Coletânea II

Há muito que não vinha aqui. Hoje lembrei-me. É bom andar por um local sossegado, discreto e longe de olhares indiscretos. Talvez aqui me sinta bem. Não sei.


Barbeiro

Um dia meio estranho. O sol desapareceu e deu lugar a nuvens de maio carregadas de tristeza que depois do almoço se puseram a chorar aos gritos. Um dia estranho para ir à baixa onde me enfiei no barbeiro. Esperei um pouco mais do que é costume, mas deu para ver a arte de usar a navalha nos pelos compridos, encaracolados e despenteados que emergiam de uma face magra, esquálida e castanha escura revelando que a maioria dos dentes já foram à vida, uma vida "dura" sob o sol da vida. Os gestos bem estudados do artista da tesoura e da navalha eram bem visíveis. A forma de colocar a mão, a cabeça descaída-, a língua a querer a sair, revelavam cuidados e gosto no que fazia. O operado, deitado com os olhos fechados, gozava com o calor da espuma do sabão e o frio cortante da lâmina a percorrer a sua cara. Tratava-se de alguém que podia bem ser um arrumador de carros profissional. O processo de barbear conseguia ser mais lento do que o cortar do cabelo. Era muito magro e tinha uma maçã de Adão muito saliente. Quando a lâmina chegava àquele sítio até tremia com receio de poder sacá-la com um simples gesto. Mas não, subia delicadamente como se fosse uma prancha de surf a cavalgar uma enorme onda. Só na parte final é que o barbeiro se meteu com ele, certo de que qualquer reação mais intempestiva, no decurso do ato operatório, poderia sangrá-lo. O silêncio da escultura deu lugar a uma conversa mais animada em que a aguardente veio à superfície. - Não, não bebo nada disso. Aqui não entra. E faz o gesto apontando para glote. - Não. Nem pensar. Há muito que não bebo isso. De quando em vez vai um Porto, isso sim, mas nem sempre. Calou-se durante algum tempo, até que rematou, mostrando um sorriso desdentado:- Só sumo de uva prensada, mas negra, só negra. A forma como disse revelou que devia beber bem. A magreza que passeava era a sua sombra, e a colherada do outro barbeiro deu para perceber que comia pouco. - Pois é. Como apenas para sustentar o esqueleto. Não tenho muita fome. Como porque tenho de comer. Claro, nem que seja para absorver os litros de tinto que deveria ingerir. Mas a sua observação, de que o dito deveria ser negro, tinto, fez-me recordar alguém que mereceu o apodo de conselheiro Acácio, e que na sua verborreia, mais típica de um feirante a vender a banha da porca do que a sua sua condição de médico, dizia sempre, vinho sim, vinho faz bem à saúde, mas só do tinto, tinto, repetia com uma surpreendente e arrogante sabedoria que acabava por por os meus cabelos numa raiva a raiar a histeria. Levantou-se sem barba, apenas com um tecido brilhante e acastanhado a tapar a sua caveira em que faltavam pelo menos os incisivos, com o cabelo sujo e descabido para o ambiente de uma barbearia e,na perspetiva de ter de pagar o serviço, adiantou: - Agora é que é o pior! O barbeiro, matreiro e velho, na idade e na experiência, que abanava a bata, limpando-a dos resíduos pilosos, disse: - Qual quê! O cliente enfiou um boné roto e sujo, tapando a miséria dos seus cabelos e tirou do bolso das calças um maço, grosso, de notas de vinte euros, no meio das quais boiavam algumas de dez. - Chiça! O gajo até parecia um americano a sacar das notas. Retirou uma, de vinte, e disse: - Chega? O barbeiro sorriu e nem lhe respondeu. Fez o troco e deu-lhe.
Deve ter ido beber um Porto.
(2014.05.19)


Teresinha

A Teresinha faz parte dos meninos especiais. Nasceu num dia de primavera, lindo, quente, luminoso e muito cheiroso. 
A menina pintou com cores de alegria o quadro de uma família feliz. O desejo de beijar e acariciar um novo ser que perseguiam há muito surgiu naquele belo e inolvidável dia. 
Sempre que alguém nasce as almas dos mais velhos sentem renascer o maior bem da vida, o amor sem limites. O amor de um poço sem fundo, o amor que apaga qualquer tipo de dor, o amor que, transformado na mais bela cor jamais vista, a cor da felicidade, onde todas as outras cores querem mergulhar, é o maior hino de louvor ao criador. 
Teresinha nasceu. Ao fim de algum tempo a dor da diferença provocou sofrimento e temor sobre o futuro de alguém que também é gente. 
Depois surgiu o sorriso. Um sorriso nunca visto, nada igual aos demais, era algo sedutor, brilhante e confiante, porque mostrava a sua forma de ver, cheirar e amar o mundo como nunca tinha sido observado pelos familiares. 
Sorriso diferente. Sorriso de inocência e de esperança, sorriso próprio de um ser confiante, sorriso que acalenta amor, afasta o temor, apaga a dor e faz pensar que o melhor da vida é mesmo ser diferente...
(2014.05.19)

Manhã 

Um dia frio, um dia que nasceu em contra corrente com a época, um dia diferente que, em breve, ou ainda hoje, será esquecido. Todos os dias são para esquecer, todos, até o dia do nascer e o dia de morrer. Esquecer é o mais belo e saboroso doce, esquecer é melhor do que morrer, não faz doer, esquecer e ser esquecido é, apenas,sinal de ter vivido.
(2014.05.20)

Tarde

Esperar é permitir que o tempo se acalme, é o momento em que se deita aos nossos pés, é um convite para adormecer mesmo sem ter sono. Quando se espera o tempo descansa. Quando se espera vem tudo à lembrança. Quando se espera pensa-se em coisas diferentes, tristes, alegres, brilhantes e provocantes. 
Estava à espera da reunião, olhando a velhice das pedras, algumas carcomidas e outras feridas, quando vejo entrar o escritor de monóculo, bigode espetado e pasta de bom couro na mão. Ao começar a subir as escadas, agarrado ao corrimão, parou e olhou-me de soslaio, distante e sem qualquer expressão. Recomeçou a subida, devagar, pensando como continuar o enredo da história que trazia no coração. Antes de entrar, tinha olhado mais uma vez para a torre da sé, local onde a fé foi substituída pela luxúria e pela dor. Olhou-me novamente do alto da escadaria fria, sombria, cheia de memórias e que faz parte de uma trágica história. Olhou-me. Eu também olhei, não sei se percebeu ou não, mas apeteceu-me gritar-lhe: 
- Eu sei o final da história que trazes na mão. Calei-me. Pois então. 
- A reunião vai começar. Disse o meu amigo tocando no ombro.
- Obrigado. Parece que passei pelas brasas. Sabe que o Eça subiu vezes sem conta esta escadaria?
- Ai sim?
- Sim.
(2014.05.20)

Noite

A noite caiu há pouco. Uma queda na noite diferente da de ontem. Frio, chuva e repouso no canto habitual. Fugir da noite é procurar inspiração e tranquilidade no silêncio e isolamento da vida. Encontrar a noite é o mesmo que ingerir uma bebida capaz de ajudar a adormecer os sentidos e prever algo de interessante e perdido no tempo. Em vez de cair no lugar do sono, ou no despertar da esperança de um novo sentir, ponho-me a escrever sem saber o que fazer ou dizer. Recordo apenas momentos frios e quentes filhos de um dia que morreu ao nascer. Dia sem sentido. Confesso que fico tranquilo e feliz por saber que nascer, amar e morrer é o único sentido para explicar o ser.
(2014.05.20)


Café

Uma manhã diferente. Não trabalhei. Fui tomar um café. Entrei no espaço comercial, vazio de pessoas, triste, medonho, assustador, um espaço indicador do mal que circula em redor. Pessoal às portas das lojas com semblante indiferente, mentes longínquas e talvez mesmo vazias. Idosos sentados às mesas, a gozarem sombrias aposentadorias, falavam, comentavam e nem olhavam. Empregados demasiado solícitos perguntavam se precisava de alguma ajuda. Sorri-lhes e compreendi as suas ansiedades e desejos. Tudo cheirava a tristeza, até a velha, com trejeitos de deterioração mental, que falava sozinha para as montras, procurando o que não pode encontrar, alegria, satisfação e bem-estar. Deambulava sozinha indiferente à presença da pouca gente que ornamentava o espaço gigantesco criado numa época de fantasia e de loucura. Agora resta um espaço frio, cinzento de almas, cheio de luz fria e de futuro vazio. Restam lembranças e velhos para ocupar espaços sem sentido, tristes e incomodativos. Um espaço pobre, um país pobre, pobreza em demasia para quem quis passar uma fração de tempo numa manhã de quarta-feira. 
Safou-se o café.
(2014.05.21)

Ajudar

O mundo suspira de dor, respira tristeza, provoca ansiedade, medo e temor. Assusta. Quer matar, mas só depois de torturar. Engana quase sempre, embora possa causar agradáveis sensações ao mostrar belezas escondidas, ao despertar amores adormecidos em corações esquecidos e ao provocar prazer mesmo sem querer, o mundo faz isso e muito mais esperançado em mostrar o que esconde no seu núcleo e na sua essência tenebrosa, silenciosa, e por vezes mesmo escabrosa. O mundo engana, nada promete apenas espera o seu momento de provocar dor e terror. O mundo não me engana. Começo a conhecê-lo à medida que o tempo se esgota. Não posso mudar a sua natureza, embora mude a minha, mais do que esperaria. Quando tal acontece não fico parado, nada me arrefece, enfrento a sua natureza, tento contrariar o mundo, mesmo tendo a certeza de não conseguir. Viver é isso mesmo, lutar contra o mundo de terror, de um mundo sem alma, um mundo que ofende e fere qualquer ser, um mundo que acaba sempre por vencer. Resta-me a ilusão de ter ajudado a aliviar o sofrimento de um pobre coração.
O mundo não presta e não serve para grande coisa. Resta a consolação de alguém ter coragem de lhe levantar a mão. Em vão!
(2014.05.21)

Aflição

Já não a via algum tempo. Gosta imenso de falar, de contar, de inovar, de embandeirar e até, se for preciso, de chorar. Recordo a angústia que passou há muitos anos e a dor que a perseguiu durante tanto tempo, o medo de uma morte dolorosa e anunciada. A angústia da doença deitava por terra qualquer esperança ou vontade de viver. Fiz o que pude, ajudei-a mais através da palavra, porque do corpo outros mais credenciados do que eu assim o fizeram. Gostava de falar comigo, de chorar mesmo. Via o alívio que sentia quando saia. Com o tempo aparecia-me para tratar de coisas corriqueiras. Assim que entrava desfiava de imediato que o seu caso estava a ir bem, tudo controlado. Sorria e dizia-lhe: - ainda bem. Em seguida falava, muito, mesmo muito. Descrevia histórias e acontecimentos uns atrás dos outros e eu ouvi-a. Gostava de falar comigo por duas razões, sabia ouvi-la e confortava-a com palavras e mensagens que deveriam ter para ela algum encanto. Com o tempo as visitas espaçaram-se. Um bom sinal, pensei. Quando aparecia era mais para conversar quando certos problemas começavam a perturbá-la, coisas que atingiam e faziam sofrer os seus.
Hoje apareceu-me com um ar efusivo. Sentou-se e começou: - Tenho boas e más notícias. As boas são por causa do cancro da mama. Já se passaram mais de nove anos e está tudo bem. As más têm a ver com problemas da minha filha, o meu marido teve um enfarte e o pai do meu genro, sem nada que justificasse, suicidou-se há dias. Não era doente, tinha uma idade respeitável, era autónomo, culto, sem problemas, mas vivia sozinho. Os cincos filhos foram à sua vida, como é natural, a mulher, que esteve entrevada durante dez anos, morreu há três. Olhe senhor doutor, é uma dor que não se consegue descrever. Continuou a descascar alguns aspetos particulares do caso, com detalhes e o preciosismo que lhe é tão característico, nas atribulações, passos e pormenores do enfarte do marido, enfim, fez uso do tempo a que tem direito e do tempo que gosto de dar para ajudar a aliviar a dor, a angústia e o sofrimento.
A sensação que fiquei deste episódio foi a solidão da velhice, algo novo, epidémico e que tormenta cada vez mais as pessoas deste país. A solidão de um espaço outrora rico de pessoas e de vivências acaba por se tornar rei e senhor do futuro de uma pessoa que não sabe o que é que isso significa. Vive-se cada vez mais em espaços vazios e despersonalizados, desprovidos de emoções, de carinhos, de afetos e de atenções. Fugir da vida é fugir da solidão é ir ao encontro de um destino antecipado capaz de aliviar a angústia de quem só consegue ver o seu passado. 
(2014.05.22)

Jovens

Pediu-me para a ajudar. Um costume que me encanta. Sentar-me a seu lado, e regressar aos primeiros anos do colégio, tornou-se num hábito. 
- Vovô, amanhã podes estudar matemática comigo? - Claro! Nunca faltei a nenhum pedido de ajuda. Gosto de rever as minhas velhas matérias, descobrir o passado através dos exercícios, do estudo e dos momentos dedicados à atividade intelectual. Posso estar inundado de responsabilidades, atribuições e afazeres diversos, mas sei como arranjar tempo para esta tarefa. Fico surpreendido com a minha paciência e à-vontade. Desconhecia que possuía características de ensinador de crianças. Mas tenho, confesso. Agrada-me imenso, tranquiliza-me e consigo arrastar durante longo tempo a minha parceira. Hoje telefonou-me para que não me esquecesse de que tinha de ir estudar matemática. Perguntou-me se podia levar consigo um amigo que tem certas dificuldades nestas matérias. - Claro que podes. Conheço bem o rapaz, simpático e muito educado. O moço tem alguns problemas, que, prontamente, começaram a desvanecer-se à medida que ia explicando, repetindo, fazendo analogias e comparações, explicando, inclusive, como é que o cérebro funciona. - Sabes, o teu cérebro funciona desta forma. Queres ver? E mostrava-lhe no papel o que se passava na cachimónia. O miúdo ria-se e perguntava se era assim que as coisas se passavam na cabeça. - Claro que é! Mas o mais interessante é que consegue ser mais rápido do que eu a escrever. O teu funciona assim. E como tinha compreendido o meu raciocínio ficou admirado por ver que tinha sido mais rápido do que eu a escrever no papel. A confiança do miúdo desabrochava com uma rapidez interessante, um verdadeiro botão a florir. Expliquei-lhe que a matemática e o português andam de mãos dadas e que se consegue traduzir as frases, os conceitos e os problemas em fórmulas e equações. - Uma questão de linguagem. Percebes? - Sim. Estou a entender.- Ainda bem. 
O tempo ia passando e os dois acompanhavam-me com curiosidade e satisfação. Já se tinham passado mais de duas horas e nenhum revelava cansaço ou algo parecido. Eu também me senti bem. Gostei imenso poder ensinar e ajudar a desabrochar as pequeninas e encantadoras mentes. Interpreto estes momentos como uma forma de religiosidade, de criatividade, de saudade e de esperança no futuro. Acredito na aprendizagem, na cultura e na musculação cerebral, base do desenvolvimento do espírito que anseia conhecer para poder libertar-se e preservar a liberdade.
Já estou a ver. - Vovô. Podes vir estudar comigo? - Claro! - Posso levar o meu amigo? - Podes pois! 
Confesso que gosto de ensinar estas criancinhas e, também, de recordar os momentos em que aprendi estas matérias. Sorrio, porque viajo ao passado a uma velocidade estonteante, trazendo para o presente um coleguinha que, com a mesma idade dos meus pequenos alunos, gostava de aprender estas coisas. Coisas importantes e determinantes para o advir.
(2014.05.22)

