nomes na personalidade de uma pessoa? - Sim, tenho, é muito importante. 

Coimbra, noite de quarta-feira.
06.11.2013

À margem do ensino

Muito se tem falado do ensino, dos professores, das escolas públicas e privadas, dos métodos de ensino, do bullying, do desemprego e da precariedade do emprego, enfim, o ensino anda pelas ruas da amargura, o que é lamentável, preocupante e perigoso, porque as repercussões a nível pessoal e social são demasiado importantes. A par destas tragédias assusta-me a violência dentro da escola e relacionada com a escola. As notícias surgem em catadupa e começam a insensibilizar qualquer um, o que não impede de perguntar o porquê de certos acontecimentos. Olho para o monitor e vejo numa página de um jornal, lado a lado e de mãos dadas, três notícias; a de uma professora que ficou sem sentidos após agressão da mãe de um aluno, o caso de um aluno de seis anos altamente problemático - vai ser necessário o acompanhamento da mãe nas aulas -, e, por fim, um estudante que matou à facada a mãe que lhe exigia notas máximas. Há nesta tríade violenta aspetos que merecem ser tomados em consideração, a falta de formação e ausência da capacidade de intervenção a nível familiar. A agressão a quem quer seja revela uma natureza perversa e, no caso de um educador - alguém que tem a responsabilidade de educar os filhos dos outros -, é particularmente grave. No caso do garoto de seis anos, violento até dizer basta, seria preciso saber se ele sofre de qualquer patologia ou se é filho de uma má educação, e quanto ao último caso, bastante triste, arrepiante mesmo, ilustra uma má interação entre a mãe e o filho, cada um com formas de ser e estar que culminaram numa tragédia difícil de compreender mas quem sabe se não seria possível de prever.  
O mundo dentro do ensino anda pelas ruas da amargura, mas o ambiente que o circunda não lhe fica atrás. Sem educação não há desenvolvimento, mas os espinhos que estão a ser lançados limitam muitas das nossas expectativas o que é muito preocupante. 
Aguardo novas tragédias e acontecimentos. São previsíveis? Sim. É mais do que certo, infelizmente.

Coimbra, quinta-feira.
07.11.2013

Desemprego em Portugal a baixar!

Um ministro tentou explicar a diminuição do desemprego em Portugal. Apeteceu-me dar-lhe nas trombas. Claro que o desemprego vai diminuir em Portugal! porque os desempregados têm de fugir do país. Um dia destes a taxa de desemprego chegará aos 0% quando não houver portugueses em Portugal. Dois estalos e um bom murro eram capaz de aliviar a minha tensão. Calem-se, calem-se por favor, sempre é mais saudável e .... honesto...

Coimbra, quinta-feira, à hora do almoço. Estava a ver as notícias.
07.11.2013

Escrever
Escrever dá-me prazer. Escrever justifica a minha existência, permite-me pensar, divagar, inventar, recordar, profetizar, emocionar, amar e até esquecer. Vale a pena escrever, sobretudo à hora habitual, ou melhor, à hora em que deveria estar a descansar. Mais um motivo para escrever, descansar o espírito de um corpo cansado e desejoso de sentir o vigor da força da juventude. Outra razão para escrever, rejuvenescer, ainda que momentaneamente. O peso nas pálpebras começa a surgir. Não me incomoda, pelo contrário, leva-me a voar e a fugir da realidade. Escrever também serve para isso, voar, fugir e descobrir. As ideias esvoaçam sem formas, sem sentido, sem calor, sem frio. Deixo-as andar à vontade, são livres de fazer o que entendem, mas elas não se entendem, porque não sabem que existem, mas têm instinto e procuram almas para poderem renascer e viver como se tivessem também uma. Rondam-me constantemente, chegam por vezes a perturbar-me, sussurram, gritam, cantam, dançam, choram, riem, insultam e amam. Lanço a mão a uma delas. Tenho medo do que me vai sair desta vez na lotaria dos pensamentos. Deixo que as pálpebras caiam. Fecho os olhos e vejo que é uma ideia ligada ao ato de escrever. Já escrevi muitas coisas, coisas lidas por muitas pessoas que, na sua gentileza, me agradecem. Agradecem-me com uma palavra, com uma reverência, com um dito airoso e bem cheiroso, com o despoletar de uma lembrança, com alguma emoção, com uma pequena conversa que alivia o coração, com um sorriso de cumplicidade ou com a alegria de um escrito desenhado num pequeno cartão. Sei lá que mais. Castanhas? Pois então! Até quadros, objetos, desenhos e pequenas obras de arte aparecem quando menos espero. E depois? Depois guardo tudo, embrulho tudo e faço tudo por recordar o que já recebi, li, e ouvi a propósito do que já escrevi. Escrevo, e a ideia, que apanhei há pouco na minha teia, começa a ter forma, cor, cheiro e no fim sabor. Engulo pequenas gotas e sinto a despertar em mim um calor e o ressuscitar de um vigor, tudo por causa de uma bebida que me faz companhia ao fim de um longo dia de trabalho. Alguém leu um pequeno escrito em que falava de uma bebida que foi considerada como a preferida de Napoleão. Curioso pensar neste homem, não em função da sua mania, mas por partilhar o mesmo prazer que é apreciar uma boa bebida. Aqui estou, aprisionado a uma ideia que acabou por adquirir a forma, a cor e o calor de um pequeno escrito que acabou por ser deliciosamente bebido.
Escrever é também dar corpo e alma a uma ideia que anseia por saber o que é a vida e que acaba por se transformar na própria vida.

