"Povo"

Gosto de um bom livro, aprecio a literatura e esqueço-me do mundo quando me enfronho nas páginas do neorrealismo português. Devorei a obra de Mário Braga até não haver nada mais para ler; embebedo-me com muita facilidade com Aquilino; Ferreira de Castro incentiva-me a explorar muito do desconhecido. Outros, como Miguéis, Alves Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, só para citar alguns ilustres representantes da cultura portuguesa cheios de arte, magia, vivência e de sentimentos, conseguem descrever muitas realidades que tive oportunidade de ver, sentir, cheirar e chorar. Ao ler uma obra "proibida" de Afonso Ribeiro, "Povo", estremeci de emoção. Os seus contos não são contos, são verdadeiros poemas de dor e pinturas de almas sofredoras. A miséria humana, em todas as suas expressões, é relatada de uma forma única, sensível e amarga, sem esquecer a fome da esperança e a vontade de amar. Ao ler a pobreza em que viviam os nossos antepassados, ou melhor, contemporâneos, consigo recriar e vivenciar toda aquela panóplia de dor, de sofrimento, de miséria e de desprezo a que eram botados seres com quem convivi e conheci. Para cada um dos seus contos consegui reproduzir muitas vidas com quem me cruzei. Pobres, mas não eram pobres de Cristo, eram pobres de corpo. As suas almas não tinham qualquer significado, nem para o próprio divino no qual procuravam, alucinantemente, ajuda para os seus males. Não tinham nada, nem direito à vida. A miséria minava tudo e todos, só a morte conseguia acalmar os tormentos. Releio sofregamente as obras dos nossos maiores e de alguns que tombaram no esquecimento despropositado de quem não sabe compreender os males da nossa sociedade.
Os tempos mudaram. Hoje, as casas não são de terra batida, as telhas-vãs não se encharcam em fumo, a água não vem em cântaros da longínqua fonte, a luz não é parida pelos candeeiros de petróleo e os fogões elétricos ou a gás há muito que substituíram as velhas lareiras. Isto só para falar do corriqueiro, as condições básicas de vida, porque o estômago andava invariavelmente numa fome permanente e a doença minava de forma gostosa qualquer corpo que se pusesse a jeito, a maioria, claro.
Olhamos para o passado e afirmamos que hoje as coisas são muito diferentes. Aquela expressão tão típica, "se soubessem o que era viver no meu tempo, então sabiam o que era a verdadeira miséria", obriga-me a reconsiderar a mesma, como se hoje vivêssemos na abundância e na fartura. As coisas mudaram, de facto, mas apenas para um novo patamar, em que a miséria faz das suas com a mesma perversidade e falta de respeito de forma idêntica aos tempos idos. Têm luz? Têm água? Têm televisão? Têm carro? Têm roupa? Têm acesso a cuidados médicos e medicamentos? Têm possibilidade de aprender e de estudar? Têm acesso fácil à informação? Têm liberdade de expressão? Têm capacidade de intervir política e socialmente na vida comunitária? Têm isto tudo e muito mais coisas? Têm. Mas há quem viva na miséria e sofra por causa disso. Há quem não tenha emprego e muitos ganham miseravelmente. As necessidades aumentaram de forma exponencial. O próprio Estado, e as inúmeras instituições que nos "oferecem" as maravilhas do progresso, exigem o pagamento das suas atividades e serviços de uma forma tirânica e implacável. E o que ganham as pessoas? Mais sofrimento, porque a maioria têm de trabalhar, não para o progresso e bem-estar das suas vidas mas para pagarem o direito a ser pobres. Hoje em dia, os pobres deste miserável país têm de pagar a sua própria pobreza.
É demais!

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