Castigo 

Acabo de ler que os religiosos da zona dos Balcãs, que está a sofrer efeitos devastadores por causa das inundações, atribuem o fenómeno a um "castigo divino" devido ao facto de um individuo, do sexo masculino, que se veste de mulher e é homossexual, ter ganhado o Festival Eurovisão da Canção. Não são religiosos quaisquer, são altas individualidades de uma classe que se arma em representante oficial de Deus. 
"Conchita" é quem é, não me incomoda minimamente, acho-lhe piada pela forma provocadora como se apresenta e até canta bem. O mundo, com "Conchita" ou sem "Conchita" não muda um milímetro no seu percurso cósmico. E faz muito bem. Nem mesmo a evocação do "castigo divino" por parte dos procuradores de Deus - nunca percebi bem como é Deus se "deixou" cair nas suas mãos -, irão mudar o que quer que seja, mas fazem estragos, e que estragos, mais do que a tola e provocadora "Conchita". Não é a primeira vez que os "procuradores de Deus" têm comportamentos deste tipo. Sempre que ocorre uma ameaça ou catástrofe natural é habitual atribuir a situação a uma indisposição ou irritabilidade divina. Deus é "alguém, que se deve irritar com muita facilidade. Quando foi da tragédia de Nova Orleães, Deus surgiu como o responsável. Quando surgiu a Sida, Deus apareceu como sendo o castigador de condutas "antinaturais". Enfim, aparece sempre, mas, sobretudo, quando há "desvios" ou mexe com o sexo. Uma chatice, penso eu. Deus não deve gostar nada de sexo. Então, se não "gosta" por que razão é que permitiu a evolução nesse sentido? Poderia ter arranjado outra forma de perpetuar as espécies, elas até existem!
O que me incomoda nisto tudo é o "castigo" de Deus. Recordo perfeitamente as vozes de certos arautos, que, por tudo e por nada, me metiam, em pequeno, medo com Deus. Fizesse o que fizesse punham Deus no meio de tudo com um ar ameaçador. Ficava aterrorizado. Era raro o dia em que não me lançavam na cara, às vezes acompanhava mesmo as palmadas no rabo e nas mãos e as vergastadas nas orelhas, que iria diretamente para o inferno onde passaria a eternidade a ser tostado violentamente pelo diabo e seus capangas, não por desejo do chifrudo mas por imposição de Deus que assim me entregaria de mão beijada ao dito. Não sabia como fugir desta tirania religiosa. Ainda tentei pedir explicações, mas sempre que fazia estava tramado, um estalo, um ralhete ou um insulto e eu acabava por calar-me. Recordo pesadelos terríveis e tormentos sem fim. Percebi rapidamente que o melhor seria fugir à socapa daqueles estranhos ambientes, ou, então, quando não podia, fingia que ouvia sem lhes dar atenção. Assim fiz até me aperceber que não tinham razão, o que queriam mesmo era provocar inquietação. À medida que fugia deles, e dos seus estranhos sermões e, por vezes, parvas lições, consegui ver a poesia de um Deus diferente. Nunca me interessou se era real ou não, mas fiz o que devia, transformei-O à minha maneira, num rolo doce recheado de amor e suficientemente cheiroso para atrair gente como eu, os que se assustavam com os castigos de Deus.
(2014.05.23) 

Encontrar e recordar

Sábado de manhã a antever um resto de dia diferente. Corro ansiosamente para poder ver coisas simples, quentes e suaves. Elas existem, andam por aí, talvez meio tristes por não serem vistas, acarinhadas e amadas. Ouço as suas vozes, distantes, a quererem que apareça. Querem contar histórias, partilhar alegrias e mágoas escondidas. A vida emerge dentro de pedras esquecidas e de almas perseguidas pelos tormentos de quem não lhes liga. Há um suave odor a jasmim a convidar para entrar em mágicos e belos jardins. Não sei onde vou parar, mas basta-me ir a qualquer lugar e, de repente, mesmo que não encontre gente, acabo sempre por encontrar algo que me contente. Viver é andar sem destino à procura de um gesto, de uma imagem, de um sorriso, de uma saudação, de um odor, de uma paisagem, de qualquer coisa que possa alimentar o coração e apaziguar a razão. É o que me apetece fazer hoje. É o que me apetecia fazer sempre. Enquanto não deixar de me lembrar, quero apenas encontrar para poder recordar.
(2014.05.24)

"Joia"...

O dia prometia algo de interessante, as nuvens é que andavam indecisas, ora escondiam carrancudas o sol, ora abriam janelas para que ele pudesse espreitar a minha liberdade.
Fui até Gouveia. Andei, passeei, espreitei e acabei por ir ao museu Abel Manta. Em boa hora o fiz. Deliciei-me com os quadros de tão grande e expressivo pintor e ainda desfrutei de um ambiente simpático, lúdico e culto no meio de uma pequena cidade do interior onde estavam expostas obras de muitos artistas portugueses. Sem o tempo a martirizar-me, e sem preocupações de maior a desviar-me a atenção e o gosto pela reflexão, e com uma vontade imensa de beber tão criativa expressão artística, passei um bom momento naquele palácio. Aprendi muito. Ao terminar a visita entrei numa pequena sala onde vi um belo quadro intitulado "O Joia", que me fez lembrar de imediato uma personagem da minha terra, o Zé Sancho. Na mesa estavam, entre muitos cartazes e cópias de pinturas, uma descrição do quadro.
Li: "Um homem olha-nos de frente. A cabeça verga com o peso do saco que carrega às costas. Agarra-o com as duas mãos. Na direita, ainda consegue levar um chapéu.
Veste casaco cinzento esburacado e camisa desabotoada. Um cordão faz de cinto, que mal prende as calças rasgadas. Trás nos pés umas velhas botas castanhas.
Atrás dele está uma carroça puxada por um burro.
Mal se veem, no dia cinzento.
Devia estar frio. Que lhe parece?"
Havia muitas parecenças entre o "Joia" e o Zé Sancho. Ambos carregavam sacos, usavam calças velhas, chapéu, e um cordão para as apertar. O Zé Sancho era muito forte, tão forte que metia um saco de farinha debaixo de cada braço e, com a pirisca no canto da boca a arder e a fumegar, subia com uma facilidade surpreendente a inclinada rampa para espanto dos outros trabalhadores que com muita dificuldade transportavam um no lombo. Uma força descomunal. E quando se pretendia testar a sua força era capaz de mostrar que ainda conseguia levar um terceiro às costas. Trabalhava descalço ou usava umas socas de madeira. Nunca largava os cigarros kentucky, um verdadeiro mata-ratos que o pessoal jovem abominava. Quando lhe dávamos cigarros com filtro, ou mais "sofisticados", dizia que aquilo não era tabaco e retirava de imediato o filtro. Não era homem de muitas falas, o que estava correto, pois nele conversar variava na razão inversa da força.
Tornou-se numa figura popular. Um mouro de trabalho que nunca se queixava. Guardava o dia do senhor. Num desses dias, estava no largo do Balcão com os meus amigos, vi aproximar-se o Zé Sancho. Começaram a meter-se com ele, perguntando-lhe se vinha da missa. Respondeu à maneira, um zunzum que não percebi. Não entendi se queria mandar alguém a outro lado. Eu nunca o vi na missa, pensei, mas como poderia ver se, também, não punha lá os cotos?
Para onde vais Zé?
- À fazenda.
- À fazenda?!
- Sim.
- Onde fica? Explicou-me e vi que ainda tinha de andar um bom bocado.
- É longe!
- Não.
- Vais trabalhar na terra ao domingo? Olha que isso é pecado.
- Não vou trabalhar.
- Não vais?
- Não.
- Então, o que é que vais fazer?
- Estrume.
- Estrume?! Como? E o Zé Sancho, na sua forma linguística básica e popular, disse sem rodeios o verbo que impera em muitos meios.
- Oh diabo! Mas por que razão fazes isso?
- Para poupar. Tenho que aproveitar para fazer estrume. Não posso desperdiçar.
- Mas ó Zé, tu consegues aguentar até à fazenda?
- Consigo pois.
- Mas é tão longe!
- Não faz mal. Virou-me as costas, com a pirisca a arder no canto da boca do lado esquerdo, e, no seu andar tipo Charlot com as velhas socas, lá foi pela avenida cumprir o ato ecológico de adubar com a sua natureza a terra que lhe dava de comer. O primeiro ecologista que conheci.
O quadro de Abel Manta teve o condão de me recordar este episódio e uma personagem que me marcou na infância e adolescência. Estou convicto de que se o grande pintor tivesse conhecido o Zé Sancho seria capaz de o registar com a mesma nobreza e elegância como fez em relação ao "O Joia". Afinal, eu também conheci uma joia.
(2014.05.24)

Vazio

O tempo anda muito triste, para o contrariar andei por terras conhecidas e serras desconhecidas. 
A localidade estava vazia de gente, de cor e de calor. Muitas casas ilustravam o estado de saúde dos proprietários e até de muitas almas esquecidas. O vazio instala-se definitivamente no interior. Vê-se ainda gente, pessoas tristes de idade à espera de adormecerem num qualquer paraíso perdido. Andei e entrei num templo. Não estava vazio. Ouvi vozes e conversas que destoavam naquele local. Entrei. O templo tinha qualidade artística. Junto do presbitério estavam um pouco mais de meia dúzia de mulheres. Umas em pé, outras sentadas, algumas em posição lateral, numa cavaqueira que mais parecia uma conversa de café ou, mais adequadamente, uma calhandrice à antiga, falando umas com as outras, entrecruzando os temas mais diversos. Comecei a caminhar pela parte central da nave, mas rapidamente deram conta da presença. Abrandaram um pouco os temas das conversas e olharam-me num ato reflexivo. No entanto, vendo que o meu interesse estava focado em vários quadros, nas belas capelas laterais e nalgumas imagens, regressaram com a mesma intensidade às suas tertúlias. Aproximei-me e ouvi as suas conversas. Sorri. Pensei que, como estava vento e um pouco desconfortável lá fora, se reuniram naquele espaço para poderem conversar à vontade num domingo à tarde. As idades das senhoras estavam em concordância com a idade do espaço envolvente, da localidade e do interior do país. Passei entre elas e subi os dois degraus do presbitério. Nesse momento, uma das senhoras disparou: - Agora vamos rezar. A coscuvilhice acabou e uma ladainha a várias vozes afagou-me as costas e feriu-me os ouvidos. Fiquei naquela posição durante alguns momentos ouvindo as suas rezas, até que uma das senhoras, vendo luz na sacristia, passou à minha frente, sempre a "cantar". Viu uma senhora a entrar e disse : - Ah! És tu! Tens a chave? Dá-ma. Voltou a passar à minha frente, retomando a ladainha. Sorri. Que mais poderia fazer se não sorrir? Ao sair comentei: - Um dia destes, quando desaparecerem estas senhoras, também desaparecerá toda esta envolvência e o próprio templo sentirá o efeito ficando vazio de gente, de almas e de esperança. O mundo, sobretudo o mundo do interior está a ficar cada vez mais vazio. Um vazio que alguns vivos começam a sentir. Eu sinto esse vazio, e dói.
(2014.05.25)

Televisão

A televisão é violenta, não por apresentar programas de violência ou constantes noticiários sobre agressividade, mas pela rotina em mostrar sempre os mesmos, quer seja na política, no entretenimento, no desporto e noutras coisas tais. 
A agressividade é constante e ofensiva. Muitas dessas pessoas aparecem com uma frequência inusitada, programada ou contrabandeada. Há qualquer coisa que não bate bem. Por exemplo, na política, o aparecimento de certas pessoas provoca de imediato um conjunto de reações de sinal contrário, habitualmente com pendor negativo. Ainda não começaram a falar e já se sabe o que vão dizer. Querem explicitar as suas ideias, pretensamente originais ou inéditas, que, na prática, não passam do mesmo, mestres em enganar, fiéis a promessas clássicas, invejáveis vendedores da cobra e oportunistas de má qualidade incapazes de esconder os seus interesses imediatos e materialistas. O que lhes interessa é tratar da vidinha. A exposição televisiva tem esse condão, por um lado dão fama e proveito aos que aparecem, mas, em contrapartida, são frequentemente despidos, mostrando o que querem esconder. É impossível esconder a cretinice, a petulância, a soberba e o oportunismo de certas pessoas que navegam nas mais diferentes áreas. O que interessa é vender, seja o que for. O que interessa é construir imagens artificiais. O que interessa é enganar as pessoas. O que interessa é transmitir falsas promessas. O que interessa é alimentar as carteiras dos amigos, e a sua. O que interessa é mistificar a vida. O que interessa é viver à custa dos outros. A televisão faz isso tudo e muito mais, mas consegue dar a conhecer a realidade das pessoas, uma realidade confrangedora. Só me resta fechar a dita e mergulhar numa boa leitura ou ouvir boa música enquanto escrevo parcas e ocultas reflexões.
(2014.05.26)

Desilusão

Estava esperançado em ir ao local de costume para cheirar o ambiente e ouvir o meu pensamento. Naquele espaço consigo mudar a minha forma de ser e fazer nascer novas formas de pensar. Um local sagrado, mas mágico para mim. Já não o sinto há algum tempo. É hoje, pensei, enquanto me deliciava com as belas favas que dançavam à minha frente. Inesperadamente um amigo entrou na sala e sentou-se. Soube de imediato que não ia ouvir as vozes e as inspirações das minhas deusas. Não faz mal. Noutro dia dia irei compensar esta necessidade. O almoço decorreu bem e novas soluções surgiram para alguns problemas um pouco preocupantes. As favas estavam deliciosas e as soluções apontadas também. Sorri. E antes de retomar o trabalho sentei-me à sombra de belas árvores, ouvi o saltitar de doces águas e fiquei a saber que se pode saborear o belo e a paz em apenas dez minutos de tranquilidade acasalando com a deliciosa natureza na paz do bulício urbano.
(2014.05.27)

Charlatanice

As redes sociais são um verdadeiro maná para conhecer o caráter, a formação, o pensamento e a forma de estar de muitas pessoas. É possível ao fim de algum tempo ver aquilo que nunca se conseguiria observar ou detetar pelos meios convencionais, a convivência, o encontro, a discussão ocasional, enfim, tudo aquilo que marcava a vida de antanho. Agora não, é mais giro, mais rápido e mais preocupante, porque a exposição é total, ou quase total, e fornece dados muito relevantes. Habitualmente não faço grandes comentários a determinadas exposições, embora sinta estranhos impulsos nesse sentido. Contenho-me, mais por uma questão de respeito, do que qualquer outra coisa. No entanto, observo uma certa dificuldade nalgumas pessoas ao quererem interpretar determinados acontecimentos, notícias ou informações. 
Há muita falta de qualidade e até tentativas de manipulação ao nível da informação que corre na internet. Dentro deste quadro, cito aqueles que estão mais ao meu alcance por motivos profissionais e académicos. Abunda tanta informação distorcida, tanta asneira, tanta tentativa de pretensa desmistificação, quando na realidade é perfeitamente o oposto, com a charlatanice a ocupar o lugar cimeiro. A técnica já começa a ser velha, começa-se com conceitos corretos, baseados em evidências científicas e depois, de uma forma subtil, "arrastam-nos" para conceitos perfeitamente disparatados ou até mesmo perigosos, levando à confusão e até a mudanças de paradigmas que podem custar caro aos que caiem nesta forma de abordagem. Obviamente que nem todos têm capacidade de escalpelizar o assunto, mas, mesmo assim, se tivessem um espírito crítico digno desse nome, poderiam efetuar uma pesquisa sobre o assunto socorrendo-se de fontes sérias e credíveis que também estão no espaço virtual. Não o fazem. Porquê? Por comodidade? Talvez, ou, então, por as tais notícias, muitas vezes sensacionalistas, se encaixarem na sua forma de ser reforçando comportamentos ou permitindo a exteriorização de "incómodos" ou opiniões que queriam expressar, mas para as quais não dispunham de critérios "científicos". Sente-se nessas formas de expressão um certo regozijo por conseguirem por em causa princípios, regras e opiniões que não lhes são do seu agrado e aproveitam para despejar um pouco a bílis negra que os atormentam. Enfim, sempre tem um efeito colagogo, o que não é mau de todo!
(2014.05.28)

Dia da espiga

O dia de hoje foi diferente. Participei numa cerimónia académica com pompa e circunstância a testemunhar o apreço e a admiração por um homem de bem que tem lutado pelos outros e sabe defender o país. Considero-o como um exemplo, alguém que não esconde o que é e o que pensa.Ficou-me no ouvido algumas das suas frases, que acabam por fazer parte de mim. Ele próprio confessa que é um homem que não tem avesso, é o que é. A ética é o som da sua alma e a palavra o rio da sua vida. O timbre da sua voz só é ultrapassado pela sinceridade e frontalidade da sua forma de ser e de estar. Um exemplo a seguir e a respeitar. O dia de hoje foi chuvoso, triste, mas que se transformou num dia de sol, de alegria e de esperança. Curioso, no meio da cerimónia veio-me à memória a espiga dourada, que mata a fome do corpo e da alma desesperada.
No dia da espiga, vi, ouvi e abracei uma outra espiga.
(2014.05.29)

Sem título 

Não me ocorre nenhum título, não tenho nada de novo, estou vazio, sem nada, apenas sinto ansiedade e um desejo de fugir para o meu canto, lá em cima, na paz da terra, onde o silêncio é meu, onde o calor ou as lágrimas do dia não me perturbam, onde penso, escrevo, sonho e desapareço do mundo e de mim mesmo. Não há sítio mais agradável do que me enterrar naquela sala, olhando através das janelas o vazio das ruas, o decair das casas e o ressuscitar de muitas lembranças. Ouço a passarada, agitada, atrevida e brincalhona a querer desafiar-me para os seus jogos. Eu ia, mas não sei voar. Voo à minha maneira, através dos meus objetos, quadros, livros, sons e recordações. Ainda falta tanto para lá chegar. Estou longe, mas já mandei à frente o meu desejo, um desejo que não tem ainda título. Não faz mal, porque assim que chegar, no conforto de um suave ar, irei ouvir o cantar da vida e afastar o mal, e o meu desejo receber-me-á com alegria oferecendo o tesouro de um título.
(2014.05.30)

Fadiga

Uma agradável sensação de fadiga invade o meu corpo, um calor diferente a imitar ondas de prazer com odor a alfazema. A fadiga atinge os olhos e começa a espraiar-se obrigando as pálpebras a sonhar com o presente, e a alma, distraída, nem se apercebe que está a ser empurrada para o passado ausente. A fadiga dança e a alma procura, e eu fico à espera da lembrança, da descoberta, do achado, de algo que me entretenha nesta noite silenciosa, cheia de encanto, noite em que desaparece a morte, a dor e o medo. Há noites misteriosas, raras, capazes de recordar o futuro, esquecer o presente e pintar o passado com cores inexistentes.
(2014.05.30)