Santa Comba Dão, quinta-feira, quase meia-noite.
07.11.2013

Calor da morte anunciada

Estou sempre à espera do outono, porque desejo ver florir a morte. Deixo-me embevecer pelas cores. Esqueço-me que os dias são curtos e tristes. Olho para as árvores e embebedo-me com o mais estranho colorido que a natureza me pode dar. O sol pode estar cansado, quer repousar, mas, após o estertor estival, não há beleza igual. Olho para as árvores e ouço o seu triste cantar. O último cantar antes de adormecer. Corro entre elas e ouço o seu desabafar antes de a vida acabar. Vejo lágrimas de todas as cores a baloiçar no ar, lágrimas sem par, lágrimas que me ajudam a amar. Olho para as árvores e vejo o mais sensual desnudar que me é dado apreciar. Ouço as árvores a convidar, numa estranha melodia, para que lhes faça companhia. Ninguém quer morrer só, as árvores também não. Apenas me pedem para lhes dar a mão. Não é por uma questão de dó que lhes dou a mão. Não. Eu amo-as, sou seu irmão. Elas ensinam-me a beleza e o encanto de entrar no outono da vida...

Santa Comba Dão, sexta-feira de outono.
08.11.2013

Paixão do outono
A paixão do outono pode ser uma traição da vida, mas conforta o coração de quem quer adiar a partida...

Santa Comba Dão, sexta-feira de outono.
08.11.2013

"Já passei a roupa a ferro"
A memória consegue reviver com intensidade aquilo que o tempo procura esquecer. Engana-se o tempo, porque a memória delicia-se com as suas recordações. Precisamos de recordar. Recordar é o mesmo que respirar. As almas respiram recordando o que sentiram e viveram. Vale a pena recordar, porque é uma maneira de amar. Neste dia, há muitos anos, alguém cantava:

"Já passei a roupa a ferro
já passei o meu vestido
Amanhã vou-me casar
e o Manel é meu marido

Todos me querem eu quero algum
quero o meu amor 
não quero mais nenhum

Todos me querem eu quero alguém
quero o meu amor 
não quero mais ninguém

O Manel é meu marido
O Manel é quem me adora
O Manel é que me leva
da minha casa p'ra fora

Da minha casa p'ra fora
da minha casa p'ra dentro
O Manel é quem me leva 
no dia do casamento"

Eu era o Manel, e chamo-me mesmo Manuel. Neste dia andei na companhia de amigos. Nada de especial, comi marisco e bebi uns copos a mais, nada demais. Vi estrelas cadentes a rasgar um céu limpo, limpo demais. Fui ter com ela. Não é que estava mesmo a passar a ferro? Correu comigo como manda as regras.
Deve ter sido por esta hora que a vi pela última vez como solteira...

