"Monsenhor"...

Envelhecer também tem aspectos positivos. Permite colecionar recordações, emoções e paixões que guardamos nas gavetas da memória e que estão sempre preparadas para sair e contar as suas histórias.
Gosto de arte. Sem arte não consigo sobreviver. Deixo-me seduzir com muita facilidade. Fico às vezes assustado com as minhas reações, mas não posso fazer nada, enrosco-me no encanto e no prazer de um belo quadro, estatueta, poema, visão e até paixão. Sempre é uma forma de viver e de esquecer muitas coisas que me rodeiam. Procuro uma realidade para fugir a outra. Se faço bem? Não sei. Pelo menos consigo embebedar-me com o prazer que emana da criação artística.
Fui à casa de uma amiga que tem o hábito de me mimar com atenções e coisas belas. Fui ver a sua mãe, velhinha e acamada. Conheço-a do tempo em que tinha de andar de calções, fosse verão ou inverno, desde pequenino. Depois, deixei de a ver. Meio século? Sim, ou talvez mais. 
São situações estranhas. O que se vive em criança o tempo nunca consegue apagar, é como se não tivesse passado nada, sobretudo o tempo, esse "escultor" que nunca consegue matar o que se viu ao nascer.
Foi à parede e tirou um quadro. Antecipei o gesto e a intenção. Antes de me oferecer já o tinha aceitado. Amizade é isso mesmo, comungar o mesmo prazer sem dizer nada, porque os melhores sentimentos são aqueles que não necessitam de explicação. Disse-me que foi um presente do marido há trinta e nove anos como prenda de aniversário. Olhei para a data e confirmei, 1976, o ano do nascimento da minha filha mais velha. Conheci o traço. Tinha, e tenho, quadros do autor, monsenhor Nunes Pereira. Já ofereci alguns aos filhos. Conheci o autor. Cruzámo-nos muitas vezes e nunca falámos. Admirava o seu traço artístico e o traço do quotidiano. Sempre com a pasta debaixo do braço, não fosse o acaso oferecer-lhe a beleza de mão beijada. Gostava de ver a forma como caminhava e o sorriso que lançava a quem passava. Pensava, que sorte tem Deus ter alguém que sabe rezar através da arte.
Deu-me o quadro. Tinha uma forte relação com o mesmo. Foi como me desse uma parte da sua vida e da sua alma. Eu gosto de coleccionar pequenos fragmentos de almas. 
O quadro retratava o pelourinho e a cisterna de Marialva, uma localidade que foi em tempos concelho e importante civitas. Sempre desejei ir ao local, mas nunca se proporcionou, embora há poucas semanas tivesse passado muito perto quando vinha de Bragança, onde fui fazer uma conferência. Não é ainda hoje que vou ver esta pedra preciosa. Tenho de a ver. Irei dedicar um dia para a ver. 
Olhei para o quadro e pensei, com uma oferta deste tipo o mínimo que posso fazer é ir em peregrinação ao local para ver onde o monsenhor desenhou tão bela obra no dia vinte e três de setembro de mil e novecentos e setenta e seis. Hoje, três de julho de dois mil e quinze, fui propositadamente a Marialva e permaneci algum tempo onde Nunes Pereira tirou da sua pasta uma folha e desenhou o que viu. Criar uma emoção deste tipo é como fazer amor com a história e beijar docemente a boca sedutora da deusa do amor e da beleza. A tantas lembranças adicionei mais uma. Olho para os quadros do monsenhor e afirmo que todos eles têm histórias e emoções tão belas como os seus quadros. Basta recordar três pequenos desenhos que um dia fez quando eu e a minha mulher entrámos na galeria de arte com as crianças, nove, seis e três anos. Demos uma volta pela galeria. Ao sair acenou-nos com a mão lançando um sorriso a raiar a beleza do divino. Sem dizer nada, entregou a cada um o seu retrato desenhado com mestria. Desenhos de almas de criança que guardo com saudade e alegria.

(Gostei de todos os comentários do Facebook quando anunciei o "Fim", mas houve um que me tocou sobremaneira. Alguém que não conheço,  Ró Oteda. Pela forma como exprimiu as suas emoções dedico-lhe este texto. Emoção retribui-se com emoção e paixão com atenção)

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