Forais

Fui convidado para participar, como moderador, num colóquio sobre os 500 anos dos forais manuelinos atribuídos a Santa Comba Dão e a cinco das suas atuais freguesias outrora também concelhos. Um pequeno concelho possui no seu cofre e na sua história seis forais. Estas cartas de direitos e de deveres, que outorgaram a identidade administrativa, civil e judicial, constituem um fator de coesão e de identidade regional base de qualquer desenvolvimento e cooperação. 
Se analisarmos bem podemos verificar a existência de vários tipos de identidade, biológica, familiar, cultural, profissional, religiosa, ideológica, política, clubista, para falar das mais importantes. Todas as identidades enunciadas, se virmos bem, estão, de algum modo, subordinadas à identidade regional. Hoje já não se nasce nas aldeias, nas vilas e cidades do interior. A conquista em termos de saúde exige cuidados que só podem ser ministrados em unidades adequadas que estão concentradas em urbes com determinadas dimensões e importância. A desertificação do interior leva ao envelhecimento demográfico. Este, por sua vez, contribui, a par de medidas humilhantes, caso de poupanças do poder central, ao roubo e encerramento de serviços vitais para a coesão social e desenvolvimento local. 
Ao comemorar em ato solene, académico e popular a outorga da personalidade jurídica, civil e administrativa aos concelhos, traduzidas pelos forais manuelinos, podemos concluir pela existência de uma brutal diferença de comportamento e de atitude entre a forma de ver do poder central de então e o atual. Ao respeito, incentivo e carinho de antanho, contrasta a "destruição", humilhação e ofensa aos que por aqui ficaram, vivem e querem morrer. Gente esquecida, que se sente ameaçada por cortes e pela supressão de vários serviços. 
Não sei se as comunidades locais irão no futuro comemorar este facto, nem sei se irão existir, mas mesmo que não existam sob a forma atual, o que é perfeitamente natural, provavelmente não serão capazes de sentir essa força telúrica e social, que está desaparecer por não nascerem nesses locais e por desaparecerem para outras pátrias.
Sem identidade regional não é possível construir a memória coletiva e sem memória o futuro morre às mãos do presente.
(2014.05.31)

Dia mundial da criança 

Hoje, tive a oportunidade de participar num almoço típico daquelas bandas, juntar à volta de uma mesa, iluminada por bom vinho e enfeitada com entradas deliciosas como a antever o desbravar de pratos fortes e reconfortantes, culminando numa explosão de doces variados e ofensivos a quem não os pode comer, os que nasceram no mesmo ano. Muitos faltaram, como é habitual, mas os mentores desta prática, que se arrasta há muitos anos, confiam nas suas vontades exprimindo o desejo de recordar o passado e afugentar o sorriso amarelo de um futuro nada simpático. O que interessa é viver o presente e recordar os passados individuais e coletivo. Conversas, histórias, e lembranças esquecidas retomaram o seu lugar, permitindo a expressão de sentimentos, de dores, de alegrias e de tudo aquilo que determinou o crescimento e a vida de qualquer de um. As dores esqueciam-se sob o fulgor e o calor do vinho, enquanto as mais agradáveis não conseguiam competir com os sabores dos pitéus que nos agrediam constantemente. Até há listas, para que nenhum fosse esquecido, uma lista para homens e outra para mulheres. Vi a dos homens, a maioria estava viva, mas já há algumas baixas e, segundo ouvi, mais irão ocorrer brevemente. Quanto à das raparigas as coisas estavam mais complicadas. A lista englobava todas as que nasceram naquele ano no concelho e o que está deliberado são apenas os que nasceram na freguesia. Já há alguns intrusos, mas, enfim, têm direitos adquiridos. Ainda bem. Uma das responsáveis pelo evento do próximo ano tentava saber quem eram as que pertenciam à freguesia e que tinham andado na mesma escola. Ouvi-a a dizer: - Esta morreu em pequenina, era filha de sicrana. Esta também morreu era filha de.... Quando ouvi de quem era filha pulei. - Essa menina era a minha companheira de criança! A "mordoma" avançou: - Devia ter sete ou oito anos quando morreu. - Não. Respondi. - Tinha cinco anos e chamava-se Mimi. Recordei de imediato um conjunto de imagens, de sons, de alegrias, de choro e de um pequeno cadáver a quem dei a mão e toquei na cara. Lembrei-me da sua boneca, cujos olhos abriam e fechavam. Fui buscá-la e coloquei-a na cama onde estava a dormir um estranho sono de onde nunca mais acordou. Tenho a sua imagem gravada no meu coração, e sinto, ainda hoje, muitas saudades. Acompanhei-a ao cemitério atrás da velha carreta negra e prateada da misericórdia. Ouço, constantemente, o barulho doloroso da matraca a abrir o cortejo fúnebre. Recordo dos momentos em que a baixaram à terra. Tinha cinco anos. - Desculpa. Como era o seu nome? É que eu a conheci sempre como Mimi. Olharam surpreendidos para mim. Foi então que soube, cinquenta e oito anos depois, o nome da Mimi, Maria Emília. Fiquei em silêncio, com lágrimas estranhas a correr dentro de mim...
Mimi era uma criança e hoje recordei-a e soube o seu nome no dia mundial da criança. Uma criança que espera por mim...
(2014.06.02)

País de miséria

Tenho muita dificuldade em compreender e aceitar certos comportamentos, formas de comunicar e de manifestar neste país meio louco e sofredor. Tenho muita dificuldade. Conheço um pouco, para não dizer muito, da realidade nacional. Ando por esse país fora como se fosse um peregrino perdido à procura do santuário onde pudesse rezar para pedir ao estranho divino ajuda para os necessitados e sofredores desta nação. Uma nação dominada e conquistada por loucos, que se alimentam de verdadeiras loucuras. Custa-me aceitar muitas coisas. Cada dia que passa cresce uma revolta quente, ígnea mesmo, prestes a querer incendiar o que me rodeia. A tolerância diminui, o sobressalto aumenta e a raiva está pronta a explodir. Não consigo calar-me, não consigo reprimir o que penso. Sofro imenso com o que vejo, sinto e partilho. É demais a discrepância entre os que sofrem e os que se vangloriam e passeiam à custa dos miseráveis. Este país vive num quadro de miséria. Afinal a miséria é a essência da vida deste país. Quase que me apetecia dizer que a miséria é o substrato da sobrevivência de muitos, que passam pela vida rindo e gozando como uns brutos. A miséria é uma constante deste país. 
É evidente que houve sempre miséria em Portugal. Somos um país verdadeiramente miserável, só que a miséria se veste de acordo com a época. A nossa história está cheia de períodos de fome, de lágrimas e de desespero, demasiados. Hoje, a miséria pode existir ao lado de um computador, de uma casa com água e luz, do uso de sapatos e de roupa ou de uma ida a uma manifestação cultural ou desportiva, mas não é muito diferente do período do antes ou do pós guerra, ou do período após as invasões francesas, ou seja, de qualquer período em que a fome, a falta de solidariedade e a exploração do próximo atingiu patamares de obscenidade e de ofensa da dignidade humana. Neste momento, doloroso, muito crítico, em que as pessoas sofrem e são humilhadas como antanho, é preciso rescrever a forma como são encarados certos fenómenos sociais, culturais ou desportivos. Mas o que vejo ofende, ofende muitos de nós, melhor fora que passassem despercebidos, que não fossem publicitados até à exaustão, e que os responsáveis envidassem os esforços para a solução dos portugueses necessitados. Solução que tarda e que entristece quem no dia-a-dia convive e ouve lamentos e muito mais sofrimentos. País pobre, país que sobrevive à custa da miséria de muitos. Estranha forma de existir. O melhor é mesmo fugir...
(2014.06.02)

Santa Luzia

Hoje sentei-me noutro lugar. Há muito que a conheço. Há muito que me persegue. Há muito que a desejo. 
Lembro-me bem daquele maldito dia. Cheguei a casa e vi o que tinha acontecido e vi o que iria acontecer. Uma noite horrível. Fiquei sem luz na alma naquele dia e em muitos outros que se seguiram. Acompanhei-a e fui o seu anjo da guarda naquela noite. Dei-lhe a mão e não dormi. Aquele estranho quarto, transformado em enfermaria, tinha agora uma criança pequenina entre adultos e velhos. Eu fiquei ali no silêncio do sofrimento e no roncar de alguns. Sentado, não adormeci e nem sei o que senti. Lembro-me de uma revista que tinha ao perto de mim, de uma nave que começava a voar no espaço sem fim. Um dia deixaria de pertencer ao nosso sistema solar e iria, enfim, ver o que estaria para além do fim. Seriam precisos muitos anos. Eu estava ali, preso à terra e a uma dor sem fim. Apeteceu-me ir com aquela nave e fugir para longe, de tudo e de todos. A dor era insuportável. Eu não compreendia e não compreendo a dor que um pai pode sentir por um filho. Ali estava, suspenso no tempo e a imaginar até quando a dor me perseguiria. Os olhos, o bebedouro da alma estavam ali, fechados e com medo de saber o seu fim. 
Fiquei dependente da Santa Luzia. Não sabia quem era, onde estava e o que poderia fazer por mim. Apaixonei-me nessa noite por ela. E um dia, numa das mais longas noites do ano, com a alma atormentada, vi entrar naquele espaço um cortejo de meninas vestidas de branco, com velas a cantar lindas canções, precisamente na mesma época em que tinha ocorrido uma das tragédias da minha vida. Confortou-me aquela alegria e toda a luz que entretanto inundava o espaço e a alma negra da vida. Via-a depois no seu túmulo, atraído pela luz forte, quente e transparente quando viajava no canal e lá me disseram, está ali a Santa Luzia. Vejo-a onde os outros não a veem e vê-me sempre quando escurece o mundo dentro de mim.
(2014.06.03)

Cansaço social

Estou cansado. Cansaço físico, cansaço mental e cansaço social atacam-me por todos os lados. Não consigo fugir. Aguento a parte física e a mental, dormitando, encostando-me a uma obra de arte ou a uma leitura diamantina. Não consigo encontrar a solução para o cansaço social. Vejo tantos acontecimentos e não vejo outros. Estes incomodam-me porque têm uma voz e sentimentos próprios, cheios de dores, provenientes de almas atormentadas e arrebatadas pela tristeza e até pela morte. Velhos a viverem sozinhos e a sofrerem as consequências do ostracismo nacional. Novos sem futuro à espera de poderem fugir para outras paragens. Pais e mães sem meios para sustentar os filhos. Gente com tragédias no corpo sem saberem quando e como lhes vai ser atenuado a sua ansiedade e dor. Gente triste a quem lhes foi roubada a vontade de viver. Sente-se no ar e ouve-se mesmo sem falar. Causa um estranho cansaço a que se associa um outro, o cansaço de imagens, de sons e de gente que não convence ninguém. Ofendem, mentem e proclamam valores sem interesse, lançando pó de ouro falso aos olhos de muita gente. Gente que quer acreditar, gente que não pode fingir e nem fugir, gente que espera poder um dia sorrir. Estou cansado, cada vez mais. Não consigo fugir dormindo ou encostando-me à sombra de um livro ou roubando a essência escondida dentro de uma obra de arte. 
(2014.06.04)

Mar escondido

Dois belos olhos cheios de um mar doce, calmo e sedutor a convidar que lhe beijem as suas inúmeras gotas cheias de vida, azuis como o céu da sua infância, desejosas de voltarem a voar ao redor da terra embrulhando-a num abraço de amor e de saudade. Olhos azuis, belos, apaixonados e inquiridores. Olhos que veem a vida, olhos de quem conhece o céu e o mar, olhos tristes e desejosos de ensinar os que não o conseguem compreender, olhos a bailar ao redor de um doce beicinho...
(2014.06.04)

Anjo

Olho para o quadro e a imagem não deixa qualquer dúvida, se houvesse anjos teriam de ter aquele olhar, aquela expressão pura e tranquilizadora. Se me tivessem dito em pequeno que os anjos tinham estas feições eu acreditava.
Não me lembro quando comecei a saber o que eram anjos. Dominava poucas palavras e conceitos, sabia o que era ter fome, sono e medo, mas não compreendia o que eram os anjos. Apontavam lá para cima, a sua casa, mas eu só via o azul do céu ou, então, nuvens brancas, escuras, brincalhonas, solitárias, rebeldes, e algumas deveriam ser mesmo más, porque assustavam-me. Eu perguntava se as nuvens eram os anjos. Não! Os anjos estão por cima e não se veem. Então se não se veem como é que sabes que existem? O silêncio das palavras era rapidamente cortado e a ladainha do costume vinha ao de cima. Os anjos têm asas. Ai têm! Então são pássaros. Não, não são pássaros, são seres criados por Deus para O servir e para nos guardar. Ah! Então são criados. Não, não são criados, são seres únicos e cada um de nós tem o seu anjo da guarda. Eu também tenho? Claro que tens. Mas eu não o vejo, nem o ouço. Pois não, não podes vê-lo e nem ouvi-lo. Mas ele vê-te e ouve tudo o que dizes. Tudo?! Sim. E quando faço asneiras também? Sim, sim, sobretudo quando fazes asneiras. E depois? O que é que ele vai fazer? Vai dizer ao Jesus. Para quê? Para saber as asneiras que fizeste. E depois? Depois o quê? Depois o que é que ele vai fazer. Ele quem? O Jesus. Sei lá, às tantas é capaz de não te dar nada no Natal. Não?! Então o anjo da guarda é um queixinhas. Assim não gosto dele. Mas ele é teu amigo e protege-te. Pois, mas assim não quero. Quando caio e faço uma ferida no joelho ele não me ajuda. Caio na mesma. De facto, os meus joelhos eram uma desgraça mais do que evidente e punham em causa a minha crença nos anjos da guarda. A conversa terminou naquele ponto. Já tinha reparado que era sempre assim quando o incómodo a atingia. Depois arranjava desculpas para mudar de conversa. O alívio era evidente ao mandar-me ir brincar para a rua. Ao sair ainda perguntei, o anjo da guarda também vai comigo, mãe? Vai-te embora meu malandro. Cala-te e vai brincar um pouco. Eu ia, mas depois acabava rapidamente por aperceber que o meu anjo da guarda não era muito dado a brincadeiras de crianças. Bastava esmurrar a perna e os joelhos para confirmar.
Ao ver este desenho fiquei com pena de não o ter visto na altura. Se me dissessem que era a cara de um anjo eu tinha mesmo acreditado.
Ainda vou a tempo...
(2014.06.05)

Chuva

Incomoda-me a chuva, faz-me sentir triste. Incomodam-me os meus pensamentos, fazem-me sentir triste. Incomodam-me os comentários e atitudes de muitos que se mostram, que são mostrados e que andam por aí a martirizar os ouvidos, fazem-me sentir triste. Incomoda-me a falta de carinho, de solidariedade e de amor, faz-me sentir triste. Incomoda-me o advir sem esperança, faz-me sentir triste.
O mundo é mesmo triste. 
Preciso de um espaço onde as lembranças termais possam aliviar-me a tristeza. Eu sei onde está esse espaço. O que eu queria agora era correr para ouvir o que lá está perdido num silêncio aflitivo. Um espaço desejoso de viver e de conversar comigo, um local amigo onde consigo viver em paz comigo.
(2014.06.06)

Beijo noturno

Tem uma história. Tudo tem uma história. Eu gosto de histórias. Gosto de as ouvir. Gosto de as ler. Gosto de as contar. Adoro criar histórias e escrevê-las, seja quando nascem ou longo tempo depois. O tempo é misterioso. Limpa, recria, pinta, suaviza e perfuma qualquer história. É uma questão de tempo. Olho para o quadro e recordo a noite. Não estava frio, não chovia, o silêncio vivia na noite e o candeeiro alumiava a vida. Um jato de luz amarela, envelhecida pelo tempo, escorria felicidade, lançando-a sobre dois seres que se aproximaram do candeeiro. Não se aproveitaram da escuridão. Fizeram o que desejavam sob a luz do candeeiro, imaginando o sol da noite a aquecer-lhes os lábios e o coração.
(2014.06.06)