Santa Comba Dão, sexta-feira.
08.11.2013

Café
Quando as tardes imitam as noites eu antecipo os meus escritos. Olho. Vejo que a noite já caiu. Pego na chávena de chá fumegante e cumpro o meu ritual. Beber chá numa tarde que se transformou em noite. Sentado no café, escuto e observo. Escuto palavras, sons e ruídos numa estranha cacofonia a provar a existência da vida. Não os entendo, mas também não faço esforço. Deixo-me embalar pelos sons, ruídos e sorrisos e mergulho na imaginação. Procuro refúgio no semblante de alguém. Semblantes diferentes, alguns simpáticos, outros preocupantes e um ou outro indiferente. Ocupam o mesmo espaço, partilham o mesmo calor e procuram o mesmo sabor, conviver, partilhar ideias e esquecer o maldito sofrer. O tempo passa devagar como convém a quem quer viver sem saber o que fazer. Interessante ver peixes humanos metidos num aquário de conveniência, passeando ideias, mostrando-se, fingindo que sabem, especulando, criando, lendo, debatendo, bebendo e pensando sem ideias. Alguns vão abandonando o espaço, os sons começam a diminuir e eu aguardo o momento mais apreciado, ficar sozinho no aquário.
Olho, entretanto, para o passado e recordo momentos idênticos, os mesmos cheiros, o mesmo calor, os mesmos sons, os mesmos comportamentos e as mesmas conversas. Reparo, as pessoas são diferentes, conheço algumas, estão mais velhas, e as outras, quem são? São os meus ausentes.

Santa Comba Dão, tarde de sábado, transformada em noite prematura.
09.11.2013

Extraterrestres
Acompanho com frenesim a descoberta de novos mundos, alguns dos quais prometem ser fonte de vida, não importa que tipos de vida, o que interessa é que possam ter vida. Há quem diga que não é muito provável que exista, fazendo fé em Enrico Fermi que um dia desceu as escadas do seu escritório em Los Alamos e perguntou: - Onde estão eles? Onde estão eles? Eles eram os extraterrestres. Fermi tentou demonstrar que é muito improvável que exista vida no universo além da nossa. Se assim for, fico desanimado. Prefiro imaginar que possa haver, nem que seja para alimentar a minha fantasia de infância em que acreditava plenamente nessa possibilidade. Também haver um universo deste tamanho apenas para uma espécie meio tola, selvagem e mesquinha como é a nossa seria um verdadeiro desperdício.
Nunca mais se sabe se há ou não mais vidas no universo, e é pena. Penso como seriam eles, como seria a sua inteligência, os seus dotes, sentimentos, se se apaixonam ou não, se têm instintos maléficos, ou, então, se se afastam muito daquilo que nós humanos apresentamos. Fico à espera, sabendo que nunca saberei o que é que irá acontecer, o mais certo é estarmos sozinhos no universo. Se tal for verdade, se um dia chegarem a essa conclusão, deverá ser um dia triste para a espécie que nos irá suceder. Uma espécie pensante ver-se sozinha deve ser angustiante. Talvez nunca cheguem a essa conclusão, e assim permaneçam no desejo de um encontro que possa mudar o que tem que ser mudado, não sei o quê na altura em que isso acontecer. 
Olho para o céu e o meu olfato, que até não é mau, não cheira nada. Mas quando olho em meu redor cheiro pessoas esquisitas, diferentes umas das outras. Analisando-as bem, acabo por concluir que os verdadeiros "extraterrestres" afinal estão por todo o lado, fechados nos seus preconceitos, nas suas fés e ideologias, defendendo grupos económicos ou políticos, sabem como agrupar-se para poder partilhar os seus interesses, sobreviver, dominar, assaltar, roubar, amar, ajudar, lixar, escravizar e não respeitar quem é diferente. Com alguma ligeireza e astúcia conseguem fingir que se equilibram, que respeitam os direitos dos outros e que fazem todos os possíveis para ajudar. Eu ouço-os, vejo-os, tento compreendê-los, às vezes não consigo, porque também sou uma espécie de "extraterrestre", desajustado, importunado, vilipendiado, mas também acarinhado e amado. Tento escapar, fugir mesmo, mas não sei a direção do meu mundo, às tantas nunca foi criado, apenas desejado. Aqui estou, assustado, escondido, à espera que o tempo passe para poder, enfim, encontrar o que mais desejo, o meu mundo, um mundo que nunca deveria ser descoberto.
É melhor assim, não descobrir o que não deve ser descoberto...

