Abriram-se as portas!


Há dezenas de anos que passo por aquela localidade. Nunca vi a porta da capela aberta. Tive sempre curiosidade em ver o seu interior. Quando dizia isso, tinha como resposta: - São todas iguais. - Não são nada, são sempre diferentes. Recebia como resposta um sorriso silencioso.
Ao ir sem destino vi que a porta estava aberta. Havia uma azáfama dos diabos. Parei. Entrei no templo, onde se encontravam várias mulheres, novas e menos novas, a dar uma esfrega das antigas. Tudo virado ao contrário. Com calma perguntei se podia dar uma vista de olhos. Pararam, olharam-me com curiosidade, e depois, silenciosamente, demonstrando alguma tolerância, deixaram-me observar as imagens e os altares. Reconheci a Santa Eufémia, que estava fora do seu altar lateral por causa das limpezas. A outra santa, ao lado, bela e bem esculpida, atraiu a minha atenção. Não reconhecendo as suas atribuições, perguntei a uma das senhoras: - Está a trabalhar à maneira. É para a festa? - É sim senhor. Tem de ficar hoje tudo limpo para a festa de Santa Eufémia. - Ah, é verdade, já falta pouco. A conversa continuou mas do outro lado não obtive aquela espontaneidade a que estou habituado, não sei se era por causa do trabalho ou da minha pessoa. Mesmo assim perguntei quem era a outra santa, muito bela. - É a Santa Rita. Permaneci mais uns minutos. Depois fui à vida sem que antes lhes desejasse um bom resto de tarde. Recebi poucas atenções. Não me incomodou esta falha de comunicação, porque comecei a mergulhar no passado, recordando a primeira vez que ouvi falar da santa. Eram cerca das dez da manhã de um dia cinzento, triste e a ameaçar chuva, quando chegou o trama. Começaram a sair muitas pessoas, o que não era habitual. Perguntei por que razão havia tanta gente. - Vão para a Santa Eufémia. - Que santa é essa? Onde fica? O meu pai olhou-me surpreso, como se eu tivesse a obrigação de saber. Depois de uns breves segundos deve ter pensado que eu não tinha vindo ao mundo há muitos anos e que só há algumas semanas tinha começado a viver na estação. Explicou-me que era em Óvoa, uma povoação que não distaria mais do que dois quilómetros. Deixou que as pessoas saíssem da gare. Após o comboio ter partido, e a tranquilidade ter regressado, ensinou-me tudo sobre a romaria que atraía centenas ou até milhares de pessoas que iam pagar promessas e fazer os piqueniques. - Mas o tempo não está bom. Esta cheio de nuvens escuras e ainda vai chover. - Ai pois vai. É o costume. - É costume? - É sim senhor. A santa Eufémia abre as portas ao inverno. - Abre o quê? - É o que dizem os antigos. - Mas ainda estamos no verão! - Pois estamos, mas não tarda começa o inverno. As folhas já estão a amarelecer e algumas caem. - Que raio de santa! Então, no seu dia, quando as pessoas vão à romaria para poderem comer, é que o tempo começa a ficar mau e chuvoso? - É! Mas as pessoas já sabem e não se importam.
Foi assim que fiquei a saber muito sobre esta romaria. Até a minha mãe, nas suas promessas, sempre por minha causa, claro, prometeu um dia que iria sempre todos os anos à santa Eufémia até poder. E foi. Depois adoeceu e nunca mais pôs os pés na capela, que eu conheço desde pequenino. Hoje, o tempo está triste, cinzento e cai uma morraceira. Mesmo assim fui até à santa Eufémia. Já não é tão concorrida como outrora, mas continua a atrair gente da zona, e até de uma vila vizinha que, curiosamente, desde tempos imemoriais, peregrina e galga a pé uma dezena de quilómetros para adorar a santa. Se atendermos à rivalidade e às costas voltadas com que sempre conviveram não deixa de ser curioso este fenómeno.
Um dia invernoso e ainda é verão.
As portas abriram-se e as recordações também.

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