Janela

Há momentos que nos surpreendem mais do que uma vez. A mesma imagem, o mesmo som, a mesma palavra, o mesmo sorriso, o mesmo céu e a mesma esperança são capazes de nos transportar para qualquer lugar e tempo. Surpreende o efeito produzido, um efeito não esperado, mas também não esquecido. Quando menos se espera somos levados a procurar o que desejamos, mesmo sem saber, como se uma mão invisível nos tocasse ligeiramente no coração  indicando o caminho para o local da oração. O tempo sabe conduzir-nos até a esperanças e amores desconhecidos.
Eu deixo-me ir na brisa do tempo. Sabe bem, gosto do seu sabor a fresco e da limpidez com que me brinda seja qual for a natureza do dia. Não compreendi o que fazia naquele sítio e muito menos quando cortei para aquele local. Uma recordação velha, de meio século, surgiu-me como se fosse uma aparição divina. Os deuses queriam que visse algo. O quê? Pensei. A janela. Só pode. Sim, vou vê-la. Quero mesmo vê-la. Deixei-me ir e encontrei-a sem dificuldade, como se por ali andasse todos os dias. Assustei-me com a ruína. A paixão antiga surgiu com a mesma intensidade. Estava apenas adormecida. O sol, entretanto, premiava a minha vinda, oferecendo belos e estranhos raios que transportavam lágrimas, saudades e vida. Olhei para a janela e vi o mundo de outrora. Olhei para a janela e vi o mesmo céu. O céu que via para fora. Estranho, pensei, estamos em tempos diferentes, eu a olhar o céu para dentro e ela a olhar para fora. Senti estar num espelho. Não sei em que lado é que estava. Não importa se era o real ou o virtual. O que sei é que ouvi lágrimas de tristeza a escorrer pelas paredes e o bater de um coração ansioso a marcar  compassivamente o tempo eterno. A janela era a mesma. O meu pensamento também. Foi então que um ser estranho, belo e triste, que viajava na suave nuvem, apareceu à janela. Vi, ouvi e senti uma alma a querer-me bem, vinda de muito longe, de um tempo em que não era ninguém... 
(2014.06.07)

Interior

Viajar pelo interior do país é como viajar pelo interior da alma de qualquer um. No interior ou dentro de uma alma escondem-se riquezas vastas, sem fim, esquecidas, belas, tristes, amorosas e desejosas de viver. As almas também morrem, e por ando sente-se a presença da ceifeira esfomeada de vidas e de almas perdidas. A vida apaga-se tristemente. A alegria deixou de arrefecer o sol. As recordações semeadas ao longo do tempo choram. Algumas querem gritar mas não têm voz. Sente-se no ar o silêncio da dor e o terror do esquecimento. As pedras talhadas ainda estão quentes de um passado rico, turbulento e criativo e querem falar com as suas irmãs rudes e belas que dormem pelos montes e serranias. Não falam umas com as outras. Deixaram de falar. Para isso é preciso vida humana, os únicos seres que sabem traduzir sentimentos, amores e tragédias. A desertificação, o desinteresse e a violação das pedras e monumentos perturba e faz doer quem gosta de ver o passado embrulhado num futuro desejado mas que se tornou num presente desesperado. 
Até as almas penadas sentem-se defraudadas e fogem à procura de poderem ser amadas.
(2014.06.08)

Teste de Turing

Li que um computador conseguiu passar no teste de Turing, ao fazer passar-se por um adolescente de treze anos. Turing, um notável cientista que sempre acreditou na inteligência artificial, colocou a hipótese de um computador poder imitar um ser humano sem que este soubesse se era outro ser humano ou uma máquina. Não importa que o computador esteja certo ou não, o que interessa é que consiga imitar um de nós. Hoje, foi descrito que uma máquina conseguiu imitar um jovem de treze anos, uma espécie de limite. Agora, dizem os entendidos, será que as máquinas irão conseguir enganar os seres humanos?  Ainda por cima as máquinas não têm problemas de consciência, logo, serão úteis para a cibervigarice e o cibercrime. Há quem diga que não, que isso não vai acontecer. Não sei, só sei que vai ser interessante um dia destes quando um desses filhos da puta eletrónico começar a telefonar lá para casa, à hora do jantar, num português ultra perfeito, a querer enganar-me de todas as formas e feitios. Vai ser um demónio, porque mesmo que o mande à outra banda ele não vai desistir e nem se incomodar com os meus argumentos ou impropérios. Estou tramado. Começo agora a pensar quais as estratégias que tenho de gizar para me precaver contra tamanha "inteligência artificial". Não vai ser nada fácil, o mais certo é eu não passar num futuro teste de Turing contra computadores...
(2014.06.09)

Cruz

Andei por sítios desconhecidos e perdidos no tempo. Esbarrei com pedras. Pedras que falavam, cantavam, choravam e tremiam de medo. A vaidade de algumas, desenhadas com uma beleza ímpar, conseguiram distrair-me e convidaram-me para debates mudos e estranhos. Os templos, uns mais e outros menos imponentes, ostentavam marcas de devoção e de cristã invenção. Ao lado, nas ruas estreitas, apareciam velhas casas a denunciar momentos tristes. Embora passassem à categoria de olvidos, vi que choravam de dor. Comecei a sentir o desprezo vivido naqueles tempos e a expulsão de pessoas de lugares considerados como sendo um paraíso. Nas ombreiras de velhas portas vi cruzes esculpidas nas pedras. Toquei-lhes e senti que queimavam, como se de repente o fogo do inferno fugisse através de um símbolo que para uns era de libertação e para outros de condenação. Estranho símbolo. Uns ajoelham-se, outros transportam-no às costas, enquanto outros foram obrigados a morrer e a fugir de quem o queria impor, não como símbolo do amor mas de um terrível poder. Naquelas bandas, naquelas comunidades ainda se consegue respirar tragédias de outrora. É simples saber como as coisas aconteceram. Basta parar numa dessas casas e colocar a mão na cruz escavada na pedra. A dor em brasa atinge a alma e palavras estranhas ecoam atravessando as longínquas montanhas. As montanhas são as mesmas, o céu é o mesmo e as cores do final do dia são as mesmas. Eu vejo, ouço, sinto e sofro com o poder de quem usou a cruz para matar, humilhar e aprisionar. 
Um passado que vive no presente. Um passado sem perdão. Olho para o horizonte e não escondo a minha emoção.
(2014.06.09)


Ironia 

A ironia é uma das mais importantes armas para denunciar situações que ofendem, insultam, humilham e desprezam quem deveriam ser respeitados e dignificados, os seres humanos. Mas quando é utilizada para desprezar e humilhar um ser humano, vítima de condições que não consegue controlar e pelas quais não é minimamente responsável, então, a ironia passa de uma arma para se transformar na imagem viva da falta de caráter. 
É o que vi por aí hoje. Falta de caráter aos potes. Quando um povo é constituído por um número elevado de pessoas com falta de caráter não pode esperar grande coisa e muito menos aquilo que deseja. 
Pobre povo que não aprende. Povo que ofende nunca terá ninguém que o defende...
(2014.06.10)


São Francisco de Assis

A manhã já ia a meio e o carro apontava para uma direção previamente definida. Ao chegar ao cruzamento olhei para o lado esquerdo e vi o jardim com bancas espalhadas. Pensei logo, uma feira de velharias. O carro rosnou e teve que dar a volta até encontrar um lugar para estacionar. Ao fim de duas tentativas consegui estacionar mesmo junto à avenida por onde se espalhavam dezenas e dezenas de feirantes de velharias, antiguidades e de objetos colecionáveis. Com alguma dificuldade consegui, sem esmurrar, colocar o carro junto aos contentores do lixo. 
Andei, vi, auscultei, aprecei e comentei, fiz tudo o que devia fazer.
Muita gente deve utilizar estes encontros para se desfazerem do lixo que devem ter em casa, mas a par destes é possível ver coisas interessantes. Algumas atraíram-me. Fiz o que tenho de fazer nestas circunstâncias, avanço, dou uma ou duas voltas e regresso ao local para perguntar o preço. Três objetos chamaram-me a atenção, um pequeno e sedutor cavalo de madeira com um estranho cavaleiro medieval, esculpido à "la Greco", ostentando um escudo a ressalvar as quinas nacionais em azul. Antigo? Sim, muito. Uma obra preciosa. O feirante lançou-me com o preço, mas eu não comentei. Calei-me. Ainda fez uma tentativa, dizendo que podia fazer uma atenção para que ficasse cliente. A minha alma sorriu e eu agradeci-lhe a atenção. A outra imagem, ou melhor, as outras duas eram biscuit, italiano, disseram-me os vendedores, e assinadas, realçaram. Sorri. Uma delas representava deusas gregas, fabulosas, assim como o preço. Declinei. A outra representava uma "paternidade". Um homem de barbas apertava contra o peito uma criança, o filho. Uma representação muito pouco habitual. Bela, muito bela e cheia de ternura, apesar de necessitar de algum restauro. O preço inicial incomodou-me apesar da imediata redução feita pelo vendedor. Declinei. A boa educação exige que não se regateie. É pena não podermos regatear. Se esta prática ancestral se mantivesse às tantas construiríamos belas conversas e até seríamos capazes de fazer bons negócios.
Andei, vi peças com valor e muitas mais sem interesse. Olhei que todas aquelas peças foram adquiridas e passadas de mão em mão em troca de dinheiro. Muitas almas as possuíram, muitas a desejaram e muitas deliciaram-se enquanto foram donas e senhoras dos objetos. A par dos milhares de peças distribuídas pelo espaço da avenida e do jardim, muitas mais lembranças e sentimentos de almas as acompanhavam com silenciosa nostalgia. Eu lia nas peças esses pensamentos e sorria. Também elas queriam que ficasse com elas. Não sei para quê. Desisti. Ao entrar para o carro vi um São Francisco de Assis pouco habitual. Uma representação diferente. O vendedor, magro, com um cigarro na mão, explicou-me a sua origem. Uma senhora deitou uma caixa de cartão com várias peças num contentor. Ele viu e ficou com ele. Dentro estava aquele santo. A senhora disse que o tinha adquirido em 1961. Não tinha grande valor, nada de especial, exceto a estranha e delicada representação. Quanto quer? Um euro e meio. Sorri. Está bem, fico com ele. Penso que deve ter feito uma viagem feliz e, com toda a certeza, vai ficar contente quando vir onde vai parar...
(2014.06.10)

Ideias

As ideias nascem e crescem na cabeça, umas vezes não passam de ervas daninhas, outras surgem com o fulgor de rosas aveludadas. Há quem se atormente com o seu deserto e há quem se entretenha a inundar com violência tudo o que de bom possa produzir na intimidade da sua leira cerebral. As ideias precisam de viver e de se alimentar. Saem através dos dedos ou da voz à procura de colonizar outros territórios, amando-os, oferecendo-se sob a forma de rosas, ou ferindo-os, como se fossem punhais de guerra e da traição. Bailam, saltam, beijam, provocam, ferem, tranquilizam e matam. São selvagens nos seus sentimentos e humanas nos seus propósitos. Vejo-as como um enxame de insetos loucos e desorientados à procura de qualquer coisa, que eu não sei o quê. Resta-me esperar e desfrutar belas rosas perfuradas. Não as encontro, nem nas palavras, nem nos sons, nem nas imagens, apenas as cheiro na minha imaginação... 
(2014.06.12)

A qualidade não tem preço 

Na véspera do dia de Santo António desloquei-me até ao Porto para arguir uma dissertação de doutoramento. O candidato, médico brasileiro com altas responsabilidades no seu país, e com uma idade em que habitualmente já não se fazem doutoramentos, apresentou um trabalho sobre bioética. Não me deu muito trabalho a arguir, embora tivesse despendido muito tempo a ler e a tomar apontamentos que me permitissem arranjar matéria para um bom debate. O meu colega analisou os processos de "erros" e má prática médica pediátrica no seu estado, São Paulo, caracterizando e analisando com muito interesse diferentes variáveis. Os mais velhos têm mais processos, os que se formaram em instituições privadas também, assim como os que trabalham no setor público para não falar dos que estão no interior do estado e dos pediatras homens. O assunto deu azo a algumas perguntas, comentários e reflexões. 
Não sabia que havia tantas escolas médicas no Brasil, mais de 190 e mais de 370.000 clínicos. Uma fartura que não chega para satisfazer as necessidades do país continental e que levou as autoridades federais a importar médicos de Cuba. Milhares, largos milhares. O meu colega levantou muitas dúvidas sobre a qualidade técnica e científica destes "profissionais", evitando chamar-lhes médicos, que estão neste momento fora da alçada dos Conselhos Médicos Estaduais, o equivalente à nossa Ordem dos Médicos. Por causa desta singularidade  questionou o que é que irá acontecer em caso de erro e de negligência. Obviamente que o Governo Federal vende facilmente o produto junto das populações, mas em termos práticos a qualidade dos cubanos é muito preocupante. Este foi um de muitos aspetos focados nas provas e que me fez recordar o recrutamento que o Governo Português andou a fazer naquela ilha. Claro que quarenta médicos cubanos são mais fáceis de controlar do que oito mil no Brasil. De qualquer modo questiono se há paralelismo e exigência em matéria de conhecimentos entre os médicos formados em Portugal e em Cuba. Ao ouvir um colega que andou ainda há pouco por aquelas bandas, em missão oficial, fiquei com a estranha sensação de que não há, logo, é preciso reconsiderar certas medidas e "importações".
A qualidade não tem preço.
(2014.06.12)

Futebol

As notícias, reportagens, comentários, concursos, publicidade, discursos e outras coisas mais a propósito da "Copa" raiam a obscenidade e ultrapassam a linha do bom senso. Chego a sentir-me enjoado e mesmo enojado. É horrível que se publicite e se dê tanta importância a este evento, até o Papa discursou sobre o mesmo, querendo marcar a sua presença, apelando ao habitual, fraternidade e outras coisas parecidas que devem ser preservadas e defendidas nas catedrais da maior religião planetária onde se pratica o futebol.
As manifestações futebolísticas à escala internacional (países) encerram em si algo de violento. A identidade nacional tem de ser defendida na sua honra e dignidade o que exige lutar contra o adversário. Não são propriamente manifestações de guerra, embora às vezes pareçam.
Podemos considerar o futebol como o equivalente a torneios modernos, a lutas entre "inimigos", em que o que está em jogo é derrotar o adversário. Se for necessário "driblar" as regras não há problema, porque o que interessa é ganhar, seja com a "mão de Deus" ou com a ajuda da trafulhice do diabo. A satisfação é visível nos adeptos que assim veem o seu orgulho e a autoestima pessoal a crescerem de forma desmesurada. A agressividade e a ansiedade são substituídas quando a sua equipa vence ou derrota a do adversário. 
Há um certo grau de violência coletiva subjacente a este fenómeno. No final, mesmo que as regras não sejam respeitadas, e a "ética" desportiva violada, há quem se sinta temporariamente satisfeito, enquanto outros desesperam e choram.
Em termos objetivos não vale a pena dar muita importância ao futebol. Não merece. É o caso da "Copa".
(2014.06.12)

Gente silenciosa

Ver pessoas é a forma que tenho de respirar na sociedade. Algumas, e são muitas felizmente, constituem fonte de prazer, alimentam a minha alma, e ensinam-me a ver o mundo de uma forma diferente. Tento partilhar as suas ideias, vontades, medos, desejos, dores e amores. Faço sem dar conta e acabo por inspirar profundamente tamanhos sentimentos, medos e ilusões. Aprendo a respeitá-las. Gente silenciosa, gente que vive, gente que sofre. Outras, por sua vez, incomodam-me, não porque não tenham ideias, vontades, medos, desejos, dores e amores. Têm-nas. Só que esqueceram o que foram ou fizeram, e agem agora como sendo os mais puros e puras de uma vida sem sentido. 
Prefiro ouvir o silêncio de gente silenciada pela vida. Conseguem transmitir o verdadeiro sentido da vida.
(2014.06.13)

Reconstrução

Jovem e simpática. Um sorriso rasgado a destilar tranquilidade e alegria. Durante a conversa fiquei a saber que tinha tido um cancro da mama há alguns anos. Que idade tinha? Trinta. Agora ando a fazer a reconstrução da mama. Vi a mama em reconstrução quando a auscultei. Saiu com alegria, fé e esperança na nova vida. Deu-me uma lição de vida. Ao sair sorriu, eu também.
(2014.06.13)

Estátua de dor

Mulher simples, magra, pele tisnada pelo sol, educada e respeitadora das convenções, revelava uma face jovem pendurada numa alma envelhecida. Um contraste surpreendente que me despertou a atenção. Ia respondendo às perguntas do exame com cautela e alguma rigidez. Ao chegar ao ponto quantas gravidezes é que teve, respondeu, cinco. Logo a seguir quis corrigir a sua informação. Cinco gravidezes mas só tenho quatro filhos. Entendi que deveria ter tido uma insuficiência no decurso de uma delas, mas não. Sem que tivesse tempo para fazer qualquer pergunta adiantou, morreu-me uma filha com seis anos. Senti um baque e vi que os seus olhos ficaram com um brilho gélido a revelar a dor da alma, como se fosse uma cascata de água subitamente congelada. Não libertou uma lágrima e o corpo retesou-se transformando-se numa estátua viva incapaz de se mover. Entendi que deveria fazer qualquer coisa, quebrar aquele constrangimento, e perguntei-lhe o nome da menina. A partir daqui passei para os outros perguntando-lhe os nomes, as idades e o que faziam, sobretudo os mais velhos, dando-lhe a possibilidade de mostrar quais eram as suas características e formas de ser. Começou a sorrir, os olhos agora brilhavam de outra forma, quentes e felizes, e o corpo soltou-se deixando de estar aprisionado à força da recordação que lhe atormenta a alma. 
Não quis perguntar nada sobre a menina. Mesmo assim acabou por dizer que morreu de um cancro ósseo que tinha começado aos dois anos. Nesse momento verifiquei que ia retornar aquele estado de estátua de dor, mas consegui desviar-lhe a atenção para a mais nova e a sua relação com a irmã mais velha que tem dezoito anos. A mais velha deve tratar a pequenina como se fosse a mãe. Perguntei-lhe. Foi o suficiente para contar que com dois anos de idade pedia ajuda à mais velha sempre que lhe ralhava. Riu-se deste episódio e de outros como o caso do rapaz que já se achava no direito de proteger as manas mais velhas. Eu é que fiquei incomodado. Não consigo aceitar tamanho sofrimento. Apesar de conhecer muito sobre as doenças e os seus efeitos, não posso deixar de manifestar o incómodo que estas situações me provocam. Nestas alturas vejo que somos meros acidentes de percurso sem nenhuma finalidade e sem visualizar o tal toque divino com o qual querem explicar e justificar o que não é justificável, a nossa existência.
(2014.06.13)