Santa Comba Dão, domingo após o almoço com uma tarde de sol.
10.11.2013

Domingo à noite
O dia está a acabar e a noite já começou há muito. Antevejo mais uma semana de esforço, de dedicação, mas espero ter em troca alguma inspiração. O tempo passa depressa e a esperança surge lentamente, talvez preocupada com o que voga na minha mente. Vou-me embora, tenho de viajar, sempre é uma maneira de saborear o peso do silêncio de uma noite de domingo. Vou galgar os mesmos locais, olhando e vendo as minhas árvores, sonolentas, tristes, despidas de folhas, mas que ficam contentes por me verem. Já devem estar ansiosas à minha espera. Veem uns faróis, sabem que sou eu, agigantam-se e baloiçam as folhas que gostam de me lançar assim que passo à sua frente. Falta pouco para as ver na noite escura, que se encanta com a fúria de gente que se sente pouco segura.
Falta pouco para as ouvir e ver na noite escura. Gosto delas, conheço-as há muito. Não envelhecem e não deixam que envelheça sempre que apareça. Vou vê-las na noite escura. Ilumino-as com o meu olhar e recebo em troca algo que só eu sei interpretar. Ao passar debaixo delas sei que me vão lançar folhas douradas, enroladas e avermelhadas. Rodopiam, bailam, cantam, voam. Tenho que ir. Não quero perturbar o seu dormir. Passo por elas sempre a sorrir...

Domingo à noite, no silêncio de uma noite escura.
10.11.2013

Sono
Sinto o sono a surgir da esquina. A porta entreaberta deixa ver cabelos de sombra, despenteados, eriçados e esperançados à procura dos que já foram amados. Finjo que não os vejo, não quero vê-los, espero apenas que o sono me invada e transforme o meu espaço num local sem tempo, sem nada para ver, nem para sentir, apenas que me deixe dormir e se possível rir. Rir? Rir de quê? Da vida, da morte, do sofrimento, mas para isso preciso que o sono me lance no mais belo esquecimento. 

Coimbra, noite de domingo.
10.11.2013

Dia de São Martinho
Um dia que só deu para trabalhar; não tive tempo para ver o sol a bailar. Gosto tanto de ver as castanhas a assar, passei por elas e senti o seu cheiro a inundar o ar. Estive tentado a parar, correr para elas e malhá-las no meu paladar. Olho para todos os lados e não há nenhum que não me indique o meu fado. Lembro-me tão bem do passado, altura em que julgava nunca ser malfadado. Gostava de ficar enfarruscado e desenhava bigodes feitos com o carvão retirado do leito do fogo abençoado. Às escondidas, e depois às claras, entretinha-me a desenhar um novo bigode, quando o vinho novo transformava tudo num pagode. A noite entrava em folguedos e nós, os mais novos, trocávamos de brinquedos graças ao São Martinho, que nos abrigava debaixo da sua capa. Era a noite em que o vinho novo nos livrava de qualquer medo.

Coimbra, segunda-feira com cheiro a castanhas assadas.
11.11.2013

Esperar
Vou esperar. Não me perguntem por quem ou o quê. Vou esperar, certo de que mais dia, menos dia vou encontrar. Tudo acontece, é apenas uma questão de tempo. Estou assustado? Não, não estou, porque ainda não encontrei nem achei o que vai acontecer. Vou esperar que aconteça. O tempo passa, e quando passa tudo acontece. Pensando bem, Assusta-me imaginar o que irá acontecer. Tudo acontece sem saber e muito menos por querer. Vou esperar que aconteça, quando não sei, só o tempo sabe, o tempo é que é o rei. Assusta-me o que possa acontecer sem eu saber, sem eu querer. Imagino que posso esquecer o que irá acontecer, anseio por nada que possa perturbar o meu ser. Encolho-me e deixo que a imaginação entorpeça nos caminhos da mente. Que bom seria se fosse demente, nunca mais me importaria com gente e afastaria tudo que estivesse à minha frente. É horrível saber o que vai acontecer, sem saber quando ou como, só o tempo sabe, só o tempo atormenta, o tempo não mente, é apenas eloquente na forma como se apresenta perante tão infeliz gente. 

