Leda e o Cisne

Zeus tem uma mania que nunca perde. Falo no presente porque ainda deve estar vivo. Zeus apaixona-se com muita felicidade, eu também. Ele por belas mulheres ou adolescentes esplendorosos, eu pela beleza e arte dos humanos.
Entrei na cidade. O Rossio chamou-me a atenção. É o coração da povoação, praça antiga de uma bela cidade cheia de casas fidalgas e aburguesadas, em que as janelas pintadas e cuidadas são os olhos de quem sabe dizer como ninguém o que lhes vai no coração. Olhei para a Vitória. Uma estátua imponente e sedutora, a testemunhar com nobreza e respeito os que lutaram na Grande Guerra imortalizando-os. Bronze magnífico fundido com os sinos de igrejas extintas. Já não tocam nas torres, mas é possível ouvir os diferentes tons num contínuo e silencioso rebate.
Mais abaixo, o frondoso plátano, verdadeiro Matusalém, cobria metade do Rossio. Tão velho está que necessita mais de uma dúzia de poderosas bengalas metálicas para apoiar os seus poderosos e gigantescos ramos. Cento e setenta e sete anos são suficientes para ouvir e esconder muito, ou quase tudo, que se passou e vai continuar a passar-se na cidade. Vive. Árvore que albergou uma das aventuras amorosas de Zeus. A sombra acolhedora abriga os que a procuram. Eu também a procurei e saboreei o seu encanto.
O quadro não estava completo. Foi preciso olhar para uma delicada e sensual fonte, em mármore, que estava na conjugação dos dois "deuses" anteriores. No topo, a tocar quase a frontaria de um moderno hotel, a bela e escultural mulher estava a ser abraçada pelo longo pescoço de um cisne. Aproximei-me e vi Leda, rainha de Esparta, a ser seduzida por Zeus no dia das suas núpcias. Zeus é mesmo assim, impulsivo e lascivo. Leda teve quatro filhos dessa inusitada relação ocorrida nessa noite, dois de Zeus, Helena e Pólux, e dois do marido. Desconheço o autor da obra e o que levou a escolher este tema. Escultura muito bela, quase que me apetecia dizer, sublime. Ao lado, num banco, vi uma amostra da tristeza humana. Um corcunda olhava para o infinito que não deveria estar mais longe do que um metro. Velho. Ouvido com prótese. Não se movia. Não dizia o que pensava. Uma profunda tristeza, violenta, mais do que a intensa curva da corcunda, projetava-se naquele espaço. Nunca vi tanta imobilidade num ser humano. Olhei com mais atenção e vi que tinha o mundo às costas. Seria Zeus?
No dia seguinte regressei para ver novamente aquele espaço. Continuava encantador e há de continuar, assim espero, bem com a poderosa Vitória e o deslumbrante plátano. Mármore e bronze combinam, são eternos, mas a vida de uma árvore não, a não ser que Zeus a tenha abençoado à sua maneira. Nunca se sabe. Não sei por onde anda. Nem ele deve saber.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II