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"Miranda do Douro"...

Escolhi Miranda do Douro para iniciar o meu período de repouso. Trás-os-Montes fascina-me desde sempre, devido a uma estranha beleza revestida de alguma rudeza e de muita cordialidade. Aprecio as suas gentes e tudo o que fazem, com sacrifício, denodo e coragem. Gentes muitas vezes esquecidas e só lembradas em situações especiais.  Há muito que não vinha até estas paragens, mas não me foi difícil encontrar velhos locais. Passado pouco tempo comecei a sentir o efeito transmontano entranhado no meu espírito. Dei as minhas voltas, adquiri livros em mirandês e pus-me a ler contos e lendas nesta língua fugidia e encantadoramente sonora. Fiz alguns esforços para escrever um pouco na nossa segunda língua falada por tão poucas pessoas. Confesso que me apetece aprender a falar mirandês, porque sinto que só assim poderia conhecer o sentido e o significado de muitas histórias que tem escondidas e identificar-me com a alma de Trás-os-Montes.  Hoje, respirava-se um ar triste, difícil de explic

"Um homem e um cão sem nomes"...

Instintivamente desci ao rio Douro e embrenhei-me no antigo reino de Castela e Leão. Percorri um planalto dourado, semeado de pedregulhos, desertificado, apenas entrecortado por pobres e esqueléticas aldeias. Apontei para Zamora. Lembrei-me de em miúdo ouvir vezes sem conta que o tratado que reconheceu a independência de Portugal foi assinado naquela localidade. Nunca esqueci o nome e fiquei sempre com curiosidade de ver onde foi assinado o documento mágico que nos deu origem. Hoje concretizei uma peregrinação longamente adiada. Escrutinei vários locais que não me surpreenderam em demasia. O habitual das cidades espanholas. Alguns vozeirões, sobretudo femininos, arranharam-me os tímpanos ferindo o entendimento e a paciência. Cumpri o meu ritual. Pus-me a pensar quantas daquelas pessoas, que, aparentemente, circulavam sem um sentido definido, conheceriam tal facto e o que diriam se lhes dissesse a razão da minha presença naquela cidade, talvez um misto de espanto e de desprezo.  Rum

"Domingo"...

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"Domingo"... Domingo de verão enfeitado por uma manhã de sol a convidar a desfrutar a liberdade. Um objetivo prático estava traçado desde a véspera. Um início que não vislumbrava o fim. Andar à deriva é a forma mais escorreita de encontrar o que se quer encontrar, sem saber o quê. Basta andar. Basta procurar e logo se vê. Comecei em Côja, onde decorria uma pequena e modesta feira. Adoro visitar esta vila pequena onde ainda se consegue sentir o cheiro de uma aristocracia rural e desfrutar belezas naturais. À sombra do belo e silencioso rio, digno do seu nome, Alva, ouço vozes de encantos humanos que por ali passaram e comungaram as suas histórias de amor. Tentei ver se na feira estaria um velho santeiro que conheci há anos por esta altura. Confesso que tinha a esperança de lhe adquirir uma das suas obras populares, embora um pouco toscas. Não o encontrei. Já deve ter morrido, pensei. Sentei-me no meio da rua sob um calor intenso para almoçar. Simpatia, favas, bom vinho e s

"Más-línguas"...

Acompanhar as pessoas ao longo dos anos ajuda-me a compreender melhor a natureza humana. Nesse aspeto sou um privilegiado. Doentes que envelhecem e que conseguem sobreviver a acontecimentos graves aliciam-me sobremaneira. Muitos, quase que me apetecia dizer, ultrapassaram o "prazo de validade" há muitos anos, pelo menos em termos simbólicos. Queixam-se de que mal conseguem pôr-se em pé, em caminhar, que têm dificuldades de vária ordem, mas, mesmo assim, querem viver. Queixam-se de que estão a dar as "últimas", prestes a "dar a côdea", de que é a última vez que me veem, enfim, o habitual, um ritual rodeado de tristeza e de um acabrunhamento que me provoca mal-estar. O arrastar-se, o arrojar-se na cadeira, os beiços caídos e incapazes de segurar a saliva, as pálpebras reviradas e avermelhadas, os sons meio percetíveis a saírem de gargantas roucas, os tremores das mãos e a falta de expressão facial incomodam-me, e muito. - Pois é! Queixas, só queixas, mas me

"Férias"...

Sento-me ao início do anoitecer junto à ribeira. A esta hora o ar anda nas fonas tradicionais do final do dia, agita-se, sopra, refresca e espirra com a  humidade que lhe é própria. Espero que quando a noite cair adormeça pesadamente deixando-me tranquilo e sem ter que embirrar com a sua agitação. É o que acontece normalmente. Espero que hoje também aconteça. Gostaria de permanecer neste local abandonando-me ao sabor das lembranças. Não sei se deva deixar-me levar pelas lembranças ou se antecipar e imaginar acontecimentos próprios de uma quietude desejada. Não sei se irei gozar a quietude dos dias vindouros, aquilo a que se chama férias, um corte com hábitos frenéticos, duros e por vezes dolorosos que me acompanham ao longo do ano. O melhor é deixar-me enlevar por ambas, as lembranças e as esperanças, sempre podem mitigar a angústia de viver.  A tarde, quieta e anódina, fazia antecipar este acontecimento. Parecia que me queria preparar para este ritual anual. Há dias que me vem avi

"Confidência de um sino"...

Quem vive necessita dos outros. Sem eles a existência seria um inferno, vazia, dolorosa e deprimente, um convite à não-vida. Mas há quem viva sem gostar dos outros, ou, então, se gostar devem ser tão poucos como os dedos que lhe restam depois do arrebatamento do foguete nas mãos durante a festa que tanto abomina.  Nasceu assim, com dedos para os perder, com dentes para nascer, que um dia desapareceram sem que ninguém desse conta que alguma vez os tivesse, e com um olhar vidrado sempre pronto a lançar quebranto aos vizinhos e, até, às pobres galinhas que cacarejavam angustiadas na rua sempre que o viam.  Sombrio, sudoroso, sebento, sacana, sem fé, sem caráter, fazia arrepiar qualquer um. Até o sino parecia que perdia o seu belo timbre quando sentia que ele estava a observá-lo. Lembrava-se muito bem do dia do seu batismo. Esqueceram-se de que não havia água benta e para a substituir usaram a que estava dentro de uma pequena garrafa que alguém tinha deixado num canto da sacristia. N

"Sementes na orelha"...

Este mundo é muito confuso e por mais que uma pessoa viva acaba sempre por se surpreender quando menos espera. No fundo não deixa de ser um encanto e uma recompensa, já que não há nada mais aborrido do que a rotina sem sentido e sem fim. Não significa esta afirmação que as tais surpresas enchem as medidas, não, muitas vezes obrigam-me apenas a refletir e a tentar compreender um pouco mais a natureza humana. Não sei se consigo, às tantas não, mas não ponho de lado que o defeito possa ser meu. Sou um produto enviesado de uma vida complexa, que deixa muito a desejar em termos de compreensão e finalidade. Não faz mal, compenso com uma espécie de faz-de-conta que um dia deixará de existir. Uma certeza louca, tranquilizadora por uma parte e angustiante por outra. O melhor é adiar tais pensamentos.  A senhora não era muito bonita, chamava a atenção por apresentar uma certa frescura que a leitura rápida do processo confirmou, embora já denunciasse uma leve tentativa de amarfanhamento da pe