Silêncio

Sentado na minha varanda ponho-me a pensar no que já ouvi e vi no largo vazio que está à minha frente. Um local privilegiado, vejo o céu estrelado, a silhueta da serra e o espaço envolvente outrora cheio de gente. Agora reina o vazio, o silêncio, a tristeza e a falta de crianças e dos cães. Nada. Não ouço nada e quando alguém passa fá-lo num silêncio aterrador em que as velhas boas-noites se apagam na mudez de seres que vegetam como almas. Não passam bêbados. A esta hora começavam a pingar, ali, na curva, ondulando e sempre à procura do suporte da parede. Não aparecem. Já não há praticamente bêbados, com os seus rituais, bailados, silêncios e os inesperados verter de águas na parede da esquina a querer testemunhar o encharcar de uma bexiga desejosa de respirar. Nada. Nem um. A procissão quotidiana e desgovernada dos fiéis de Dionísio não aparece, nem o próprio Dionísio. Apenas descortino uma ou outra pessoa desconfiada das estrelas e não amante da noite morna.  Resta o ribombar dos foguetes ao longe. Vêm de vários lados, testemunhando as inúmeras festividades da época. Pelo som e pela alegria com que se expõem devem querer dizer que há ainda pessoas vivas. Sim. Pode haver. Limito-me a imaginá-las, porque ao perto impera o deserto. Não há cães. Não vejo os tradicionais gatos. Nem um. Não sei onde andam, talvez tenham ido até às festas. Ouço curtas e indecifráveis conversas, sinónimo de alguma vida, ao longe, decerto. Passa um helicóptero; ilumina o céu e apaga o silêncio do deserto de mais uma noite. Poisou. O silêncio renasce mais uma vez, agora com mais intensidade, deixando ouvir sons de vida espalhados e perdidos por aí. No meu largo vive a solidão onde dançam as almas mudas que no passado cantavam, berravam, choravam, riam, insultavam e até se amavam. O sino é teimoso. Ouviu os meus pensamentos  e respondeu num belo e apaziguador som. Ao longe um outro sino teima em querer falar com gente viva. Mais valia estar calado e falar com as almas da sua freguesia. Passam dois pares de passos incapazes de preencher o meu espaço vazio. Assim fala a noite, por gestos e sem rasgos de fantasia. Resta-me saborear, sem perceber, uma conversa de má língua, enquanto no espaço negro corre velozmente a estação orbital. Eu vejo o silêncio do meu espaço, enquanto eles vêem o silêncio do mundo a partir do espaço. O silêncio paga-se com silêncio, enquanto a saudade paga-se com um pequeno texto.

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