Coimbra, segunda-feira, noite, sono.
11.11.2013

Relógio
Tínhamos combinado encontrar no local habitual. O que seria desta vez? Agora que fechou a loja, só o vejo de quando em vez. Perdi um espaço onde encontrava quase sempre algo envolto num velho e incógnito abraço. Escrevi histórias, pensei e idealizei muitas outras sempre que visitava aquele mundo velho, inútil muitas vezes, mas rico em esperanças moribundas, mesmo assim sempre à espera de poderem retomar velhas conversas à custa de desfeitas lembranças. Tenho pena. Hoje, conforme combinado, mostrou-me um velho relógio. - Mármore preto! Disse. - Quanto? - Estou a pedir 260, mas trabalha. Olhei-o por breves instantes e dei uma ultrarrápida mirada ao objeto, sem encanto, sem nada, sem alma, sem fantasmas, sem histórias, apenas sinal de um bater sem se preocupar com nenhum ser. - Adeus, bom negócio. Disse-lhe sem mais nada e abalei para o meu destino a pensar onde encontrar uma fonte de inspiração que pudesse por cobro à paralisia da traição de um novo dia. Vejo o cauteleiro cego à minha frente a cantarolar a taluda, mudei de trajeto e apanhei-o num instante: - Ó senhor Heleno, quanto é cada uma? - Cinco euros. - Dê-me duas, se faz favor. - O mesmo número ou diferentes? - Faça o que melhor entender. Enquanto cortava, duas iguais, dizendo que assim iria ganhar mais, riu-se e disse: - A sua voz não me é estranha. Estou a vê-lo, mas não sei de onde. Ri. Dei-lhe uma nota de dez euros e não estive para mais conversas. Talvez um dia destes me apeteça, hoje não. Hoje apeteceu-me dar dez euros a um vendedor de ilusões, sempre é muito mais barato do que comprar um relógio caro e nu de emoções

Leiria, manhã cedo de terça-feira.
12.11.2013

Dia de sol
Que belo dia de sol e logo hoje usei o meu cachecol. Tenho de o tirar, sinto calor e um certo ardor. Calor no corpo e ardor na alma. Não há medicamento para curar a dor da alma, a não ser amor empacotado em essências de flor. Não vejo flores, não vejo nada, vejo apenas o sol a espreguiçar-se num céu azul sem nuvens, nu, sem nada, apenas dançando e cantando como se fosse o dia do juízo final. Afinal o dia vai ser adiado, porque entrou em cena o safado do diabo. Reclama para si o dom de ser a fonte do calor, mas não é calor que sinto, mas sim ardor na alma, um triste ardor provocado por alguém em quem confiava. O ser humano é mesmo assim, raivoso e doloroso capaz de trair a confiança vezes sem fim. 
O que fazer entretanto? Esperar pelo fim, porque depois posso respirar e gritar bem alto, até que enfim! 

Pombal, depois de um breve almoço, terça-feira.
12.11.2013

Sair
Considero razoável viajar nas redes sociais, sempre podemos partilhar um pouco da nossa intimidade, aspirações, frustrações, partilhar opiniões, fazer análises e comentários, aprender, contribuir para algo que possa ser benéfico, sobretudo aos que gostam de saber e têm ânsias de ler e de viver. Não me importo de expor o meu pensamento, mas por vezes sinto um certo lamento, sobretudo quando sou invadido pelo desencanto. São tantas as vezes em que mergulho na teia dos que não me entendem ou não me querem entender, que o melhor que posso fazer é esconder-me de alguma pessoas, nomeadamente as que vivem à custa de outrem, os que não respeitam os direitos, empenhamento e por vezes até algum sofrimento. Em troca poderei frustrar os que gostam de me ler. Talvez, mas o tempo depressa os fará esquecer. Somos estrelas cadentes, brilhamos durante muito pouco tempo, tempo à espera de deixar alguma semente. Não tenho semente para deixar, apenas sentimentos para despertar. Tudo fica embrulhado em folhas escritas por almas dementes, dementes apenas por se sentem carentes. 
Escrever sem que ninguém me ouça ou leia é um alívio, posso desnudar-me, cantar, dançar, brincar, asneirar sem que isso me comprometa. Queria viajar tanto pela vida como se fosse um cometa na sua última viagem à procura de fecundar o sol. Sairia dessa união alguma semente? Não sei, também não é nada premente, apenas um devaneio da minha mente. 
Aqui estou à espera do final da tarde que se avizinha antes de a noite chegar. Sinto nas costas o calor do sol a fugir e a luz da futura noite escura a prometer o seu silêncio. É de noite que eu gosto de viajar. Imagino ser um cometa a correr sem medo a mergulhar nas profundezas do sol. Será desta vez? Talvez não, o sol empurra-me, despreza-me, e faz com que corra novamente para os confins da noite fria e escura. Olho para trás e vejo o belo disco amarelo a transformar-se num pequeno ponto, a ponto de não saber quem é, talvez um dia apareça e o convença a deixar-me afogar nas ondas do calor eterno, sem que ninguém me veja, sem que ninguém me leia, sem que ninguém saiba quem eu sou. Eu sou um pobre cometa sem brilho, sem encanto, a correr em pleno delírio indo para o frio das profundezas do inferno.

