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Pardalada...

Através da janela que dá para a varanda, à minha frente, reparo que aparecem pássaros, pardais e melros, com uma frequência pouco comum. Veem-me e eu vejo-os. Levanto-me, espreito, e eles não se assustam. Saltam em direção ao beiral, novo em folha, e, num exercício de ginasta de circo, mantêm-se a bater as asas sem sair do sítio até que se enfiam debaixo das telhas. Hum! Fizeram casa. Mas não é só um casal. O apartamento ao lado também foi tomado. E no beiral de cima nem se fala. Parecem mesmo uns "okupas". Antes de entrarem nas suas "residências" poisam, durante um bom bocado de tempo, na grade da varanda em frente da janela e espreitam com um olhar de admiração para mim, talvez pensando o mesmo que eu, quem é aquele indivíduo, atrevido, a querer importunar-nos na nossa casinha. A "pardalita", é capaz de ser mesmo "uma", junta-se ao pardal, gordo, robusto, a querer demonstrar que está bem na vida. Pelo aspeto deve ter mesmo u

Queima do Judas

Para regressar ao passado basta montar um cometa, depois da sua passagem pelo sol, e voar até às mais longínquas distâncias esquecidas pela memória. O cometa tem o condão de saber o local onde nascer e morrer é igual. Mas não é preciso ir tão longe, porque pode ser uma experiência muito assustadora.  Estou a olhar para o céu e não consigo ver as estrelas. Já não as vejo há muito. Começo a ter saudades, tantas como do sol, perdido ou roubado. Imagino que um cometa se aproxima. Agarro-me à sua cauda e precipito-me em velhas recordações. Anda depressa o cometa. Peço-lhe que abrande e me deixe ver o que é aquilo, são vozes a espreguiçarem-se, sons confusos, interjeições brejeiras e risos sardónicos, envoltos em longas labaredas, com um estranho cheiro a petróleo, das quais evola um espesso fumo branco acinzentado capaz de obrigar os olhos mais secos a lacrimejarem e a interromper a deliciosa gritaria com acessos incómodos de tosses secas. E vi, vi um sábado de aleluia em que queima

"Médica das letras"

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Sexta-feira santa, chuvosa, triste, a convidar ao descanso merecido de lutas sem fim, de guerras perdidas, combatendo numa sociedade desestruturada, vazia de ideias, pérfida, idiota, capaz de capar o mais otimista. Acordo cedo. Um castigo imposto pelos dias de trabalho que desconhecem a existência dos feriados. Fiz um esforço adicional para prolongar o tempo de repouso. Soube-me a algo mais simbólico do que prático, mas deu para rememorar outras sextas-feiras santas, tantas, e todas cheias de histórias. Hoje, sexta-feira santa, colecionei mais uma. Gosto de as colecionar, gosto de as registar, gosto de as reler e de as dar a conhecer. Gosto de juntar "as palavras para ficarem boas e bonitas".  Toca o telefone. A voz, nova, doce, timbrada, eivada de encanto e de fantasia, cumprimenta-me com um bom-dia que nem o sol consegue nos dias de verão ao nascer.  - Bom-dia, meu amor.  - Vovô, tens que me ajudar, a mamã acordou com dores de cabeça e não se levanta para tomar o

Memória

Não sei o que fizeram à memória. Alguns esquecem-se porque a idade assim o exige, outros porque as toupeiras da demência destruíram o passado e minam o futuro, mas há também os que se fazem esquecidos, umas mulas que sabem viver e como enganar o próximo. A estes tipos de faltas de memória acrescento a atrofia do desenvolvimento da mesma.  Começa a ser anedótico ir às compras e pagar. - Faz favor? Quanto é? Uma pergunta banal para quem acabou de adquirir um jornal e uma revista. Feitas as contas, mentalmente, 3,75 €. A menina saca de uma máquina calculadora e consegue fazer a conta. - 3,75€. - Muito bem! Aqui tem uma nota de cinco euros. Fiquei a aguardar o troco, 1,25€. A menina volta a pegar na pequena máquina de calcular e em voz alta digita, 5 euros menos 3,75. Com um sorriso bonito e simpático dispara, triunfantemente: - Tenho de lhe dar 1,25€. Aqui tem. - Muito obrigado. Ripostei um pouco incomodado pela lentidão do processo. A moça deveria ter o curso secundário

"Quem vê de fora vê melhor"!

Primavera instável, chuva por tudo o que é sítio, lágrimas de um tempo desesperado e sem futuro a querer atormentar-nos a existência. Chuva da semana santa a lembrar que as divindades que se passeiam nesta época também sofrem connosco. Só podem. O trabalho obrigou-me a viajar até à capital. Há algum tempo que não prestava vassalagem à gorda, à dona, à meretriz, à amada mais odiada. Levantei-me de madrugada. Cedo de mais!  Enfim, um erro de horas, mas mais vale assim, porque não se pode fazer esperar a mãe do país, pode irritar-se. Esperei eu, não me custou nada, arranjo sempre maneira de usar o tempo em meu favor. Lá fora, a chuva e o vento dançavam freneticamente como se fossem atingidos pela doença de São Vito, atemorizando-me, como quem diz, quando saíres daí vais ver o que te vai acontecer. E aconteceu, molhou-me e irritou-me. Na baixa, abrandou a sua irritação, permitindo que almoçasse em paz. Depois, passeei, tinha de fazer horas para outra atividade, a conferência ao final d

"A arte é fonte de otimismo"

Os meus dias de pessimismo multiplicam-se de forma exponencial. Razões? São tantas que nem me atrevo a citá-las. Poderei dizer que muitas delas são partilhadas por diferentes pessoas, não as mesmas, porque cada um tem a sua visão própria do mundo com leituras e vivências diferentes. Cada um de nós considera as suas razões como as mais importantes, porque são reflexos do seu posicionamento neste estranho mundo. É perfeitamente natural. No entanto, algumas dessas razões parecem adquirir um estatuto universal, como esta tragédia que nos assalta diariamente e da qual não conseguimos sair nem antever como. Sou inundado diariamente com o pão amargo da tristeza, da falta de esperança e de uma crescente desconfiança em quem nos governa e desgoverna, para não falar daqueles que, tendo sido mais do que responsáveis pela atual situação, foram mesmo criminosos, ameaçam emergir para nos atormentar, não a todos, porque alguns devem esfregar as mãos de satisfação face à possibilidade de regressarem

"Mactérias"

É bom estar atento aos miúdos, porque quando menos se espera aprende-se alguma coisa, pelo menos ficamos a saber, ou a imaginar, como funcionam aqueles pequenos cérebros ávidos em compreender o mundo que os cerca.  O primo, um ano mais velho, sofre de cárie. Uma situação muito comum nestas idades. Apesar dos cuidados de higiene oral não conseguiu evitá-la. Tomara! É uma criança como qualquer outra, gosta de se alambazar com produtos altamente cariógenos, o que pode ter consequências, por vezes dolorosas, como foi o caso desta semana. Antes, já tinha sido sujeito a tentativas de tratamento, mas, como estávamos à espera, opôs-se com determinação, ou seja, com medo, comportamento típico nestas idades, embora as condições atuais não tenham nada a ver com os dignos representantes dos "dentistas-barbeiros" que, no meu tempo de criança, revelavam ainda resquícios de aspirantes a torturadores da Santa Inquisição. As conversas sobre este tema, cárie, doces, chocolates, lavagem e