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"Sons e liberdade"...

Ouço sons. Vêm de todo o lado, da ribeira, das pessoas que passam, de uma muda que fala e ri para o bebé, do sino da torre, que, ritmicamente, quer ainda marcar a vida de quem o ouve, da brisa da tarde, do silêncio da vida e do encanto do esquecimento. Embrulham-se uns nos outros criando novos sons, sons que nunca tinha lido, nem ouvido, sons com algum sentido, sons à procura de outros sons, sons com quem possam falar, tocar e amar. Os sons têm alma e gostam de andar nus, não precisam de se esconder, precisam só de liberdade, e a liberdade aproxima-se deles, curiosa, distraída, e deixa-se agrilhoar. O único momento em que a liberdade sabe o que é ser-se aprisionada. Não se queixa e nem se arrepende, porque só assim sabe e sente o sabor do desejo. Depois, quando o silêncio do sono se acende novamente, volta a correr, livre, sem saber o que fazer...

"Explicar"...

Encontrar explicações não é o mesmo que as inventar. Há uma sede para explicar tudo o que nos envolve e o que somos. A angústia do desconhecido e a ausência de motivos assusta o ser humano. É compreensível, o que não é compreensível, e muito menos aceitável, são as "descobertas" e as invenções que se produzem a torto e a direito como se fossem sinónimos da verdade absoluta. Tudo tem de se encaixar nos modelos criados, nem que seja à força. Algumas são ridículas, outras visivelmente especulativas e muitas são de cariz doutrinário suscetíveis de esconder interesses capazes de adoçar a vida dos mais fracos, dos mais obedientes e aparentemente mais despretensiosos. Há explicações para todos os gostos e feitios, mesmo para os que não se interessam por essas coisas, desde que consigam satisfazer-se no deleite dos seus mais básicos instintos. Há quem não consiga encaixar-se em modelos ou em ideias feitas e há quem opte por as contestar, recriando novos paradigmas ou refugiando-se e

"Fogo"...

Querer descansar é um direito. Não basta querer, é preciso poder. Não tenho falta de tempo, mas necessito de uma certa paz de espírito para desfrutar. Como saborear o descanso se em redor a turbulência da natureza é uma constante? Como sonhar com o descanso se em redor os pesadelos atormentam as pessoas? Como merecer o descanso se em redor o sofrimento não dorme? Como pensar em descanso se em redor a morte vive sem pensar? Como desejar o descanso se em redor a vida não deixa amar? Não quero descansar. Não consigo descansar. Só me apetece sonhar...

"São Frei Gil de Vouzela"...

Hoje aproveitei a tarde para dar mais uma volta pela minha região. Fui até Vouzela. Há muito que não passava por aquele local. Da última vez ainda comi os seus maravilhosos pastéis, agora fiquei-me pela recordação do seu aspeto e de um sabor que ainda perdura. O que sabe bem, nunca se esquece. Passeei e visitei alguns locais, como a bela igreja, a escultural ponte do antigo caminho-de-ferro, que este ano comemora o seu primeiro centenário, o centro histórico, rico e bem conservado, e ainda consegui ir ver a magnífica Torre de Vilharigues. Tinha pano para mangas para escrevinhar a propósito de Vouzela. Confesso que queria arranjar um tema para dissertar hoje à noite, e sabia qual o tema, tinha-o premeditado, só me faltava o pretexto, que era visitar Vouzela. O é que eu hoje queria escrever? Coisa simples e fascinante, algo que dissesse respeito a São Frei Gil de Vouzela, uma das mais enigmáticas e fabulosas figuras beirãs do século XIII, cujas lendas, Eça de Queirós, João Grave e Te

"Milho-rei"

Noutros tempos, nesta época, ocorriam interessantes rituais ligadas à vida e à subsistência das gentes. Um deles tinha a ver com as descamisadas. A azáfama era uma constante. À noite, sob o tremelicar de candeeiros de petróleo, ou desfrutando os olhares da lua, curiosa e cúmplice, os trabalhadores sentavam-se em círculo para descamisar o milho. Uma forma de socialização que, também, permitia certos avanços ou namoricos, mesmo sob os pelos das ventas de algumas mães mais radicais. Sempre ouve algum paralelismo entre o fundamentalismo, seja ele qual for, e o aparecimento de pelos nos cantos dos bigodes de certas mulheres. Outras, mais tolerantes, aceitavam com naturalidade as brincadeiras, que não eram propriamente coisas de brincar, porque dali saíam, muitas vezes, compromissos para a vida inteira. Fosse qual fosse a atitude das vigilantes, nessas noites ocorriam episódios curiosos. Um deles dizia respeito ao milho-rei, quem o encontrasse tinha direito a beijar e abraçar os presentes,

"Falam pouco, mas sabem sorrir"...

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Acabámos de almoçar. - Vamos dar uma volta? - Para onde? - Sei lá, por aí acima, para o norte do distrito, para as terras do demo, por exemplo. - Credo, abrenúncio, fora-cão. Terras do Demónio? Ri-me, estava à espera de uma expressão tão regional como esta. - Sim, são belas terras, onde, segundo Aquilino, "Cristo nunca por lá passou, nem El-Rei". - Vamos! Passei por Vila de Paiva, onde nem cheguei a parar, apesar de ter vasculhado as suas ruelas. - Só pedra. É tudo feito com pedra. Podem cair os telhados, mas as paredes não. Cheguei a Moimenta da Beira, enquadrada naquelas terras bravas em que o granito é rei e senhor. Belas praças, monumentos e casario brasonado rico em rendas de pedra. Pena os atentados ao bom gosto dos nossos antepassados, uma dor de alma. Nada a fazer, parece que se perdeu grande parte do sentido estético das populações, mas ao menos a gente é simpática e atenciosa. São de poucas falas, mas sabem sorrir. Sentámo-nos na esplanada e vasculhei o

"Terra batida"...

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Recordar as pessoas é encontrar o caminho da vida, delas e da nossa. Somos frutos do passado, passado esquecido e raramente lembrado. Somos sementes de frutos do passado, desejosas em transmitir a vida ao futuro, um futuro que se esquece amiúde que tem passado. Ai do futuro quando se esquece do passado, é um futuro estéril, incapaz de dar vida à vida porque se esqueceu de quem lhe deu a vida.  A casa, que mais parece um castro neolítico ou um curral dos nossos dias, foi, em tempos, uma habitação. Ali viveram e cresceram, atrás de uma porta, seres humanos, pelitrapos de corpo e de alma, uma porta chorosa por onde meia dúzia de raios solares conseguiam entrar, por breves momentos na parte da manhã, mas que rapidamente fugiam inquietos com o interior. Mais de um século depois ainda permanece no mesmo local a testemunhar um passado de dor, uma chaga viva de terra batida, a querer relembrar que nos mais estranhos sítios é possível nascer sementes, sementes que viajam ao sabor do des