Ouvi

O sol quente e duro afasta a gente da luz do dia. O sol da vida escarnece o escuro da morte sofrida. 
Na sombra do templo vive o lado sombrio da vida. 
Silêncio, lembranças, dor e a paz conseguida à custa do sofrimento da vida.
A voz da dor quebra os diálogos dos santos, mas não acorda deus dos seus sonhos.
Ouço. Não questiono os motivos. Ouço. Sei ouvir. Ouço o desfiar do sofrimento e das peregrinações ao redor da dor.
Ouço. 
Ouvi. Ouvi muito baixinho numa doçura capaz de invejar qualquer deus, fui muito feliz com ele, fui muito feliz com ele, numa linguagem nunca ouvida, uma voz diferente, a voz de uma alma a quem deus foi indiferente...
(2014.06.14)

Santo António

Estamos no período das festas populares. Ainda vamos observando algumas iniciativas próprias de uma época em que a terra espirra de vida e de frutos que alimentam o corpo dos homens e das mulheres. É o momento de agradecer a fertilidade aos deuses. O mistério da vida escondido na terra só podia ser explicado pela intervenção divina. É altura de agradecer e alimentar a alma com sons e copos de alegria. As festas estão aí, votadas a santos que nunca tiveram qualquer papel neste fenómeno. Não faz mal, sempre é um pretexto para eles se divertirem. Enquanto se divertem esquecem as amarguras da sua santa existência no panteão fechado, triste e cheio de mofo. É o momento de saírem dos altares, e à boleia dos mortais dançam, cantam e amam, não à maneira dos humanos, coisa que lhes deve ser vedado, mas sempre veem e matam saudades do que nunca tiveram ou não disseram. Agora, aqui, ao perto de mim, ouço e vejo da minha varanda movimentos e alegria sem fim. Uma espécie de paganal em que o convidado de honra é um santo que não esconde ter sido safado e divertido. Espero que se mantenha sempre assim.
(2014.06.14)

"Útero de substituição"

Acabo de ler um artigo em que a cronista contesta a "maternidade de substituição" usando inúmeros argumentos. Tinha que os usar, porque só assim poderia escrever e dizer o que pensa. Os seus argumentos não colhem em muitas das vertentes. Algumas afirmações não me chocaram nem me indignaram, apenas não as aceito, porque também tenho a minha opinião e visão do mundo e do problema.
Concordo com o "útero de substituição" em casos específicos e desde que sejam respeitadas "normas de segurança" de forma a evitar aquilo que o homem tende a fazer sempre que fica à solta sem rei nem roque. Claro que o homem nasceu da violência e evoluiu à custa desta forma de estar no mundo. A violência manifesta-se hoje em níveis muito diversos dos primevos, mas não deixa de ser violência. Em contrapartida pretende ser um ser tocado pelos deuses, algo de superior, de belo, a raiar o endeusamento com todas as características que o divino tem ou deveria ter caso exista. Nunca acreditei, nem consigo acreditar nesse "toque" superior, que é mais poético do que real. Mas como gosto de poesia até o posso usar, fora do contexto formal e oficial. 
As mulheres que não têm filhos por impossibilidade orgânica, falta ou lesão do útero, e que os querem ter, podem, hoje em dia, graças às maravilhas da técnica e da ciência viver o sonho de uma maternidade impossível por erro, omissão ou "capricho" da natureza. Estando o homem entregue ao seu destino, isolado nesta parte do universo, admitindo que haja outras vidas algures ou em nenhures, tem de resolver os problemas. Dotado de livre arbítrio faz o que entende e neste caso, ao colocar nas mãos das mulheres o fruto da sua sapiência, estudo e devoção, não faz mais do que o seu dever. Mesmo que isso perturbe, incomode, altere ou reformule algumas formas de pensar quanto à nossa presença neste calhau rochoso, cheio de água que não são mais do que lágrimas acumuladas durante toda a sua existência, temos de usar os frutos da ciência sempre com o máximo de respeito pela moral e ética vigentes. Não me causa nenhum problema ver uma situação desta natureza. Considero um ato de amor que uma terceira pessoa se voluntarie com o seu útero para gerar o filho de outrem. Considero um dos mais belos atos de altruísmo humano já que irá permitir que nasça alguém objeto e fonte de amor para outros. Em todo este contexto, e desde que estejam salvaguardadas as situações de abuso ou de ofensa à moral e à ética, respira-se amor, um amor para o qual contribuíram os seres humanos ao corrigirem erros, omissões ou "caprichos" da natureza. 
Emociono-me tanto com estes casos de sucesso como me indigno com a morte e falta de respeito pelas crianças que muitos lançam ao mundo sem mostrar o mínimo de amor ou mesmo que seja o chamado toque divino. Afinal, este último está ao nosso alcance. Só precisamos de saber usá-lo. 
Aguardo pacientemente que a Assembleia da República se pronuncie sobre este tema.
(2014.06.15)

Que dia!

Nada que me surpreendesse, embora acalentasse uma pequena e remota esperança. Tão remota que andei à sua procura todos estes dias em que a loucura televisiva, em todas as formas de expressão, mostrava o nosso favoritismo e capacidade de virmos a ser campeões do mundo. Cada vez que ouvia e via os comentadores, as notícias, a publicidade, os debates e toda a parafernália ao redor da bola mais se encolhia a minha pobre e escondida esperança. Mesmo assim tentava evitar que se apagasse, mas a loucura era demais. Parecia que a solução dos nossos problemas passaria pela conquista do campeonato do mundo o qual iria recolocar Portugal no pódio dos países mais importantes. 
Enfim, senti que havia qualquer coisa de anormal, e que é normal entre nós, a falta de humildade, a ausência de trabalho coletivo e de um verdadeiro e sentido empenho naquilo que temos de fazer. Somos o que somos, não há volta a dar-lhe. Por vezes temos uns certos laivos de triunfalismo e, até, conseguimos fazer boa figura. Mas é só às vezes, quando a Fortuna está a sonhar connosco. É raro que sonhe connosco. 
Durante este jogo não senti qualquer emoção, nenhuma, confesso. Longe vão os momentos em que me encantei e deixei-me levar pelo entusiasmo. Recordo este mês em 1966 e as emoções sofridas. Recordo a "vingança" sobre os ingleses em 2004 em que fiquei mais do que satisfeito, até delirei naquela noite. Estava paga a injustiça cometida contra Portugal naquele dia de há 38 anos.
São curiosas as reações provocadas pelo futebol. Considero-me quase imune. Hoje não fiquei triste, como é que se pode ficar destroçado quando os jogadores fizeram o que fizeram? Fiquei um pouco indiferente e lembrei-me de outros momentos mais agradáveis e momentaneamente refrescantes. 
O país está pobre, velho, sem fôlego e a minha esperança anda perdida por algures. Chamo-a, procura-a e não a encontro. Nem sei se está ou não ainda acesa.
Portugal é mesmo assim!
(2014.06.17)

Levítico

Gosto de ler o Levítico. Já o recomendei vezes sem conta aos alunos para o lerem. Considero que deve ser o primeiro manual de higiene sexual e alimentar. Claro que não é uma leitura muito recomendada para dias bonitos e com sol, mas naqueles fins de semana cinzentos, chuvosos e horríveis é de uma grande utilidade.
No que respeita aos animais os judeus podem comer os que são “limpos”, devem ter unhas fendidas e ser ruminantes, no caso dos peixes devem possuir barbatanas e escamas e caso sejam aves estão proibidas as aves de rapina. Mas há insetos que podem ser comidos, desde que tenham pernas para saltar! Eu dispenso-os. Quanto aos outros nem pensar, são considerados “imundos”. A contaminação não se limita apenas à ingestão mas também ao seu manuseamento.
Há em toda esta proibição a necessidade de evitar a impureza, uma lei imposta por Deus aos seus “muchachos” preferidos. Obviamente que esta separação, lei, chamem o que quiserem não tem outro objetivo senão criar ou contribuir para uma identidade de grupo em que o sagrado ou o divino está mais do que presente. Vital mesmo, porque é uma imposição de Deus e Deus sabe o que faz!
Recordei-me desta observação por dois motivos, um deles em consequência de um almoço com uma colega judia que veio a Portugal falar da procriação medicamente assistida no seu pais. A senhora, alto quadro do ministério da saúde, apesar de toda a sapiência, mostrou um comportamento alimentar próprio. Desconfiada fez a suas próprias escolhas. Comeu sopa, mas só depois de saber o que é que continha e afirmou que era vegetariana e por isso foi fazer o prato à sua maneira. Sorri e fiquei desconfiado do seu "vegetalismo". Estava mas era à rasca porque não sabia se a carne era de porco. Eu não estive com meias medidas, “rojões à moda do Minho”, pois claro. Servi-lhe água. Não aceitou, disse-me que não bebia líquidos durante a refeição. Raios a partam, pensei. Esta malta é mesmo esquisita.
Quando fez a sua conferência vi que Israel deverá ser o país mais permissivo do mundo em questão de procriação medicamente assistida e aceita com toda a naturalidade as “barrigas de aluguer” em situações muito diferentes das que pretendo ver em Portugal. Auto questionei-me sobre as razões e desconfiei que estaria de acordo com a procura e reforço de uma identidade genética do mesmo estilo que as regras de alimentação seguidas por aquele povo. De facto um “embrião judeu” e a promoção da fertilização in vitro é uma forma de alimentar a identidade de um povo. 
De religião a religião, de alimentação a alimentação e de procriação a procriação, pus-me a pensar como seria o Levítico se fosse escrito nos dias de hoje. As conversas, textos, propaganda, trabalhos científicos e a divulgação dos alimentos que fazem bem ou mal à saúde começam a perturbar-me. Não há dia, não há revista, não há rede social que não comente os efeitos benéficos e maléficos dos mais diversos alimentos e produtos. Toda esta conduta é controlada e divulgada por “profissionais” e devotos de uma nova religião em que os alimentos sagrados passaram a ser substituídos por “alimentos saudáveis”. Sacerdotisas e crentes a darem que nem fartura. Uma patetice coletiva, uma nova forma de identidade que está a ser criada. Os seguidores, na procura da “pureza”, evitam os alimentos “impuros” dos nossos dias. Uma aberração “neo-levitica”. A mim não me convencem. Era o que mais faltava ter olhar para um bom prato e um bom vinho e pensar nas suas virtudes terapêuticas. Claro, que há situações em que não se pode nem se deve usar alguns produtos, mas isso tem de ser feito num contexto clínico próprio e não na fantochada da nova religião ligada à alimentação. 
Tantos anos se passaram depois do Levítico ter sido escrito e as pessoas continuam na mesma!
(2014.06.17)

O polícia

O polícia constituía uma figura simpática que pachorrentamente se deixava escorrer na sombra das ruas do meu bairro. A barriga proeminente metia respeito, não precisava de usar arma, a sua presença transmitia confiança. Passava diariamente várias vezes pela rua. De manhã, à tarde e até à noite. Passava pachorrentamente. Fazia a vigilância e impunha respeito. A autoridade, naqueles tempos, não precisava mais nada. Saía do posto e dava a sua volta. Era o suficiente para garantir a vigilância e a tranquilidade aos residentes. Sempre que fosse necessário fazia o que tinha que fazer, mas fazia pouco ou quase nada, porque o que era preciso era apenas vê-lo. Via-o ao fim da rua. Todos os dias via-o. O mais gordo, o mais magro, o mais preguiçoso e indolente, mas sempre com muita simpatia. Gostava de ver a farda azul a bambolear pelas ruas, sozinha, sem arma, sem nada, a não ser passear a sua autoridade. O passeio da autoridade pelos passeios do meu bairro encantava-me. Transmitia-me confiança e qualquer coisa mais. Sabia que estava a ser protegido, eu e todos os demais. Adorava ver aquele quadro. Uma farda azul magra ou gorda, não interessava o volume ou aspeto, que pachorrentamente passeava pelo meu bairro, de manhã, à tarde e à noite. 
Nunca mais a vi. Nunca mais vi a autoridade pachorrenta a passear-se pelo meu bairro. Tenho saudades. Gostava tanto de voltar a vê-la nos seus passeios higiénicos, simples, confiantes e alegres, a autoridade dos velhos tempos. Velhos? Nem por isso.
Apareçam. São bem-vindos. Se for preciso eu acompanho-vos. Uma boa conversa é sempre uma boa conversa. E eu gosto de conversar...
(2014.06.18)

Escondido

Escondi-me no meu gabinete a fazer pequenas coisas, coisas sem importância mas que têm de ser feitas. O sono invadiu-me, não sei de onde é que ele apareceu e eu fugi para o mundo dos sonhos. Andei por lá durante um bocado, não sei se muito ou pouco porque o tempo é diferente do mundo real. No mundo dos sonhos o tempo parece que para, deve ser o seu ninho onde gera novo tempo para poder viver sem tempo. Soube-me bem. Não me importaria de continuar eternamente a viver num estado de elasticidade de uma consciência sem fim onde a minha pudesse mergulhar e nadar como se fosse um preguiçoso querubim.
- Por favor, assine aqui.
- O quê?
- Assine aqui.
Pensei:
- Que chatice. A porra de uma assinatura fez com que terminasse uma jornada que parecia não ter fim. Enfim. Que hei de fazer? Nada ou, então, continuar a por em ordem coisas sem interesse. Nem sei para quê. Ficou-me no corpo o sabor e o calor de um momento agradável e brilhante onde a minha consciência voava e gozava como se fosse um querubim...
- Por favor, assine aqui.
E assinei, claro.
(2014.06.19)

Rainha-mãe 

Logo de manhã assisti na televisão aos preparativos da proclamação do rei de Espanha, Filipe VI. Um dia histórico para os nossos vizinhos, não obstante a reação dos antimonárquicos que parece não ter tido muita expressão. Se teve não dei conta. 
Não é meu propósito defender ou atacar o sistema monárquico, até porque em Portugal parece haver muitos que defendem este regime. Não sei se é por vantagens económicas, por uma questão filosófica ou resquícios de algum sentido de divindade do qual nasceu e imperou durante séculos e séculos. Pessoalmente, confesso que há uma certa beleza nas cerimónias reais, uma certa identidade, uma forma de colocar a história e o nacionalismo de um povo sob a coroa e sob o cetro. 
Nos dias que correm perderam o poder e passaram a fazer parte de uma espécie de "folclore". Em termos práticos prefiro o sistema republicano, em que qualquer cidadão pode ascender ao lugar cimeiro da representação nacional sem necessidade de se socorrer dos seus genes, essas unidades básicas estruturais da existência em que o divino, a tradição ou qualquer outra coisa não tem lugar, obviamente. A opção pela eleição de um presidente é uma garantia de o podermos substituir de vez em quando escolhendo o melhor ou o menos pior. No tocante ao rei as coisas piam mais fino. Ter de aguentar um patarata durante décadas deverá ser um tormento para qualquer povo. 
Seja como for, os espanhóis têm o seu regime, tem um rei, uma rainha, nobreza a dar que nem um pau e muitas dores de cabeça como convém, e nós temos um presidente com problemas mais do que visíveis e que começam a preocupar quem entende destas coisas. Há muito que vem denotando algumas insuficiências que considero preocupantes. É pena que o povo não seja esclarecido quanto à situação clínica do PR. Considero um imperativo o conhecimento factual do que se passa. O segredo médico é válido mas não deve ser quando toca às pessoas que nos governam e dos quais depende o nosso bem-estar e segurança. Este é um tema que deveria ser discutido. 
Voltando à proclamação do rei de Espanha no dia de hoje, soube que, a meio da tarde, numa festinha da escola da minha neta mais nova, houve uma representação teatral para os avós, “O Príncipe Nabo”. Não pude ir, mas foi a minha mulher. Ao chegar os artistas pregaram-lhe uma partida, transformaram-na na rainha, com manto, coroa e tudo. Ficou mais do que surpreendida, mas não conseguiu fugir à representação. Fez de rainha, e segundo a neta mais velha fez muito bem o papel, sentando-se no trono e levando a sua filha, a princesa Beatriz, a casar-se com o príncipe Nabo. Quando tive conhecimento do acontecimento tive de dar uma valente gargalhada e transformei-me, momentaneamente, num convicto monárquico de histórias para crianças. 
Cheguei a casa e cumprimentei Sua Alteza Real, a Rainha-Mãe. 
Afinal não é muito difícil conciliar o republicanismo com a monarquia...
(2014.06.19)

