"Verdade ao anoitecer"...

O peso do dia faz-se sentir ao anoitecer. Por vezes o mundo lembra-se de rolar no lombo. É duro.
Durante a manhã o cinzento tomou-me com raiva, com rancor e com desprezo. Apanhou-me. É tão fácil ser-se apanhado, basta estar a pensar no azul do céu escondido e no brilho da névoa de espuma branca onde os anjos se refrescam com algodão de açúcar. Não se dá conta das suas presenças. Apenas se sente o odor a alegria. Gosto do cheiro das almas.
O trabalho prolongou-se numa longa rotina, aos soluços, entremeados por algumas conversas ricas, originais e por outras em que o silêncio imperava. As conversas surgem através dos sinais que os olhos esfomeados lançam nos demais. Olhares quentes, sedutores, tranquilos, soltos e verdadeiros. Olhares que anunciam planícies ricas de ideias e prenhes de histórias. Há outros olhares, os que fulminam, os que fazem doer, os que eu não gosto de ver, os que agridem sem falar e os que queimam sem pestanejar. Não quero ouvi-los. Não falam. Também não os entendo. Só sei que me metem medo. Mesmo assim escondem histórias. São conversas curtas, sem palavras, sem sons, sem nada, a não ser vómitos de imagens distorcidas da vida.
Quando o mundo rola no lombo, o melhor a fazer é esticar-me e ler um livro. Uma terapêutica excelente, sem par. O pior é escolher a obra.
Entrei ao início da noite na livraria. - Vou comprar um livro. - Para quê? Tens tantos em casa! - Preciso de me tratar. - Mas a farmácia é ao lado. - Eu sei. Mas é aqui que deve estar a solução. Um sorriso irónico inflamou a esplanada.
Entrei e corri para a prateleira onde estavam os clássicos. Percorri-a até encontrar um dos meus escritores favoritos. Alguém que consegue transformar uma frase na mais bela pedra preciosa. Sente-se o brilho e o calor das suas gemas. Mesmo que já tenha lido, vou comprar na mesma. Mas não, afinal ainda não tinha lido aquele, publicado após a sua morte. Evitei-o sempre.
Mostrei-o. - Escolheste este? - Sim. - Porquê? - Porque adoro Hemingway. Escolhi-o porque me ajuda a despejar o mundo. Escolhi-o porque adoro a sua escrita. Escolhi-o porque faz hoje anos que nasceu. Três boas razões para o escolher, não achas? - Sabes a data do seu nascimento?! - Sei. - Não me digas que também sabes quando morreu? - Sei, e matou-se com um tiro de espingarda. - Credo! - Pois! Parece que  tinha as suas razões. Libertou-se do mundo.

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