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"Racionamento benigno"

É uma senhora sofrida, e tem raz ã o. A maldita da doen ç a provoca-lhe sofrimento atroz e reduz-lhe a liberdade para a realiza çã o de triviais atos, impossibilitando-a de ganhar a vida como desejaria. Luta com denodo, cumpre rigorosamente a prescri çã o, conhece na carne os malditos efeitos secund á rios dos f á rmacos que, teimosamente, n ã o a libertam da dor e da incapacidade. Luta, e luta a s é rio. Nas nossas conversas denota uma atitude cr í tica, fundamentada nos problemas sociais e nas prioridades m é dicas. Habituei-me ao seu discurso. Inicialmente considerei-o como equivalente a uma forma de despeito, mas estava errado, tenho de confessar. A minha costela preconceituosa ainda geme e faz-me gemer, mas acabo por aprender, e, habitualmente, com quem menos espero. Sempre na expectativa de poder melhorar, lutou para que lhe fosse feito o tratamento biol ó gico no hospital. Conseguiu. Foi aceite. Ao fim de pouco tempo come ç ou a melhorar a olhos vistos. Senti a emerg ê ncia d

Ciência e mitos

Considero um cocktail saboroso quando a poesia, a ci ê ncia e a hist ó ria enchem a imagina çã o construindo certas not í cias, as quais s ã o uma fonte preciosa de especula çã o. Especular é uma necessidade, um adorno para o nosso c é rebro a relembrar belos colares e an é is, joias da mente que necessitam de espa ç o, de gente que as contemplem, que as copiem, que se inspirem nas mesmas, fomentando novas ideias. Adoro ler novas vis õ es e interpreta çõ es mesmo que n ã o correspondam à realidade, j á que viver no mundo da fantasia é a aspira çã o natural de uma crian ç a e a m á xima de um adulto consciente. Dizem os entendidos que o monote í smo nasceu no antigo Egito, provocando mudan ç as radicais na forma de ver o mundo e na pr ó pria organiza çã o social. Claro que tal transforma çã o n ã o agradou a muitos, mas é certo e sabido que certas mudan ç as arrastam sempre consigo mal-estar, raiva e o ó dio. Naquela zona do mundo, s ã o in ú meros os segre

Fio invisível

Quem não consegue ver ou sentir a presença do corpo de um amado não consegue ter paz. Quanto à alma do defunto não sei se sentirá o mesmo, pode ser que sim. Mais do que dar descanso aos mortos o que é preciso é aliviar a ansiedade dos vivos, cortando-lhes a invisível fita que os prendem às almas que estrebucham no seu pensamento pelo desejo de liberdade, e só vendo os corpos é que conseguem alcançar a tranquilidade. O luto é isso mesmo, o corte do fio dos sentimentos que prende os vivos aos seus mortos. São inúmeros os casos em que tal situação não ocorreu, porque não se sabe se o amado está vivo ou morto, ou, neste último caso, onde pairará. Mas há quem deseje dificultar esse corte, como aconteceu com o caso da pesquisa de corpos de uma tripulação inglesa que, no regresso de um bombardeamento a unidades de guerra alemãs, foi abatido sobre o território inimigo. Houve uma testemunha que viu tombar o Lancaster. Agora, passados quase setenta anos, a testemunha ocular ajudou "caçador

"Pietà"

Imagem
Há muitos anos que me dedico a adquirir, sempre que posso, imagens de santos. Cá em casa, em tempos, perguntavam invariavelmente, sempre que me viam regressar de alguma excursão de tempos livres, com algo embrulhado em jornais ou em papel costaneira debaixo do braço, qual é o mutilado que trazes hoje. Tinham razão, raramente trazia algum completo, mas não me importava e nem me importo. Nunca ninguém me perguntou qual a razão desta apetência, mas eu respondo. Inicialmente também não percebia a razão, mas com o tempo fui compreendendo, acho eu. Além do sentido estético transmitido pelas imagens, sinto que os autores iam mais longe, impregnando-as de uma espiritualidade única. A beleza, a espiritualidade, as inúmeras mensagens simbólicas que emanam e o anonimato do criador transformam uma imagem num verdadeiro e tranquilizador livro à espera de ser lido. Eu gosto de ler, sejam palavras, sejam imagens, sejam símbolos, seja o que for. Nem vale a pena descrever as diferentes imagens que poss

"As noites são mais longas, mais longos são os dias"

"As noites são mais longas, mais longos são os dias". É assim que Stefan Zweig abre o primeiro dos cinco pequenos textos sobre a Grande Guerra. A forma, profunda e sentida, como aborda os sentimentos, as preocupações e os comportamentos dos humanos no início do conflito, despertou-me um paralelismo com a situação atual, não que haja qualquer identidade com a destruição, a morte e as feridas da guerra, mas pelo facto de as noites de muitos passarem a ser longas, demasiado longas, assim como os dias, longos e vazios de esperança. A miséria está aí, à porta, não é o espectro da morte com a foice a querer cortar o fio da vida, são seres humanos de fato e gravata, e pasta de bom cabedal, a quererem cobrar dívidas, ou melhor, são agiotas que emprestando dinheiro a aflitos sabem com extorqui-lo, obrigando a que os devedores se mantenham vivos durante o máximo de tempo possível, porque só assim reaverão os seus investimentos e respetivos lucros. Uns "filantropos" de trampa,

Um sorriso e um abraço

N ã o deveria ter mais de cinquenta anos, a sua face ainda estava pejada da beleza da adolesc ê ncia, mas o que me chamou a aten çã o foi o sorriso, algo de especial, a sugerir a vit ó ria sobre um mal profundo e doloroso. Sentou-se. Era a primeira vez que a via. Perguntei-lhe se andava bem de sa ú de, respondeu-me que tinha estado de baixa prolongada, mais de um ano. Olhei e interroguei-a à minha maneira, n ã o dizendo nada, deixei que o meu sil ê ncio atuasse. A senhora compreendeu e come ç ou a contar o que lhe tinha acontecido. Que hist ó ria, meu Deus, um drama, o suic í dio de uma jovem a quem ela queria como se fosse uma filha. O mundo desmoronou-se para a senhora, para o marido, para a filha mais nova e para o filho, o namorado. Falou, e eu nunca a interrompi. Soube que tinha recuperado de uma grave e profunda depress ã o, pessoal e familiar. Contou-me pormenores, eu aceitei-os e vi algo de misterioso, um equilibrado distanciamento entre os acontecimentos e a form