Viagem

Vou a caminho dentro do comboio, ouvindo o som da manhã e com algum frio. Queria adormecer mas não consigo. Entretenho-me a ler as novidades. Nada de novo, apenas o repisar de conversas e problemas que afligem o pobre povo. Nada de novo, apenas a confusão do momento e a certeza de que não iremos a lado nenhum. Pobre povo.
Leio e não vejo nada de novo, algo que me ajudasse a compreender a natureza humana. Pobre, cada vez pior, alimenta-se das mesmas ilusões e escolhe sempre as mesmas soluções. Tudo finge. O fingimento é a armadura da vida. Tudo passa, é uma questão de tempo. O pior é ir dentro do comboio a ouvir o som da manhã com algum frio. Nunca mais chego ao destino. Nem eu nem os que se julgam donos do mundo. Anda lá tempo, porta-te como deve ser, corre, voa e desaparece, fazias um grande favor a mim e a muitos mais que andam por aí, os que fingem que são gente. Só tu é que não finges, mas lembra-te, um dia, quando deixarmos de existir, também tu morrerás para sempre. Ah, agora compreendo, não queres morrer e por isso vais-te entretendo e gozando com tão pobre gente. Não passas de um ordinário indigente.
(2014.06.20)

Brisa da noite

Cansaço é uma palavra interessante, só de pensar nela fico cansado. Procuro momentos de repouso, no espaldar de um sofá, no olhar de um horizonte de cores sonolentas, no contemplar de um céu ponteado de pequenas botões brilhantes, cintilando sem cansaço desde os primeiros instantes, no olhar vagabundo e nu do pensamento, no tocar de uma pequena peça de arte, ouvindo os sons de amor de um coração feliz e esquecido, no matraquear suave do teclado, vendo as palavras a dançar com sorrisos felizes por obterem a tão desejada liberdade, no desenhar de frases tímidas, doces e esperançosas numa melhor vida, no pintar sedutor de sentimentos, paixões e loucuras de uma vida à procura do seu fim e no libertar de deuses aprisionados, deuses menores mas loucos de amor procurando desesperadamente derreter as asas da dor.
O cansaço desvanece-se no ondular da brisa da noite. Desaparece como por encanto, enquanto ouço o canto de almas livres, frescas e rebeldes. A brisa retorna, pura. A brisa canta. A brisa salpica cores suaves. A brisa chora copiosamente alegria pelos montes. A brisa repousa no meu cansaço do dia e de uma vida. 
Adormece e eu acordo.
(2014.06.21)

Forca

Ontem, no regresso de Lisboa, à boleia de um amigo, depois de termos participado na reunião mensal do conselho nacional, ficamos surpreendidos com a notícia de um jovem artista algarvio que foi acusado de "injuriar" a bandeira nacional por a ter colocado numa forca num terreno baldio, num trabalho de expressão artística do seu curso. O rapaz explicou que não teve intenção de praticar qualquer crime contra um dos símbolos nacionais, mas apenas expressar a sua criatividade através de uma obra de arte artística. Claro que tem esse direito e não é por usar a bandeira nacional numa forca que constitui um motivo de ofensa a quem quer que seja. A mim não me ofende. Mas não sou juiz e estou curioso pelo desenrolar do caso. Espero que o bom-senso impere e que o próprio ministério público mande arquivar rapidamente o processo, por várias razões, o caso vertente é ridículo e caso faça, como é que os juristas dizem?, "jurisprudência"?, então vão ter de se preocupar com muitas queixas sobre o mau uso da bandeira nacional. Algumas servem para publicitar cerveja!, outras oscilam descoradas e esfarrapadas em muitos locais, e até já as vi tão maltratadas em organismos oficiais, para não falar da forma como é usada em vestuários e coisas parecidas.
Este país não anda bem, nada mesmo. Podiam apenas chamar a atenção do jovem para o uso "indevido", se é que possa ser considerado como tal, e as coisas ficariam por aqui. Mas não, a estupidez e o ridículo ondulam nos mais diversos mastros da nacionalidade sem queixas e nem reparos. O meu, que vale o que vale, pouco mais do que nada, aqui fica.
(2014.06.21)

Linha do Dão

Graças à televisão, com os seus programas culturais de sábado à tarde, nomeadamente a "ruralização" da Avenida da Liberdade em Lisboa, que deve ter encantado a capital com um fenomenal piquenique, fiz o que devia, desliguei a televisão e saí de casa à procura de algo mais interessante. Não é difícil encontrar alternativas. Não fui muito longe porque o solstício do verão está com uma azia dos diabos. É típico quando muda de hábitos e de estação. Fui até Tondela. Conheço bem esta cidade e cada vez mais me encanto com a forma como está a ser tratada e se apresenta ao cidadão. Há muito tempo que desejava ver o museu. Ao entrar tive o meu primeiro choque. Que espaço tão agradável! Foi no preciso momento da queda violenta de água. Livrei-me de boa. Pensei. Em seguida percorri um museu equilibrado, elegante, distinto e rico em exposição e sobretudo em cultura da região. Não há dúvida, é possível encontrar pérolas onde se menos espera. No final, como é meu hábito adquiri uma pequena peça para marcar uma futura recordação. A par dessa jarrinha negra também comprei um livro. Escolhi-o porque me dizia muito, trata-se de uma obra sobre a "Linha do Dão". As minhas memórias mais antigas correm ao longo dessa linha a par de muitas histórias. Uma delas tem a ver com o facto de a primeira vez que vi as carruagens e as máquinas a vapor da linha estreita, que na estação ficavam lado a lado com as que circulavam na linha da Beira Alta, serem muito mais pequenas. Como a perceção dos volumes nas crianças é um fenómeno esquisito, devo ter pensado que seria um comboio de brincar. Chorei, bati o pé, porque queria levar o comboio para casa. - Para casa? Como? É tão grande. - Não é nada. É pequenino. Olha para o que está ao lado, é pequenino, não vês? - Está bem. Depois vê-se isso. Sempre a mesma frase para terminar diálogos inconvenientes. Naquela altura a minha nova casa ficava mesmo ao fim da linha. Tanto era assim que mais tarde dizia que a linha começava à minha porta e terminava em Viseu.
Tantas viagens, tantas histórias, tantas recordações. Agora tinha nas mãos um livro que contava a sua história. Fiquei a conhecer melhor, mas muito o que esteve na sua base, os problemas, as intrigas, os interesses e as vantagens "financeiras" inerentes à sua construção. Afinal não eram muito diferentes daquilo que hoje reina por aí, sempre o maldito "carcanhol" para encher os bolsos dos mais espertos. Deliciei-me com o livro que conta os primeiros anos de uma linha que terminou 99 anos depois. Na semana da sua morte anunciada fiz o que deveria fazer. Meti-me na automotora com o meu filho mais novo, louco por comboios, e disse:-lhe: - Vais fazer uma viagem histórica, a última viagem de um comboio. Tinha seis ou sete anos, idade suficiente para gravar certos acontecimentos. Lembro-me bem dessa viagem e de muitas outras.
Parabéns a Tondela pelo seu desenvolvimento e equipamentos culturais, a melhor forma de respeitar os interesses e os direitos dos cidadãos. 
Ganhei a tarde, fiquei mais rico, lembrei-me de coisas passadas, aprendi o que não sabia e evitei a "agressão" televisiva.
(2014.06.21)

Cristo sem braços

Mergulhei sem querer no interior de uma zona que conheço relativamente bem. Lembro-me perfeitamente da minha primeira e grande viagem de camioneta da minha vida. Era pequeno, tão pequeno que provavelmente ninguém dava pela minha conta. Não me recordo se já tinha entrado na escola. Se andava deveria ser há muito pouco tempo, porque ainda não sabia juntar as letras. Só sei que fui numa camioneta velha, barulhenta e ronceira pela estrada de macadame. Recordo as curvas, voltas e mais voltas até chegar à ponte sobre o rio Mondego. Depois começou a subir, espirrando e tossindo por todo o lado. Olhava para trás e via a nuvem de pó que escondia o rio, as escarpas e as árvores. De lado conseguia ver muito bem. Fomos por aí acima, chegámos a Tábua ao fim de muito tempo. A viagem continuou num dia cinzento, frio e chuvoso até chegar a Midões. Uma viagem muito longa para a altura e que me permitiu ver novas regiões. O meu pai, que nunca parava de conversar sempre que encontrava alguém, lá me ia perguntando se tinha sede ou fome. Mesmo que tivesse que diferença é que fazia, não tinha nada à mão para mastigar, exceto uns biscoitos maravilhosos que trazia embrulhados num guardanapo. Mas se os comesse ficava com sede e eu não tolerava a sede. Por isso não os comi, com medo. Ouvia o meu pai, que falava com o motorista, um homens alto, magro e que era nosso vizinho, sobre o João Brandão, um bandido que assaltava e matava as pessoas pendurando algumas na ponte de Tábua. Não gostei nada da conversa e fiquei com medo de que ele andasse por ali. Perguntei-lhe onde é que ele estava. Sossegou-me dizendo que tinha morrido, dois de ter sido desterrado para África. Mesmo assim não fiquei com boa impressão das histórias que contavam a seu propósito. Até chegou a dizer-me que ia até Santa Comba onde encontrava refúgio numas cavernas que devia haver lá. - Onde? Perguntei. - Nas Hortas! - Nas Hortas? No pinhal das Hortas? - Sim, ou então no Montragão. Não sei porque razão é que ele dizia aquilo, às tantas para me impressionar, misturando a realidade com a fantasia, o que era motivo suficiente para que construísse as minhas próprias "histórias", mesmo naquela idade. Ainda hoje recordo muito das minhas construções e confabulações sobre tão misteriosa figura que desde muito novo me atraiu e que me levou mais tarde a documentar-me de outra maneira.
O que é certo é que nunca mais esqueci aquela localidade, o João Brandão e a minha primeira viagem "longa" de camioneta com todas as fantasias inerentes. Depois, mais tarde, passei muitas vezes por aquele sítio, mas nunca me deu para parar e a visitar. Hoje tive essa oportunidade. Fiquei muito admirado com os solares e casas apalaçadas. Curiosamente, a festa do Corpo de Deus, por supressão do feriado, passou para o domingo seguinte. A igreja, de dimensões razoáveis, estava aberta, muita gente espraiava-se pelo adro e também pelo templo, com muitas crianças vestidas à maneira. Deverão ter cumprido mais uma etapa na sua formação religiosa. 
Entrei no templo. Do lado esquerdo, numa capela lateral, estava pendurado um belo Cristo sem braços. Chamou-me a atenção pela beleza que irradiava. O meu primeiro pensamento foi para o mais famoso bandoleiro da Beira Alta. Deve ter estado naquele lugar e olhado para a escultura. Não sei o que terá sentido, e nem sei mesmo se rezou, eu não, não rezei, apenas admirei uma preciosidade e pus-me a imaginar onde estariam os seus braços, escondidos, atrás das costas, ou numa postura imaginária deixando a cada um a construção de um quadro pouco habitual. Fiquei a olhá-lo durante algum tempo, um tempo que mergulhou noutros tempos, no meu e no de outro, combinando tempos diferentes no mesmo tempo.
(2014.06.22)

Escrever

Não sei se vale a pena escrever para que outros possam ler. Quando escrevemos há sempre quem nos leia, embora não saiba o que irá provocar. Há quem aprecie, há quem se recorde, há quem imagine, há quem se tranquilize, há quem admire, há quem se sinta feliz, há quem mude o pensamento, há quem alivie momentaneamente o seu tormento, há quem acenda a vela da esperança, há quem sinta prazer na vida, há quem passe a compreender o que sente, há quem se esqueça do passado, há quem deixe de suspirar lamentos, há quem olhe o brilho antecipado de um futuro adiado, há tanta gente que lê e adormece ao sons das palavras lidas com a mente e há quem não sinta nada.
Há. 
Chega.
(2014.06.24)

Esperar

Espero que o tempo corra um bocadinho, não muito, apenas um bocadinho para não se cansar. Espero que o tempo sorria um bocadinho, não muito, para não me enganar. Espero que o tempo cante um bocadinho, não muito, apenas para me alegrar. Espero que o tempo sonhe um bocadinho, não muito, apenas para que o possa lembrar. Espero que o tempo se lembre de mim, não muito, o suficiente para poder ir até ao jardim. Espero que o tempo saiba o que é amar, muito, mas mesmo muito, para poder sonhar sem tempo, sem dor e sem fim.
(2014.06.24)

Lisboa

Estou em Lisboa. Vim trabalhar, ou melhor, vim para falar e debater assuntos de saúde.
Considero ser muito importante discutir assuntos que afligem e interessam a cada um de nós, tentando contribuir para a melhoria e bem-estar dos cidadãos. São assuntos do meu foro, mas começo a sentir um certo incómodo. O incómodo deve-se a uma impotência relativa na resolução dos problemas, mas também tenho de ser honesto vejo uma população de diferentes profissionais muito interessada nestas matérias. É um bom sinal, as preocupações estão vivas, embora pessoalmente não confie e nem acredite nas múltiplas medidas definidas e bem explanadas em documentos de primeira água. Olho, leio, escuto, penso e o maldito pessimismo assume com raiva o meu ser. A vivência diária, o conhecimento prático das diferentes realidades levam-me a um estado de desconfiança. O problema deve ser meu, começo a ter dificuldade em adaptar o desenvolvimento científico e teórico com a vivência prática do dia-a-dia. No fundo ouço aquela voz que diz que tem de ser feita qualquer coisa, não se pode desistir, é preciso lutar, é preciso investir, é preciso confiar. Sim, é preciso isso tudo, o pior é que não consigo sentir e quando não sentimos o que fazer? Desistir? Não. Apenas mudar. Mudar como? Mudar para quê? Mudar para fazer o quê? Mudar para algo que me faça sentir bem e poder dar algumas migalhas a quem necessitar, se conseguir, claro.
O tempo começa a desenhar uma paisagem diferente, mais colorida, mais quente, mais isolada, mais silenciosa, em que a escrita, a reflexão e a contemplação poderão recriar outra forma de ser enquanto houver tempo para viver.
(2014.06.26)

Duas velhas

Fui de metro até perto do hospital. Durante alguns momentos andei a pé. O sol convidava mas o dia assustava. Não era motivo para isso, assustava porque não me sentia bem. Nada que tivesse comido ou punhalada que tivesse sofrido. Sentia-me cansado e até um pouco farto destas andanças. Os meios grandes provocam-me tristeza e empurram-me para as bandas da indiferença. Com uma pachorra difícil de descrever fui andando. Vi muita gente, a maioria amarelecida e desprovida de alegria. Havia qualquer coisa nos seus olhares. Não sei se era dor, se era falta de amor ou uma solidão fria a correr em veias esgotadas de vida. Duas velhas vinham na minha direção. Uma era mais velha do que a outra. A velha mais nova, obesa, descuidada, deslavada e com um cigarro na mão, dava o seu braço direito à mais velha, cuidada, com aspeto fino, cabelo penteado e ar distante. Trazia na mão esquerda uma mala, pequena, castanha. A mais nova, de ar deslavado e olhar empertigado, depois de ter aspirado uma nuvem de tabaco enegrecido, atestou-lhe com uma voz rouca de vida de fumo: - Já te disse mais do que uma vez. Pega lá na mala como deve ser! O tom. Sim, o tom, imperativo, frio a contrastar com o calor do cigarro, chamou-me a atenção. Uma dureza difícil de descrever. Assustei-me. Não havia chama de amor naquela chamada de atenção. Tentei tatear alguns restos. Mas como encontrá-los naquela voz dura, rouca e implacável? Olhei para a senhora mais velha, penteada e cuidada. Abrandou o passo e tremeu um pouco. Sem dizer nada colocou a mala no braço direito. As feições eram semelhantes. Mãe e filha. Pensei. O olhar da mãe dava sinais de querer começar a perder o sentido e o significado da vida. Cuidada e bem penteada, longe da deslavada da filha, que empunhava um cigarro, não sei se para queimar o passado da vida que levava a seu lado, causou-me muito pena. Ao dobrar as pernas, na atrapalhação da mudança de mão da mala para o braço direito, a filha sacudiu-a com brusquidão, e em silêncio desapareceram na esquina, enquanto eu passei o portão.
(2014.06.26)

Um dia

Os dias querem ser diferentes. Eu também quero e até consigo, basta não pensar e deixar-me ir na vontade dos minutos e das horas silenciosas. Vi e ouvi pessoas, pessoas desconhecidas. Em poucos minutos penetro nas suas almas, a pedido ou por ser um pouco atrevido. Depois sou invadido com novas sensações, estremeço com algumas emoções e perturbo-me com os cantares e contares de muitos corações. Gente desconhecida que, de repente, se sente compelida a mostrar o seu sofrimento e desejos de vida.
Hoje foram muitas as pequenas histórias, desde às mais simples às mais dramáticas, muitas curiosas e outras amorosas. 
Conversas, poemas, declamações, silêncios, inspirações, mudanças, deslumbramentos, conselhos, promessas e vidas com desejo de reaver esperanças perdidas.
Um dia diferente, como são todos os dias, como são todas as pessoas, desconhecidas ou conhecidas. Histórias, dramas, alegrias e vivências que impregnam os dias tornando-os diferentes, porque os dias anseiam por ser diferentes. Sejam. E nós também...
(2014.06.27)

Manhã 

Manhã salobra equipada de nuvens ameaçadoras. Gente amarfanhada de preconceitos, vestida de vontades e transpirando estranhos valores.
Manhã de descanso. Aproveito para afugentar algum sono e espanto.
O café não foi dos melhores. Procurei o prazer e encontrei o amargo, mas sempre vale mais o amargo do café do que o amargo da vida, pelo menos ajuda-me a estar de pé.
As pessoas passam. Entram e saem. Fico sentado a vê-las, a fazer exames às suas almas. Não vejo nada, não quero ver nada, apenas me contento com a água que começa a cair, também o céu grita silenciosamente o seu lamento perante tão fraca, triste e pobre manhã. Eu fico meio confundido com tão estranho momento.
Safa-se o sino da igreja que, indiferente a tudo e a todos, teima em martelar pausadamente o meio do dia de um falso tempo.

