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A mostrar mensagens de agosto, 2015

Rainha

A nudez da serra, debaixo de um sol febril, consegue despertar sensações de liberdade e de encanto. Serpentear por zonas perdidas, onde de quando em vez se pode ver a dureza da vida espelhada nos sulcos graníticos das faces de mulheres e homens solitários, ajuda a compreender o silêncio da natureza. Sem palavras, apenas um ou outro olhar que se esvazia no eterno andar à descoberta de caminhos. Caminhos vazios e aparentemente sem fim. Acabei por chegar ao destino. Tempo suficiente para uma visita ao velho templo a fim de matar saudades da extraordinária escultura da beata, filha de rei, que, reza a lenda, era de uma beleza digna de uma deusa de Zeus. Uma rainha. Recordei de imediato a outra que tinha visto antes de subir à serrania. O templo setecentista estava aberto desta vez. Não perdi a ocasião e visitei-o. Apreciei belas imagens e o barroco tardio. Uma das imagens, pequena, a enfeitar um dos altares laterais, o da epístola, chamou-me a atenção. Tratava-se de uma versão rainha Sant

Incisivo sorridente

Começo a viajar vezes sem conta a lugares bem conhecidos. Necessidade? Falta de originalidade? Saudade? Não importa, o que interessa é encontrar sensações que satisfaçam paixões e criem novas emoções. Fui até à Guarda. Passeei, mergulhado em verdadeiro calor de estio, nas estreitas ruas velhas de séculos. Gosto de respirar os aromas das pedras escuras, cheias de histórias e de dramas. Olhei para o casario, a maioria triste e vazio. Consegui imaginar os pensamentos deixados nos interiores além dos que foram lavrados nas ombreiras das portas, humilhação granítica de quem foi obrigado a fugir e a mudar de religião. De repente, ao passar por um pequeno espaço ajardinado, disse: - Lembras-te daquela velhinha que um dia encontraste neste espaço? - Recordo, pois! Começámos a falar de uma senhora muito pequenina de fabrico e ainda mais pequena devido ao tempo. Vivia numa daquelas casas velhas paredes meias com outras vazias. Passeava o seu único incisivo que reluzia quando sorria. Falava bem

Claustro

O velho claustro, escondido dos humanos e perdido debaixo das águas do Mondego durante séculos, emerge, à luz do sol, a beleza anquilosada de um passado rico, com os seus segredos, angústias, tristezas, pecados e desejos nunca revelados. Piso as suas sepulturas, ouço as suas vozes, e entristece-me que violem os seus sonhos. Leio os nomes e datas, e reparo que podiam estar agora a meu lado. O calor do respaldar de um banco de pedra, afastado na altura da luz do sol, obrigou-me a saborear a mesma brisa que acalmou as almas penitentes de quem já sofreu. O céu é o mesmo, o ar brilha cheio de cor, os pensamentos não são diferentes enquanto os restos dos corpos sofrem o peso dos pés e o barulho de gente que não respeita ninguém, pecadores ou inocentes. Deixo que os meus pensamentos se impregnem pelos que aqui foram largados, criados, alagados e nunca mais lembrados. Soube-me bem pisar chão sagrado, alivia quem repousa e ajuda quem anda cansado.

A miniatura e o vinho

O encanto de viajar ao longo do rio obrigou-me a fazer pazes com a natureza. Não é que me tenha zangado com ela, mas, o facto de representar a prisão de um mundo sem grande interesse, irrita-me de vez em quando. Sentir a beleza a entrar pelos poros e ouvir com a pele o veludo do verde e a sensualidade da água tranquila, esquecido dos olhos perdidos no horizonte que constantemente mudava de formas, estimulou-me o apetite para continuar a viajar sempre à procura de novas paisagens. As naturais sobrepunham-se umas às outras, agora faltavam as humanas, com as suas grandezas, misérias, tristezas e criatividade sem limites. Não conhecia a povoação. Pobre, pequena e esquecida. Quem diria que algo semelhante fosse polo de uma viajem dedicada ao mundo perdido. Depois de uma pequena volta pela localidade, onde o passado reluzia como se fosse senhora do tempo, reparei na existência de um pequeno museu onde decorria uma exposição. Fascinado pela expectativa de poder encontrar algo que satisfizes