Pombal, final de uma tarde de trabalho com o sol a brilhar e eu encafuado numa sala a respirar o meu ar, terça-feira.
12.11.2013

Automedicação
Um dos mais belos provérbios portugueses encerra em si a razão e a emoção de quem quer manter e preservar a saúde, "De médico e louco todos temos um pouco". Quanto à loucura muito haveria a dizer, mas o que importa é analisar o desejo de ser "médico". Desde que o homem é homem sentiu a necessidade de se curar a si próprio, talvez tudo tenha começado quando caiu pela primeira vez. Terá sido nesse momento que teve a ideia de esfregar o local para diminuir a dor. Considero esta hipótese como o primeiro ato de automedicação. Desde então não tem feito outra coisa, inventando, recriando, modificando e usando o que lhe vem à mão. Hoje em dia, graças ao envolvimento da tecnologia, a quantidade de produtos existentes, químicos ou "naturais", são suscetíveis de curar, de tratar e até matar. É preciso ter conhecimento e adquirir algumas competências. Não me oponho à automedicação, um desejo natural tão velho como o próprio homem, mas há que ter cuidados especiais para evitar complicações. Talvez através de uma educação específica, ou apoio adequado, se consiga obter benefícios e evitar complicações ou mesmo tragédias. Veja-se o caso da dor e dos analgésicos de fácil e livre aquisição, até porque a maioria são mesmo de venda livre. Por vezes provocam graves problemas, mesmo mortais. A aspirina, a rainha dos analgésicos do alto de mais um século de existência, tem feito muito das suas. Alivia as dores? Sim, alivia. Protege o coração e os vasos de tromboses? Sim, protege. Mas pode matar? Sim. Como? A forma mais comum é a hemorragia, sobretudo a digestiva, e até através de outros mecanismos. Se uma criança tiver febre, e se a mesma for provocada por certos vírus, a aspirina baixa a temperatura, mas pode matar a criança devido a certo tipo de incompatibilidades. Quem tiver predisposição para perturbações gástricas não pode tomar aspirina. Mesmo os que não têm problemas podem vir a sofrer complicações graves, sobretudo se for tomada de forma repetida e contínua. Mas as dores, e a febre devido a infeções, são igualmente tratadas com o vulgo paracetamol, que é considerado como inócuo e que constitui talvez o mais comum dos medicamentos. Mas não é inócuo, longe disso, o uso prolongado do mesmo pode provocar problemas hepáticos e renais muito significativos, pelo que é necessário o respetivo aconselhamento. Em suma, dois dos mais comuns medicamentos, que são de fácil acesso, têm efeitos muito nocivos nalgumas pessoas que se automedicam. 
As pessoas podem automedicar-se mas é preciso estudar, perguntar e conhecer para poderem usar os medicamentos como deve ser. Quando não sabem o que é que deverão fazer? Entrar em contacto com o médico assistente, enfermeiro ou farmacêutico, perguntando se podem ou não usar certo medicamento. Assim, com o tempo, aprenderão a saber usar como deve ser e continuar na sua eterna senda de automedicação, uma "loucura" que pode ajudar, mas que pode, também, matar.
Por favor, pegue no seu telemóvel e pergunte ao seu médico assistente. Até o próprio médico de trabalho pode ajudá-lo. A este propósito, como médico de trabalho da sua empresa, pergunte-me se tiver dúvidas. Como? É muito simples, basta telefonar para o meu telemóvel, 968721584, e terei muito gosto em contribuir para diminuir qualquer "loucura"...

Coimbra, noite de terça-feira e a pedido de um amigo. Deu-me prazer.
12.11.2013

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