(2014.06.28)

São Pedro

Véspera de São Pedro. Um sábado impróprio para festejos, mas convidativo a procurar o santo. São tantos os sítios onde ele está que não me vai ser difícil ir ao seu encontro. Já vi muitos Sãos Pedros até hoje. Belas imagens, belos templos, belos espaços, belos silêncios e, sobretudo, simpáticas alegrias que emanam dos tronos de fantasias. Há qualquer coisa de agradável com este santo padroeiro que foge ao habitual. Não é triste e nem emana dor. Sóbrio na aparência e folgazão na essência. Um santo simpático, que se esconde atrás de longas barbas como se fosse o anúncio a um Pai Natal festivo. Santo? Sim, por ser simpático, folgazão, discreto e amante da discrição. Viva o São Pedro e a tradição.
Agora é que reparo. Ainda não tenho nenhum São Pedro. Pois não! Como é possível? Vou arranjar um na primeira ocasião.
(2014.06.28)

Passeio

Sempre que posso, e mesmo que o tempo não convide, fujo de casa e embrenho-me por caminhos conhecidos à procura de rotas vazias e esquecidas. O que procuro? Não sei, talvez pessoas, aldeias desertas, sonhos esquecidos, histórias antigas, lendas revividas, almas perdidas e encontrar a face oculta do tempo. O tempo brinca comigo às escondidas, vejo-o de relance numa bela e frondosa floresta, a correr ao longo de velhos muros, a espraiar-se em arroios sem perigo, a cantar hinos e louvores ao desconhecido, e a querer que construa histórias com algum sentido. Nomes de terras há muito esquecidas, troços de vias destruídas, sentimentos vividos, emoções ressuscitadas, medos fingidos, esperanças rançosas e a loucura da força de vida empurram-me para o vazio do muito que já conheci e vivi. Vejo silêncios, ouço paisagens desnudadas, afago almas velhas que acenam misteriosamente sem medo do vazio que irão viver, e acalmo a angústia de uma existência sem sentido. 
O que é que encontrei? Muitas coisas. O que é que registei? Muitas coisas. O que me apetece contar? Apenas uma coisa. O grito de uma árvore bela, elegante, a gritar em silêncio pela vida.
(2014.06.28)

Pessoas

Conhecemos muitas pessoas que com a idade vão desaparecendo depois de sofrerem as amarguras da existência através de inúmeros tormentos, deceções, traições e das malditas doenças. Quando a morte surge floresce subitamente a saudade e desaparece a tranquilidade.
Muito do sofrimento de pessoas conhecidas e amigas surge na esquina, na conversa com alguém ou no silêncio da noite entrecortada com alegrias e cantares que se ouvem além. Estranha forma de ver e de sentir a vida. Uns exteriorizam a sua alegria e afugentam sem saber aquilo que os atormenta, enquanto outros deixam-se cair na nostalgia de lembranças que de um momento para outro despertam velhas esperanças. Coisas simples e fúteis transformam-se de repente em pensamentos úteis. É o momento de saborear e recordar que a vida é feita de coisas tão pequenas, tão vulgares, que até custa pensar como é possível não as usar antes de a morte chegar.
(2014.06.28)

Almoço de domingo

Andei à procura de um lugar para repastar. Ultimamente, aos domingos, tenho mudado de poiso com alguma frequência. Durante muito tempo ia a um local onde aliava a comida, nada de especial, com um ambiente muito sugestivo. Era um local de atração de gente do povo, gente que falava e se comportava de um modo diferente, quase que diria estranho, até parecia que vinham diretamente de um passado longínquo. Gostava de os ouvir. Um dia bati com a cara na porta. Estava fechado. Um aviso afixado na porta indicava o encerramento por tempo indeterminado. Não fiquei admirado, porque nas conversas que vinha a ter ultimamente com o dono via perfeitamente o seu desagrado com a situação. Era um emigrante que tinha regressado a Portugal há alguns anos. Voltou à velha condição. Deixou-me descalço, sobretudo em matéria de conversas. Tive que optar por outro, mas nada de especial. Não havia conversas, não havia nada, apenas perda de tempo, o que me desagradou bastante. Tanto andei que acertei. Um local simples, sem conversas, mas com muita qualidade. O dono era um verdadeiro cozinheiro em matéria de grelhados. Passei a frequentá-lo. Um domingo, verifiquei que a empregada não era a mesma. Deduzi que deveria estar em férias. O pior foram os grelhados. Não eram a mesma coisa. Às tantas, pensei, o dono deve estar também de férias. Na semana seguinte aconteceu a mesma coisa, e à terceira, com a qualidade a diminuir de semana para semana, perguntei pelo senhor. - Emigrou! Estava enfim explicado o fenómeno da diminuição da qualidade quer dos grelhados, quer no atendimento. Bom, tenho de colocar ovos a outra galinha. 
Hoje, lembrei-me de ir a um local já conhecido. A forma como ouvi os responsáveis a explicar aos clientes que estavam a entrar assustou-me. - Têm de ter paciência, vai demorar algum tempo, porque em primeiro lugar temos de responder aos pedidos para fora. Olhei para a cara do senhor, a antítese de relações públicas, e saí. Incomodado, andei à procura de um novo local. Nada, estava fechado. Andei e encontrei um velho espaço. Deu para almoçar mas também deu para verificar a falta de qualidade na prestação dos serviços. Uma tristeza. Agora tenho de ver se encontro um local simpático, onde possa criar algumas raízes gastronómicas e, sobretudo, sociais. O país é pobre, cada vez está mais pobre, quer em qualidade e, também, em vontade.
Que saudades dos almoços de domingo naquele espaço tão típico onde a simpatia, as histórias e as conversas enchiam as medidas de um cérebro esfomeado, mais do que o estômago.
(2014.06.29)

Morte de um filho

Desde pequeno que toco na morte. Ensinaram-me a conviver com ela. Nunca me esconderam esse estranho episódio que faz parte da vida. Muitas das minhas primeiras experiências construíram-se em seu redor. Velhos, menos velhos e muitas crianças. Era o tempo em que Deus recrutava anjos! Nunca percebi bem o que levava Deus Todo-Poderoso a fazer anjos desta maneira. Era o que me diziam sempre que me atrevia a fazer certas perguntas. Era pequeno e mal sabia escrever ou juntar as letras, mas fazia perguntas. Perguntas que tinham como resposta olhares surpreendidos e cheios de repreensões. Um dia respondi ao silêncio dos meus porquês. - Sabem? Ainda bem que Deus não quis que eu fosse anjo. Eu também não queria. O silêncio foi mais uma vez ultrapassado por outro tipo de silêncio. - Deixa-te dessas conversas. Eu deixava, mas continuava a sentir e a ouvir as lágrimas das mães a quem Deus roubava os filhos para os transformar em anjos. Levei alguns até ao cemitério, anjos sem nome. Quando colocavam a pequenina caixa no chão sagrado ficava triste e indignado com Deus. Nunca tive medo Dele, nunca. Depois, com a idade, fui vendo a partida de filhos antes dos pais. Muitos. Ficaram gravadas na minha memória as dores e as lágrimas dos pais. Ainda hoje correm na minha alma esses momentos, os mais dolorosos que um ser pode viver. Sempre que acontece um caso destes, todos os dias acontece, lembro-me do que pensava quando Lhe entregava um anjo roubado à mãe. Se Ele existir decerto que não se esqueceu do pensamento de uma criança de calções e joelhos esmurrados. 
Eu não me esqueci, e nem esqueço.
(2014.06.29)

A promessa esquecida

Já tem uma idade razoável. Por isso a vida presenteou-a com a doença. Vive sozinha, é autónoma, e anda, felizmente, bem. 
Depois de alguma conversa, e dos meus parabéns, os quais caem muito bem na sua alma, basta ver a alegria estampada nas feições, chamou-me a atenção para as festas da cidade. 
- Ah, é verdade! Este ano há procissão, não há?
- Há pois.
- Lembro-me que nos dias de procissão costuma estar um calor dos diabos.
- É verdade senhor doutor. A procissão do domingo é muito penosa. Agora já não vou.
- Era o que mais faltava. Não pode! Retorqui.
- Pois não. Sabe, eu sou irmã da Rainha Santa.
- Irmã da Rainha Santa? Explique-me lá isso melhor.
- É verdade. Até tive de levar um documento da junta a atestar a minha religiosidade.
- Não me diga! Foi há muito tempo?
- Foi. Paguei na altura cinco contos de réis. 
- Cinco contos? Era uma quantia apreciável.
- Eu gosto muito da Rainha Santa. Tenho muita fé. Muita. O senhor lembra-se daquelas dores muito fortes que tive na coluna?
- Então não me lembro.
- Pois olhe. Foram tão violentas que eu fiz uma promessa à Rainha Santa.
- Ah! Mas melhorou com a medicação, não melhorou?
- Sim. Disse de forma a poder continuar o seu relato sem dar muita importância à minha terapêutica. Mas sabe uma coisa? Esqueci-me qual foi a promessa.
- Esqueceu-se?
- Sim. Mas sabe como resolvo o problema?
- Não. Diga.
- Quando passo por lá deixo-lhe qualquer coisa, uma vela, um ramo, uma flor. Talvez ela se esqueça. Uma gargalhada contagiosa salpicou-me de uma forma intensa, provocando uma sensação agradável.
- Deixe lá. A esta hora a Rainha Santa já se esqueceu. Mesmo que não tenha esquecido já sabe como tratar as dores, não sabe?
- Ai! Suspirou. Se tiver essas dores eu faço-lhe novamente uma promessa, mas desta vez vou apontá-la para não me esquecer...
(2014.06.30)

Rua!

O exercício de certas funções é considerado por alguns como a forma mais expedita de "eliminar" ou "correr" com certas pessoas do seu local do trabalho. Doentes ou incapacitados por lesões graves, muitas vezes contraídas durante o trabalho, são transformados em agentes pouco produtivos, passando a verdadeiros estorvos, logo, o que interessa é "abatê-los" de forma a não prejudicar a mecânica e a dinâmica da empresa. Fico surpreendido com este tipo de raciocínio, básico, imoral e atentatório dos direitos humanos. A minha missão, digo frequentemente, não é descartar ninguém, mas sim assegurar e defender a dignidade de quem trabalha, a quem a doença ou o sinistro limitaram de forma acentuada. Olho para o ser humano e reparo que no meio da tragédia existe ainda força, vontade e resquícios suficientes para exercer uma atividade profissional que lhe permite viver e realizar-se no contexto mais nobre e superior que é o trabalho. Mas não é essa a visão do outro lado. Explico e mostro a minha indignação justificando os meus pareceres quer de forma científica e sobretudo sob o ponto de vista humanístico. Saio sempre incomodado, mas não derrotado, até porque através da dialética consigo derrotar os meus opositores.
Os casos que já vi são muitos e dão-me não só razão como alento para lutar por aqueles a quem o infortúnio, o azar da vida ou o esquecimento da vontade divina levou à incapacidade, mas mesmo assim continuam a denotar desejo e vontade de trabalhar, e ganhar a vida com honestidade. Sinto-me responsável por eles e faço o que tenho de fazer.
Num dia complicado tive de ver ao fim da tarde um trabalhador. Sofreu há mais de um ano um acidente de trabalho. Ficou limitado, bastante, devido à sua atividade. Se fosse um administrativo ou alguém que passe a vida sentado em frente de um computador estaria apto a cem por cento, mas no seu caso não. Tem de utilizar as pernas, as mãos, o corpo em toda a extensão. Fiz o que devia e limitei as suas atividades. Ouviu e respondeu-me: - Assim o responsável vai dizer que não tem trabalho para mim. - Mas tem de ser, respondi-lhe. O senhor não pode fazer certas atividades como bem sabe. - Sim. Eu sei. As lágrimas assomaram-lhe os olhos. Um homem da minha idade. Simples. Tinha aparentemente mais dez anos do que eu. - Tenho medo. - Medo de quê? - Que me ponham na rua. - Não. Não podem. Eu estou pronto a explicar tudo. - Que tristeza a minha. Tinha de acontecer isto. Tenho em casa uma filha deficiente, nasceu atrasadinha, e um filho paraplégico. Teve um acidente de motorizada. Perguntei-lhe as idades. As mesmas idades dos meus filhos. - Tem mais filhos? - Tenho. Estão fora, no estrangeiro. A conversa não continuou por mais tempo, não porque não tivesse tempo, mas porque não queria continuar a mexer em feridas, a sua e as dos seus.
Cada vez entendo menos certas decisões ou intenções. Cada vez sinto mais revolta e desprezo pelos que querem decidir a vida dos outros. Uma perspetiva não humanística, apenas interesseira e económica.
O mundo cada vez mais se parece a uma gigantesca bosta onde alguns querem mergulhar os mais pobres, fracos e indefesos. 
É demais. É muito injusto.
(2014.07.01)

Deuses

Ler as notícias sobre o Médio Oriente causam-me, de um modo geral, incómodo, frustração e indignação. O ódio étnico, os conflitos permanentes, os atentados, a violência gratuita e a vingança desprezível fazem-se num quotidiano patético e cheio de sofrimento, transformando-se no indicador mais ignóbil da religião. Diferenças marcadas por deuses que deixam muito a desejar, mesquinhos, pobres, incoerentes, vingativos e prometedores de vidas esquisitas num além mais do que duvidoso. 
Afinal que deuses são estes? Deuses que se esqueceram dos seus seguidores? Deuses que se divertem com o circo que criaram? Deuses? Não, meras construções humanas onde a vontade, o desejo, a maldade, a vingança e a mentira humanas atingem proporções cósmicas, divinas, com efeitos terríveis nos fiéis seguidores.
Basta olhar e meditar.
(2014.07.02)

Trovão

O dia escureceu muito rapidamente. O ar deixou de se movimentar. Os cães calaram-se. Os pássaros fugiram, para onde não sei. O peito ficou pesado. Até a gritaria habitual da vizinhança, insultando e ameaçando os filhos, desapareceu o que foi um encanto. Não sei o que se estava a passar, era algo de diferente, adivinhava-se qualquer coisa que eu desconhecia perfeitamente. A tarde continuava a escurecer como se o sol estivesse cansado de viver. O ar não se mexia e estava quente. 
- Sai da janela!
Olhei para trás e fiquei na mesma. Continuava a ver o que é que se iria passar, porque adivinhava qualquer coisa, o quê, não sabia.
- Sai da janela, teimoso! Fecha a janela.
Fingi que não ouvi porque queria ver o que iria acontecer.
A tarde estava tão escura, tão negra, tão silenciosa. Nada se mexia, nada se ouvia.
Subitamente um clarão rasgou o céu e mil sóis iluminaram a tarde escura. Aflito, fechei logo a janela antes que fosse tarde. Quando a fechei surgiu um medonho trovão. A janela ameaçou partir-se e o meu pobre coração acelerou-se ainda mais querendo saltar pela boca. Corri que nem um louco e abracei a minha mãe.
- Doido. Eu não te avisei?
(2014.07.02)

O sol adormeceu

O sol adormeceu na paz de um dia igual a outros, em que a vida, a morte, a alegria, a doença, a paz, a conquista, o desejo e o amor andaram de mãos dadas.
No silêncio da noite ouço o sol a cantarolar e a nascer noutros locais, onde a vida, a alegria, a morte e a saudade são também iguais.
O sol anda sempre, alto ou baixo, sorridente ou ofegante, tranquilo ou demente, mas anda sempre à procura da sua gente. Gosta de nascer, de saborear e dar a provar a frescura e a brisa de uma nova madrugada. Sente-se poderoso quando se senta no alto do seu trono. A nostalgia do final da tarde invade-o quando recorda o que viu, ouviu e sentiu, amores e desejos de amantes, dores e desamores de crentes. Despe-se com suavidade e mergulha nos braços de gente desesperada, ansiosa pela luz e a tranquilidade um novo dia.
(2014.07.02)