Liberdade de ocasião

Há sensações que ganham peso e forma com o tempo. Viajar sob um teto de nuvens tristes ilude-me de forma particular. A liberdade desaparece rapidamente. Faz-me recordar que estou aprisionado num triste calhau perdido no firmamento. Não há nada pior do que sentir ser-se prisioneiro, quer seja da vida, do tempo ou do universo. O peso do céu adensava-se a cada minuto ameaçando chuva e tristeza. Não fui longe, temendo a ameaça que se avizinhava. No regresso olhei para algumas figuras que ondulavam sem destino. Outras pairavam nas bermas com olhares perdidos sobre si próprias. Vi uma mulher nova destroçada pela vida que não teve. Perdida e esquecida de si mesmo. O meu olhar acompanhou-a por brevíssimos segundos. Foram suficientes para saber que não se interessa pelo futuro, pela saúde, pela harmonia e nem por qualquer fantasia. Talvez desejasse acalmar a fúria da privação e o incómodo de não ser ainda horas de se libertar para o mundo em que não não há nada, nem razão, nem coração, nem esp

Paganismo

Gosto imenso de apreciar templos religiosos. A arquitetura, a história, o silêncio, as imagens, as esculturas, os paramentos, a própria religiosidade, vertida em momentos de alegria, de aflição e de dor, e, sobretudo, o tremendo e esbelto paganismo à vista de quem quer ver a vida humana nos seus medos, desejos, crenças e aspirações, atraem-me de forma particular. A única coisa que não encontro é a calçada para os patamares divinos ou o bafejar macilento de qualquer Deus. Por aqui não anda, nem andará. Sorrio, não com desprezo, obviamente, dos que procuram o silêncio miraculoso da cruz ou das belas e delicadas estátuas esculpidas com prazer e fé, mas com vontade de fazer o mesmo que eles, nem que fosse para parecer mais um neste vale descuidado e desprotegido de qualquer atenção divina. Imagino que tudo não passa de uma interessante e criativa encenação. O que vejo é idêntico aos velhos templos pagãos com estatuetas de deuses vingativos e brutos ou de deusas sedutoras que prometiam os

Nossa Senhora da Tosse

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Acabei de almoçar e pensei dar a tradicional volta. Hoje tem de ser mais pequena para compensar a do dia anterior. Destino? Não tracei. O habitual. O melhor destino é quando se anda à deriva falando ao mesmo tempo. Quanto mais interessante for a conversa menos hipótese se tem de desenhar qualquer mapa. Andei por locais mais do que conhecidos e deixei-me embalar por cortadas inesperadas. Para quê? Para esbarrar em coisas desconhecidas. O que é que eu faço com coisas novas e inesperadas? Embebedo-me. Inspiro o ar, a informação, a descoberta, a emoção, tudo o que conseguir ver, ouvir, sentir e especular. Depois fico com interessantes pontos de partida para pensar, falar e criar. Uma espécie de arqueologia ambulatória em que o destino é senhor de tudo, até do meu pensar. Andámos e falámos. Passámos por locais mais do que conhecidos; velhas casas, cada vez mais decrépitas, rochas adormecidas desde o tempo de Adão e Eva, rios enxutos devido à seca e almas vivas espelhadas nos camp

Amargura

O tempo provoca por vezes alucinações. É difícil de entender. Nunca se sabe quando é que a realidade se sobrepõe à fantasia ou quando esta nasce suja de dor do ventre da primeira. É difícil de entender. O que resta, ao fim de muitos anos, é apenas o sentir, uma espécie de desejo adormecido que viveu escondido no casulo da alma; a lembrança da amargura de um dia ter sentido o mais estranho calafrio.   Nesse dia o meu colega informou-me do advir. A tragédia do momento já tinha sido temperada. No entanto, a próxima, longa e dolorosa, estava devidamente equacionada. Um arrepio profundo e espinhoso fez afugentar o sol luminoso de um dia de inverno. Nunca o sol lançou tantos raios de gelo iluminados de ouro falso, o ouro de velhos deuses. Não consegui pensar nem o que fazer. Depois, compreendi demasiado bem o que iria acontecer. Não me recordo bem do que se passou a seguir. Apenas me trespassou a mente a fantasia de um desejo sem sentido, próprio de quem se sente perdido. A leitura de alg

Rocha

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Recordo, quando ia para a faculdade, ao subir a rua Padre António Lopes Vieira, ver numa casa, que resistiu à fúria da renovação da velha alta, uma placa a indicar a existência de um ateliê de um artista plástico. Fixei o seu nome. Memória é coisa que nunca me faltou, e não altura muito menos. Depois, com o tempo, fui ouvindo e até vendo um ou outro quadro.  Os artistas foram sempre um motivo febril da minha atenção. Não há nada que consiga baixar a temperatura que, por vezes, chega a causar as mais estranhas alucinações. Algo que só a arte consegue. Olhava para o nome estampado na placa e pensava como seria agradável um dia ter um quadro do artista. Fiquei pelo desejo que nunca esqueci. É difícil esquecer o que se pretende numa vida cheia de ilusões que se desfazem a todo o momento em pó.  Ao fim de muitos anos, mesmo depois de ter reparado que a placa tinha desaparecido, o que me causou alguma apreensão, fui confrontado com uma oferta especial, uma aguarela do autor. Nunca d

Calor vadio

O calor suave de uma tarde a vogar livre e à-vontade, embalado em sussurros de brisas sem destino, tranquiliza o olhar e seduz o pensar. Basta parar à sombra de velhas árvores a fermentar lentamente o sol da vida. Não sonham. Não se inquietam. Apenas respiram e dormem sem sonhar e sem sofrer.

Pêndulo

Celebro no silêncio a descida às profundezas de uma noite vazia e sem cheiro. Ouço no corredor o pêndulo do velho relógio. Oscila sem se importar comigo e com o tempo medido. Estranha combinação, o som de um pêndulo e o silêncio vestido de negro de uma noite vazia e sem cheiro.

Minguar

Gosto dos dias longos. Preferencialmente quando começam a crescer. Sentir mais dois minutos de dia é suficiente para acreditar no prolongamento da vida que se arrasta atrás da luz do sol como se fosse a bela cauda de um cometa. O pior é quando os dias começam a minguar. Assustam-me. É nesta altura do ano que dou conta, com particular desilusão, o envelhecer do ano. Já vi as folhas dos plátanos amarelas. Começam a cair e a tristeza começa a invadir-me. É a morte lenta que me apoquenta. Durante a tarde finjo que está tudo bem, o pior é o mergulho cada vez mais rápido do sol atrás das montanhas. Sinto que me rouba muitas ilusões, deixando no ar, num rasto anilado, o vazio e a melancolia. Viver neste mundo é aflitivo. Não há forma de o mundo crescer ou rejuvenescer. Sempre os mesmos problemas, as mesmas torturas, os mesmos males, as mesmas mortificações, os mesmos ódios, as mesmas vinganças e as mesmas promessas de deuses invejosos e sem caráter, que alimentam de prazer os seus adoradore

Pensamento

Não há palavras, nem quadros, nem esculturas, nem versos, nem orações, nem desenhos, nem contemplações que consigam expressar o pensamento. Não há nada, pedra, argila, gesso, ouro, prata ou obsidiana. Nada que consiga dar forma, sentido ou vida ao pensamento. Nada. Apenas o silêncio do esquecimento, que a morte oferece a qualquer momento.

Pequenas frases numa noite fria...

Os políticos falam, dissertam e oferecem esperanças de novos dias embrulhados em velhas andanças. Não os ouço. Tiro-lhes o som e tento ler nos seus rostos as linhas de algum encanto, mas o que vejo são eternos cantos de sereias a quererem emudecer o mundo de espanto. Tirei-lhes o som. Desencantei belas melodias de Billie Holiday. Agora enchem de prazer o espaço vazio. Lá fora prosseguem os festejos, frios, mas talvez aquecidos pelo vinho envelhecido de uma noite sem história e vazia de sentido. Também não os ouço, prefiro o silêncio cheio de encanto na noite adormecida de um dia santo. As melodias levam-me a divagar e a imaginar histórias curtas e expeditas de dias simples. Dias que querem imitar as minhas adoradas estrelas cadentes. São histórias que não querem fazer parte da história, são apenas pequenos acontecimentos repletos de memórias vazias que querem sonhar por breves instantes. São pequenas frases interessantes ditas por muitas pessoas, que alimentam, sem saber, a fome do te

Poeta desconhecido

Aprecio gente desconhecida, sem nome, sem terra, sem raízes, sem destino, sem deus, sem esperança, apenas escorraçados pela vida. São os "esquecidos da vida", mas são eles que dão significado e algum colorido ao triste sonhar e alegre pensar. Andei pelo sul, bati ruelas e pracetas, entrei em museus e templos, e comprei livros, alguns tão desconhecidos como a gente desconhecida de quem falam. Foi assim que soube quem era José Duro, um poeta, um enjeitado nascido em 1875. Não aceitou mais tarde o apelido da mãe, quando o legitimou. Adotou "Duro", talvez por antever o que a vida lhe prometia, talvez por ser o apelido do pai, não interessa, o que importa é que a vida foi dura e ladra retirando-lhe o folegar aos vinte e três anos através do bacilo com que a morte ceifava a existência de muitos nos tempos de então. Embrenhei-me na descrição do moço que soube expressar a dor e os seus sentimentos como ninguém. Um poeta que merece a primazia no reino da poesia. Alguns já

Rei de almas de lei...

Ando sem parar à procura do meu destino. Volto vezes sem conta a locais vividos e nunca esquecidos. Sobressai na minha mente muitos apontamentos, distantes, secos, quentes e mirabolantes. Apenas desejo rever e encontrar o que não foi visto antes. Fui e encontrei. Entrei no belo recinto cheio de almas estranhas, agarradas às pedras quentes e desesperadas por falar durante alguns instantes. Vivem e sonham perdidas. Não falam umas com as outras, apenas conseguem sussurrar aos ouvidos de alguns mortais que procuram desesperados algum sentido para explicar o mundo perdido. Entrei e vi. Entrei e ouvi. Entrei e imaginei. Saí e falei. Doces momentos. Palavras soltas e olhares invisíveis percorreram o meu corpo, ouvindo o que eu sentia. Pediram-me para que eu dissesse o que queriam. Disse-lhes que sim, que iria contar o que ouvi, ou melhor, o que senti. Senti que aprendi, naquele espaço silencioso, onde o murmurar da água é uma constante, o significado de muitos cantares da vida escondida ma

Dia

Todos os dias são diferentes embora possamos pintá-los de acordo com as nossas emoções e lembranças. Desenho nuvens brancas e sedosas e vejo apenas nuvens escuras e tenebrosas. Pinto um céu azul e tranquilo e vejo apenas um céu cinzento e raivoso. Tento imitar os contornos de montanhas sorridentes a banharem-se no ouro do novo dia e vejo apenas recortes graníticos indiferentes às dores dos penitentes. O que desenho é a imagem negra do meu espelho. Deixo de desenhar; passo a sonhar. Abro a janela e aspiro o ar da manhã. Não saboreio nenhuma frescura, apenas sinto na pele as lágrimas de quem chorou durante a noite. Olho para o horizonte e vejo os contornos da serra a gritar pelo passado dos que não tiveram sono. O céu virou-lhe as costas e deixou adormecer nas suas encostas, lamentos, sorrisos, tristezas e saudades de quem viveu e vive sem saber o que dizer e fazer. Tantas lamúrias, tantas doçuras, tantas palavras quentes e tantos silêncios frios de seres ausentes. O dia apaga-se trist

Silêncio cinzento

Sinto saudades de escrever sobre o que não sinto. Gostava de escrever sobre o calor, o odor e a dor da cor. Escolher uma e espalhá-la numa superfície branca. Depois, num silêncio cinzento, poder  vê-la a escorrer lentamente, acariciando-a como se os meus dedos fossem pincéis capazes de desenhar frases de um futuro sem sentido. Ver as palavras a nascer, como se fosse o sexto dia da criação, cria a mais estranha ilusão, a transformação num deus sem paixão.

Dois Cristos

Não me recordo quando fui àquele local pela primeira vez. Vila muito velha com interessantes laivos de beleza natural e humana. Registei vários apontamentos, senti o odor do esquecimento e a ternura do passado cheio de dor e de amor. Sedução ditada por paisagens diferentes, cheias de loucas paixões. Vi uma loja de antiguidades. Olhei para o interior repleto de coisas interessantes, mas estava fechada. Sempre que me deslocava à vila de Frei Gil esbarrava na porta. Cheguei, inclusive, a ir com o objetivo de adquirir algo que me interessasse. Nada. Desisti. Passei a viajar sem outro propósito que não fosse a descoberta e deliciar-me com os encantos das atmosferas natural e humana. Vou quando me dá na real gana. É como visitar um passado conhecido sem saber as razões. Um dia, sem pensar, esbarrei na vila escondida cheia de tesouros. A loja de antiguidades estava aberta. Entusiasmei-me com as expectativas. Fui avisado para ter tento na mona, não fosse adquirir mais uma peça; "já não

Lágrimas de São Lourenço

Mudei de posição. Agora olho para o céu distante em direção a Perseus. Dali costuma sair traços brancos a quererem pintar o céu. Estamos na época em que chove belas estrelas cadentes. Mais de metade da constelação já subiu no horizonte. O casario rouba-me parte do espaço, mas mesmo assim confio que surja uma ou outra estrela cadente. Habituei-me, em pequeno, nesta altura do ano a vê-las. Às vezes não apareciam. Perguntava onde é que elas estavam. Diziam-me para ter calma, pois elas nunca deixavam de aparecer. - Como é que tu sabes, avó? - A minha mãe e a minha avó sempre me disseram que elas aparecem nesta altura do ano. - Porquê? - Não sei bem. Dizem que são as lágrimas de um santo. - De um santo? - Sim. De São Lourenço. - É assim que um santo chora? - Pelos vistos! - O que é se faz quando se vê uma? - Pede-se um desejo. - Hum! Calava-me e colocava os braços na varanda à espera de de ver uma. Nada. O tempo passava e nem uma estrela. O sono apertava e nenhuma aparecia. Até que de re

Gado do vento

São pequenas coisas ou inesperados acontecimentos que conseguem dar sentido à vida e alegrar, nem que seja por breves momentos, a alma. Ao revisitar Portalegre vi com olhos de ver o frondoso e velhinho plátano. Sob a sua copa muito coisa aconteceu, se disse e se prometeu. Ainda bem. É uma espécie de alforge que guarda religiosamente algumas preciosidades. Um dos seus frutos é uma publicação com a designação "Plátano". Uma revista crítica e literária publicada como deve ser, sem periodicidade, ao sabor do tempo. Como soube da sua existência, pensei, gostaria tanto de adquirir algum exemplar. No último dia passei por uma velha livraria e papelaria. Na montra havia exemplares de alguns números. Entrei e pedi à simpática e conversadora senhora se tinha alguns para vender. - Tenho, pois! Aqui estão. Pode levá-los todos. E os números que faltam, se lhe interessar, claro, farei tudo o que puder para os arranjar. Fiquei com todos. Sabia que no meio daquelas obras iria aprender mui

Varandas de ocasião.

Numa noite suave e delicada de verão sinto a tranquilidade das conversas do serão. O tempo para, o tempo recua, a alma sonha, a alma recorda tudo o que viveu desde então. Outras noites emergem nesta noite cantando e dizendo o que sentiam no coração. Recordo muitas delas e imagino aquelas que nunca dirão. Não estão aqui, mas é como se estivessem. Ouço o calor e a languidez das conversas, histórias e vivências cheias de tradição, sempre ao som do sino e do cantar das cigarras loucas e frenéticas com o cheiro do verão. Sentado à varanda recordo outras varandas. As varandas foram feitas para esta ocasião, lembrar o passado e sossegar o estranho momento do dia da ressurreição. Ressuscita a esperança, a saúde, a alegria e a inspiração de quem nunca soube o significado da criação. Cada um escreve a sua oração de acordo com o momento e o desejo de ser escravo da sua própria ilusão. Interromperam-me este momento de escrita. Chamaram-me da rua para a minha varanda. Por favor venha ver a senho

Cartazes

Acompanhar determinados acontecimentos ajuda-nos a compreender melhor a natureza humana, o caráter de alguns protagonistas, as suas aspirações e desejos. Não é difícil de compreender. É natural, embora finjam que são pessoas honestas e que querem o melhor para o país. Usam as palavras para provocar. Ao despertar sentimentos naturais, que a maioria quer corrigir e eliminar, pretendem tomar conta dos nossos destinos e do poder. Nada a opor, pelo contrário, é uma forma de contribuir para a solução de muitos problemas. Se tudo for feito com lisura, verdade e vontade inequívoca de melhorar a vida dos outros temos que aceitar e aplaudir a diversidade e os vários caminhos que podem levar a alcançar o mesmo objetivo. Mas as coisas não são assim. Nunca foram. Há um desejo, uma vontade intrínseca de ganhar e dominar usando o que não é correto, meios, atitudes e palavras que não correspondem à verdade. A mentira é o instrumento mais utilizado e com mais sucesso para alcançar os diversos fins ape

Não sei...

Não sei. Não sei se há algum ser que me empurra para certos locais. Não sei. Só sei que mudo mais facilmente que o vento. Só sei que cheiro no momento o local para onde ir. Não sei como acontece. Só sei que me deixo levar pelo calor, pela brisa, pelo som, pela lembrança, pelo desejo ou pela vontade do mundo embriagado à espera de ser adorado. Não sei. Só sei que nos cruzamentos, haja ou não alminhas, deixo-me irá atrás do nada, como se a inspiração fosse um enorme vento desejoso de enfunar as minhas velas do saber e do prazer. Assim foi. Assim tem sido. Encontro paraísos cheios de obras de encantar e de desafiar. Encontro espaços. Encontro tempos. Encontro saudades. Encontro o que quero encontrar mesmo sem saber a razão. Depois tento fazer a digestão. Difícil? Não! Rica em sensações e desejosa de mais emoções, alimenta-me com lembranças, imagens, sons, afetos escondidos, tragédias e amores, tudo metido sem qualquer ordem em cestos de arte e em poços de vidas.  Encho-me sem pensar, i

Raul

Viajar por Portugal é tropeçar em histórias sem par. Descobrir o velho monumento cuja visita foi adiada, conhecer recantos sugeridos e também esquecidos, ir longe para ver o que foi feito na nossa terra, descobrir textos e ensaios nunca imaginados, deliciar com espaços cuidados e chorar por causa de outros, ficar arrepiado em locais de tragédia e de injustiça, mesmo que fosse à sombra da eterna justiça, enfim, viajar é cansar o corpo e alimentar ao acaso a alma de coisas únicas. Não é complicado registar o que foi visto ou ouvido, difícil é pintar com cores fortes e sedosas de forma a dar sentido à vida. Mas há aspetos que não vêm do fundo da história, nem dos altares da arte, apenas pequenos episódios desejosos de haver alguém que os guarde, os trate e os acarinhe. Na passagem por uma histórica vila alentejana, pejada de figuras e de acontecimentos, lembrei-me que já eram horas de beber um café e uma água. Ao sair do carro vislumbrei um trabalhador curvado com uma pequena vassour

Leda e o Cisne

Zeus tem uma mania que nunca perde. Falo no presente porque ainda deve estar vivo. Zeus apaixona-se com muita felicidade, eu também. Ele por belas mulheres ou adolescentes esplendorosos, eu pela beleza e arte dos humanos. Entrei na cidade. O Rossio chamou-me a atenção. É o coração da povoação, praça antiga de uma bela cidade cheia de casas fidalgas e aburguesadas, em que as janelas pintadas e cuidadas são os olhos de quem sabe dizer como ninguém o que lhes vai no coração. Olhei para a Vitória. Uma estátua imponente e sedutora, a testemunhar com nobreza e respeito os que lutaram na Grande Guerra imortalizando-os. Bronze magnífico fundido com os sinos de igrejas extintas. Já não tocam nas torres, mas é possível ouvir os diferentes tons num contínuo e silencioso rebate. Mais abaixo, o frondoso plátano, verdadeiro Matusalém, cobria metade do Rossio. Tão velho está que necessita mais de uma dúzia de poderosas bengalas metálicas para apoiar os seus poderosos e gigantescos ramos. Cento e s

Teatro

Domingo de férias não deveria ser muito diferente de um domingo normal. Mas foi. Rumei sem sentido à procura do descanso e da frescura. Tombei numa região conhecida. Senti a brisa intensa do rio e a beleza suave das suas margens. A tarde convidava ao descanso. Sentei-me na esplanada e vi gente despreocupada vadiando como eu, embora algumas procurassem ajuda nas velhas águas que vêm emergindo desde a noite dos tempos das entranhas da terra, quentes, sedosas e sulfúreas. Por ali passaram príncipes, reis e rainhas e a maioria gente desconhecida à procura de alívio para as suas dores. A confiança e a fé são imutáveis ao longo do tempo. Descansei, ou melhor, fingi, até que me deu ganas de fugir. Fugi. Não andei muito. Parei na vila. Vila ou cidade? Agora nunca sei como tratar a nobreza snob de velhíssimas localidades, prefiro as tratar por tu, como se fossem vilas, em vez de sua excelência como "exige" a subida de estatuto, a cidades reles e sem sentido.  Deixei-me enveredar

Silêncio

Sentado na minha varanda ponho-me a pensar no que já ouvi e vi no largo vazio que está à minha frente. Um local privilegiado, vejo o céu estrelado, a silhueta da serra e o espaço envolvente outrora cheio de gente. Agora reina o vazio, o silêncio, a tristeza e a falta de crianças e dos cães. Nada. Não ouço nada e quando alguém passa fá-lo num silêncio aterrador em que as velhas boas-noites se apagam na mudez de seres que vegetam como almas. Não passam bêbados. A esta hora começavam a pingar, ali, na curva, ondulando e sempre à procura do suporte da parede. Não aparecem. Já não há praticamente bêbados, com os seus rituais, bailados, silêncios e os inesperados verter de águas na parede da esquina a querer testemunhar o encharcar de uma bexiga desejosa de respirar. Nada. Nem um. A procissão quotidiana e desgovernada dos fiéis de Dionísio não aparece, nem o próprio Dionísio. Apenas descortino uma ou outra pessoa desconfiada das estrelas e não amante da noite morna.  Resta o ribombar dos fo

Jogar à vida...

Sentar na mesa de uma esplanada e olhar as figuras em redor é uma espécie de jogo. As pessoas falam, comentam, levantam-se, leem, bebem o seu café, fumam cigarros, espreguiçam-se, metem o dedo no nariz, coçam os cabelos e os ouvidos, fingem-se espantados com o que ouvem, cumprimentam-se efusivamente ou passam despercebidos como se fossem seres invisíveis. Olho e tento perscrutar os seus pensamentos vadios.  Camadas de rugas profundas a quererem rasgar a pele flácida, amarelada e envelhecida por um tempo que correu veloz, chamaram-me a atenção. Costuma aparecer por esta altura do ano. Recordo quando era jovem. Nunca foi bela e muito menos simpática, mas tinha frescura para enganar qualquer um. Acompanhava sempre os pais que, entretanto, também envelheceram e desapareceram. Uma trindade pouco habitual e pouco cativante, talvez devido à força poderosa que emanavam da grande cidade onde viviam. Havia na altura a cultura de um efeito, tipo perfume, que só os citadinos da grande urbe sabi