Jogar à vida...

Sentar na mesa de uma esplanada e olhar as figuras em redor é uma espécie de jogo. As pessoas falam, comentam, levantam-se, leem, bebem o seu café, fumam cigarros, espreguiçam-se, metem o dedo no nariz, coçam os cabelos e os ouvidos, fingem-se espantados com o que ouvem, cumprimentam-se efusivamente ou passam despercebidos como se fossem seres invisíveis. Olho e tento perscrutar os seus pensamentos vadios. 
Camadas de rugas profundas a quererem rasgar a pele flácida, amarelada e envelhecida por um tempo que correu veloz, chamaram-me a atenção. Costuma aparecer por esta altura do ano. Recordo quando era jovem. Nunca foi bela e muito menos simpática, mas tinha frescura para enganar qualquer um. Acompanhava sempre os pais que, entretanto, também envelheceram e desapareceram. Uma trindade pouco habitual e pouco cativante, talvez devido à força poderosa que emanavam da grande cidade onde viviam. Havia na altura a cultura de um efeito, tipo perfume, que só os citadinos da grande urbe sabiam transportar e transmitir. Era a época em que regressavam às aldeias. Traziam formas de falar diferentes e sabedoria aprendidas em bairros não muito diferentes daqueles de onde um dia saíram. O que é certo é que voltavam com manias capazes de desesperar os mais humildes dos locais. Ouvias as conversas pintadas com sotaque de Cascais. Então, quando sabia que eram porteiras, que acabaram por se transformar em senhoras pedantes, capazes de fazer inveja às demais, divertia-me sobremaneira. Registava os seus tiques, comentários e formas de estar. Sentia enorme prazer em ouvir e observar seres tão vaidosos e snobes. Era uma época diferente. O tempo eliminou a sua importância e diferenças. Muitos desapareceram e os que restam são os filhos que desesperam em não poderem mostrar as suas diferenças ou a superioridade de antanho. Vir da grande cidade não significa nada hoje em dia. Ao recordar os velhos tempos reforço o sabor amargo dos seus dizeres e fazeres. Olho para a senhora. A cor da sua pele, acastanhada e enrugada, sem a desejada almofada de gordura, desfalece e envelhece a olhos vistos. Os seus lábios, que comem desesperadamente o fumo do cigarro, como se fosse o pão da vida, reviram-se em movimentos involuntários e frios de quem não sabe para que serve a vida. Uma imagem que não se coaduna com o tempo da frescura da juventude e com a riqueza da vida. O olhar esgazeado e esvaziado de alegria, a querer acompanhar a longa e solitária pluma de fumo, fez-me pensar como é triste jogar à vida.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II