Fim

Envelhecer é conhecer. 
Envelhecer é o primeiro passo para morrer. 
Envelhecer é sinónimo de sofrer. 
Abrimos os olhos pela manhã e fica-se na dúvida se iremos ver o por-do-sol. 
Aproveito o nascer de um novo dia, o último para muitos, para recordar os desaparecidos, muitos conhecidos. 
Todos os dias desaparece alguém, a maioria em silêncio, como convém a quem não acredita no além. 
Todos os dias desaparece um amigo, algo que mexe comigo, a ponto de me sentir perdido neste estranho mundo parido por ninguém que tivesse sentido e muito menos vivido. 
Resta o tempo, a pá do coveiro do universo que a qualquer momento sabe como cortar o cordão umbilical a um mundo desconhecido.
Mundo desconhecido que só lhe resta morrer, porque nunca deveria ter existido. 
Mundo sem sentido. 
Sou um ser perdido.
Tomara nunca ter existido.
Deus sem sentido.
(2014.07.03)

Chinesices


Pela primeira vez na vida, consultei três chineses. Tive uma enorme dificuldade em comunicar. O primeiro falava e soletrava sílabas que eu não entendia. Mostrou-me o equivalente ao cartão de cidadão que lhe permite trabalhar em Portugal. Registei a data de nascimento e a morada. Tentei, sem grande sucesso, proceder ao interrogatório. Percebi que estava há onze anos em Portugal e que era cozinheiro. Não pude fazer muito mais do que o exame físico, o que me causou algum desconforto, porque não gosto de fazer "medicina veterinarizada". O senhor era minimamente simpático, sorriso amarelo e abanava a cabeça incessantemente como se fosse atacado de um "sim" meio convulsivo. 
O segundo, mais velho, sorriso branco, também não dominava a língua portuguesa e vive há oito anos no país. Usando da minha neo língua tipo "mandarim", perguntei-lhe, abanando a cabeça e sorrindo: 
- O senhoooolll também é cozinheloooo? Quando fiz a pergunta dei por mim a abanar a cabeça. Que coisa mais esquisita, pensei, ainda vou ficar com dores de pescoço. A conversa continuou no mesmo tom da anterior, embora neste caso já conseguisse abrir uma ou outra frecha na comunicação. 
- O senhooooll fala outlaaa língua?
- Não. Só falo chinês e poltuluguês, mas mal, poltuluguês é muito fíxil!
- Ai é? Bom, pouco ou mais pude fazer, a não ser que vai "no China" de vez em quando onde tem a mulher dois filhos. Nada mau. Quase que suei!
A terceira mulher, cujo nome julgava ser de homem, entrou no gabinete. Simpática, sorriso à chinesa e sempre a abanar a cabeça, foi mais do mesmo. A certa altura, à minha pergunta sobre os seus antecedentes pessoais, em termos de acidentes e de doenças, disse-me:
- Não pecelbooo. Vou chamal o meu amigo. Saiu. Passados uns segundos entrou não com um amigo, mas com uma amiga, também chinesa, alta para o caraças, devia ter mais de um metro e oitenta, e fiquei na dúvida se era ou não praticante de artes marciais.
- A senhora fala português?
- Um bocadinho. A forma como pronunciava as palavras dava a entender que poderia entabular uma conversa. - Estou em Portugal há 14 anos.
- Muito bem. Olhe, importa-se de perguntar à sua amiga se já teve doenças no passado ou acidentes?
- Não. Não tive. Não tive acidentes nem doenças. 
- Não é a senhora! É a sua amiga, e apontei o dedo na direção da chinesa que queria examinar. Sem olhar para ela, e sem lhe perguntar nada, continuou:
- Não, não tenho. 
Comecei a ficar impaciente com as respostas. Não sei se percebeu ou não, mas para justificar as suas respostas rematou:
- Sou amigo dele há trinta anos. Foi então que entendi que estava a falar pela amiga na primeira pessoa. Continuei com o interrogatório e as respostas foram dadas invariavelmente pela intérprete sem consultar a amiga.
Como tinha as análises em meu poder, disse-lhe:
- A sua amiga tem diabetes. Diabetes, açucal elevado no sangue. Repeti várias vezes para ver se compreendiam. - Há casos de açucal alta na família? Virou-se para amiga e na sua língua de monossílabos começaram a falar.
- Sim. Mááái tem. Ploblema de família.
Fiquei convencido e passei a explicar que tinha de ir ao médico de família para se tratar. Entretanto ia explicando o que podia e não podia comer. A chinesa ficou com o sorriso mais amarelado, mas consegui tranquilizá-la. Disse que não podia comer muito pão, só pão escuro, pouco arroz, massa, batata e nada de açúcar. Foi então que a chinesa de um metro e oitenta me disse:
- Sim, pouco. Sim pouco. E muito? E muito?
- o quê? Perguntei.
- Comer muito?  Comer muito?
Olhei para a senhora e fiquei de boca aberta. Se tinha de comer pouco certos alimentos, logo, tinha de comer "muito" outros. Nunca ninguém me tinha feito pergunta semelhante. Sorri e disse-lhe:
- Feijão, grão, favas. Não sei se sabem o que é isso, pensei. Talvez. 
Acabei, ao fim de três consultas a chineses, diagnosticar o meu primeiro caso de diabetes a um oriental que desconhecia sofrer a doença. Sim senhor, já faço diagnósticos de diabetes à escala global.
Depois desta experiência acabo por concluir a razão do ministro da educação querer que entre nós se faça o ensino do mandarim. Resta saber se iremos levar tanto tempo a aprender mandarim como eles aprendem o português. Mas estive a pensar, porque não utilizar os ucranianos para ensinar aos chineses a língua portuguesa? Os imigrantes do leste europeu são espetaculares. Em pouco mais de um ano e meio falam de uma forma fluente e se tiverem alguns anos de permanência, então, não consigo distinguir de muitos nacionais. Falam corretamente e sem sotaque.
As minhas primeiras chinesices.
(2014.07.04)

Águas do silêncio da vida

Fui dar uma volta e esbarrei num troço de um rio esquecido. Um local diferente, onde a água cai sem fazer ruído. Algo surpreendente e quente. Pedras velhas e adocicadas pelo passar sem tempo das águas. Sombras de brincadeira a correr na água, jogando às escondidas com o espreguiçar indiferente do sol do meio da tarde. Aromas suaves e esquecidos do tempo foram subitamente libertados para seduzir o visitante. Não agradeci, apenas fingi que não vi, mas senti. Sons do passado saltaram mesmo a meu lado, histórias, contos e lendas esquecidas depressa foram recordados. As águas reviraram-me os olhos cheios de alegria, espirrando jatos suaves capazes de curar a mais sangrenta das melancolias. As águas mudas e cheias de vida disseram-me adeus, acenando-me com jogos de água. Distraídas, bateram em pedras esguias, onde coloridas ninfas, testemunhas de vidas perdidas, despertaram. Ouvi gritinhos de vergonha. Ninfas fugidias, belas e coloridas, mergulharam nas águas do silêncio da vida. Virei as costas e senti que me espreitavam com prazer de quem sabe que o melhor é viver, mas apenas em águas do silêncio da vida.
(2014.07.05)

Serra

Vou até à serra mais próxima. Gosto de a ver nua com seios de pedra à mostra e vestida de saias verdes enrugadas pelo tempo e pelo vento.
Vou até à serra mais próxima. Gosto de ver o chiar de regatos ocultos a cantar e a orar aos deuses para viajar sem dor até à planície do amor.
Vou até à serra mais próxima. Gosto de ver as gentes escurecidas pelo tempo da vida, pelo sol do mundo e pelas vestes das montanhas. 
Vou até à serra mais próxima. Gosto de ver a arte adormecida à espera de ser adulada e amada por quem quer ver o mundo.
Vou até à serra mais próxima.
(2014.07.06)

Montanha e arte

Começo bem o caminho. Subi vezes sem conta a sua encosta. Gosto do ar limpo e sacralizado pelo tempo e pelo esquecimento. Um altar à vida. Um monumento ao sofrimento. Houve quem subisse com vida e descesse acompanhado pela morte. Agora descansa, sem dor, sem sangue e sem tristeza apenas dorme. Sabe acolher e sabe oferecer. O silêncio das pedras é cortado pelo vento cansado. O verde surge a qualquer momento testemunhando sossego, encanto e afastando o medo. Sabe bem andar no silêncio da montanha. Sabe bem espreitar coisas belas feitas por seres humanos. O silêncio impera com alguma nostalgia. Corro os longos salões e delicio-me mais uma vez com a beleza e a tranquilidade da arte. Banho-me em espaços verdes, bebo a humidade inebriante de nuvens sagradas e alimento a minha mente com arte sempre surpreendente.
(2014.07.05)

Serão

Tinha assunto sério para avançar no serão de sábado. Tinha, mas não avancei, não escrevi e assim atrasei-me. Escrever coisas das áreas científicas não é simples, é preciso inspiração, por vezes muito mais do que escrevinhar ao sabor da alma. Exige muito, pensar, analisar, comparar, criticar, inovar, desmontar e criar. São muitas as etapas a percorrer para dar seguimento e corpo ao texto científico. Hoje não consegui, aproveitei uma indisposição e comprometi o serão. O que é que fiz então? Coisas simples, ver futebol na televisão, ler e ver coisas belas próprias da criação humana. Tudo ao mesmo tempo? Sim. Valeu a pena? Não sei. Talvez sim, talvez não. Que raio de serão!
(2014.97.05)

Notícia da morte

As manhãs deviam ser fonte de alegria de um novo dia. Mas há manhãs que nos confundem. Manhãs que nos despertam para a realidade da vida. As doenças e a morte atormentam as nossas mentes. 
Manhã sem sorte quando sou confrontado com a morte. Algo inesperado mas sempre certo, basta estar atento e desperto para a certeza da mais estranha existência.
Ninguém a espera, mas ela sim, espera-nos confiante e desafiante, e obriga-nos a pensar durante um curto instante. 
A morte é uma espécie de semente, feia, triste, imoral, que cai na terra à espera de se desenvolver e nascer sob a forma da bela flor da saudade capaz de fazer feliz apenas quem a sente.
(In memoriam a Pedro Barosa, 2014.07.06)

Nuvens

Não sei se estão a andar. Olho-as e parecem estar paradas e afastadas do céu. Não sei se estão mortas ou vivas. Há uma que se despe mesmo em frente do sol. Inebriado pela nudez transparente da jovem nuvem o sol lança-lhe raios envergonhados de luz e de cor. As outras despertam e viram-se para ele cheias de inveja. Noto que ficam mais alegres e, também, menos feias. Começam a andar, cada uma para o seu lado graças ao sopro que vem do mar. Abrem-se de par em par. Querem desaparecer e encontrar um novo lar, não o céu do ar, apenas viajar na transparência do esperado luar. 
(2014.07.06)

Renascido

Ainda não morri, mas já vi muitos corpos desprovidos de cor, sem sorrisos e pateticamente tranquilos. Olho para as suas lembranças e surgem-me à frente imagens do passado e saudades de um futuro não vivido. Recordo essas almas, vezes sem conta, como se tivesse morrido e nascido para conseguir dar sentido a um mundo perdido por deus esquecido.
É assim que dia após dia, e lembrança após lembrança, me sinto de novo renascido.
Para quê? Para tentar dar sentido às lembranças de entes que me foram queridos. 
(2014.07.06)

Caráter 

Com o tempo vou ganhando traquejo sobre o modo de ser e de estar de muitas pessoas. Há coisas que não têm solução. Há coisas que me metem medo. Há pessoas cujo pensar arrasa qualquer um, sobretudo quando queremos ajudar, ensinar ou explicar. O olhar denuncia-os. São olhares frios, distantes e pintados de preconceitos. Defendo-me, transformo-me num ser formal, calculo e meço palavra a palavra, atitude a atitude e comentário a comentário. Qualquer deslize ou qualquer frase mal construída ou aplicada são mais do que suficientes para desencadear reações negativas e ofensivas. São pessoas cheias de fel, atormentadas e capazes de atacar e ofender sem se preocupar. Com muito profissionalismo, e com outro tanto cuidado consigo, dar conta do recado, explicando, ensinando e orientando com o máximo respeito e sempre atento à mínima reação. Consigo cumprir o meu dever e até ser positivo, ajudando-os, mesmo sabendo que são fontes de perigo. Não espero agradecimentos, apenas um mínimo de atenção e de respeito.
Correu bem. Fiz muito mais do que devia. Não lhe vi nenhum sorriso, ele também não. 
Há momentos em que se parte o meu coração.
(2014.07.07)

Coimbra

Cidade única. Cidade bela. Cidade da vida. Três conceitos que emergiram ao mesmo tempo logo que vi a imagem. Única, porque não pode haver nada igual, nasceu de um ventre de amor e foi através do amor que cresceu para amar e dar lugar, durante o repouso, ao saber. Bela, porque a vida alimenta-se e reproduz-se ao som da beleza. Cidade da vida porque ensina, aprende e desperta o sentido da existência nos mais curtos e explosivos momentos e nos longos, nostálgicos e quase perenes momentos de reflexão.
A primeira vez que a vi era muito pequenino. Vim da terra no trama. Ao chegar à estação vi o rio. Largo, suave e muito belo com muitas barcas com velas desfraldadas. Não fazia sol, o dia estava enevoado, mas, estranhamente, as águas brilhavam como se fosse um espelho. Vi mulheres vestidas com cores garridas ao longo do rio. Havia muita cor, muito som, muita alegria e eu julguei que o rio corria no sentido contrário ao que acontecia. Quanto tempo, quantos anos, foram precisos para inverter o sentido do rio. Fiquei deslumbrado com aquela paisagem. Dei a mão ao meu pai que abriu a janela da carruagem, puxando a larga banda de de couro, e, subitamente, senti a brisa, o cheiro, a vida e a cor da primeira grande cidade da minha vida. Ficou gravada na minha memória um quadro único, um quadro que gostaria de desenhar, o mais belo quadro que até hoje vi de Coimbra, cidade única, bela, cidade da minha vida.
(2014.07.07)

Mentira

Vejo e ouço o que muitas pessoas escrevem e dizem. É tão fácil perceber o que vai nas suas mentes. Muitas delas têm uma característica verdadeiramente surpreendente, não mentem. Podem transpirar ódio e raiva, mas não mentem. Podem julgar tudo e todos à sua maneira, mas não mentem. Não escondem o que são, não mentem. Assustam-me imenso, porque não consigo compreender este tipo de mente, não porque não mentem, apenas por dizerem o que sentem. O que sentem assusta-me o que me leva a querer fugir dessa gente.
Prefiro a mentira, desde que saiba a doce poesia, sempre é uma forma de tropeçar na alegria de um novo dia. 
(2014.07.08)

Procurar

Procuro um curto período de paz. Não é fácil, mas consigo encontrá-lo, basta ir ao sítio habitual. Sento-me no silêncio cheio de cambiantes da natureza espiritual inerente ao ser humano e deixo-me ir no conforto dos pensamentos e na velocidade do desejo. Algo que se irá esgotar logo que termine de pensar. Não interessa o tempo, mas apenas o momento. Eu sei qual o momento e por que é que o persigo, é o meu castigo por o tempo passar por mim ofendido e sem sentido. Deixo-o ir e rio-me nas suas costas, convencido de que o mato. Como se pode matar o assassino que se ri sozinho, de mim e de um mundo perdido? Mata-se facilmente, é deixar livre o pensamento que vai voando livremente e que consegue viver sem mim, perdido no templo até que o tempo chegue ao fim.
(2014.07.08)

Estou cansado

Estou cansado. Cansaço físico é o que me atormenta menos. Basta deitar-me, recostar num sofá, sentar sob um frondosa tília, deixar espairecer a mente na esplanada de um café, olhar para o cume errante de uma montanha, desaguar nas margens de uma ribeira encantada, olhar para o misterioso e frio céu de uma noite quente de verão, beber algo que conforte o coração, ler meia dúzia de linhas de poesia ouvindo o silêncio de uma promissora vinha, escutar sons sem significado muitos vindos do passado, criar momentos únicos e agradáveis, que multiplico facilmente ao descer os degraus da vida, "são mais do que suficientes para remover o meu cansaço.
O que me atormenta mais é o cansaço da alma. Cruzo-me com pessoas estranhas, anémicas de carácter, arrotadores de falsidades, peregrinos do diabo, lacaios da falta de valores, gente que não se compromete, apenas gente que finge que promete. Cansam a alma de uma maneira tonta. Não consigo encontrar nada ou quase nada que remova o cansaço da alma. Isolo-me, não encontro a tília, nem a ribeira, nem a esplanada, nem a noite quente, nem a bebida forte, nem o livro da poesia, nem a montanha da vida, nada, não os vejo, nem os sinto. Olho para as palavras e peço-lhes que me digam o que fazer. Ouvem-me e respondem, escreve, mas tens de escrever de forma diferente. Diferente? Como? Simples. Olha para a tua mente.
(2014.07.09)

Envelhecido

Sinto que o tempo quer brincar comigo. Sinto o natural perigo. Sinto que um dia ficarei perdido, não por não ter compreendido, apenas por ter vivido. Sinto e não fico arrependido. A vida não tem sentido, e eu serei finalmente esquecido.
(2014.07.09)



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse