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"Poesia e figos"...

Recordo que num dia de sol, deveria estar em férias, ao entrar na sala de comer da minha avó, onde estavam guardados tabuleiros com figos secos, sacos de feijão de diferentes cores, e duas ou três abóboras à espera de serem sacrificadas, vi, ao canto, um livro de capa esverdeada com aspeto de ter sido queimado. Aproximei-me e li que era da autoria de Luís de Camões. Já sabia que tinha escrito os Lusíadas. Pensei que seria o tal famoso livro de que ouvia falar com tanto entusiasmo. Senti uma estranha curiosidade em ler o livro, que deveria ser muito belo. Mas o título não era os Lusíadas. Via-se mal, muito mal, porque tinha a capa muito queimada, nalguns sítios mesmo negra, como se o tivessem retirado do lume. Abri-o e vi que tinha muitos versos, quadras e sonetos. Eu já sabia o que era um soneto, o professor de português já tinha falado sobre isso, e ouvia com frequência a expressão "é pior a emenda do que o soneto". Aprendi o significado embora sem perceber muito bem o que

"Tempestade"...

Adoro as montanhas. Adoro ver as mudanças de humor, calma, suave umas vezes, agreste e bruta outras. Adoro ouvir as montanhas, adoro ouvir os seus sons, gritos de dor, urros de raiva, murmúrios de ternura, cantares de alegria e mudez de espanto. Adoro ver as montanhas. Têm vida, estão em constante movimento e são como os humanos, imprevisíveis, amorosos, violentos. Adoro as montanhas. Hoje, a montanha assustou-me. Chorou de raiva e gritou de dor. Os meus ouvidos tremiam sempre que a ouvia. As nuvens esbarravam nas encostas. Fugiam com medo dos violentos ruídos. Hoje, a montanha encantou-me. Vi nuvens atarantadas sem saberem por onde ir. Vi pássaros suspensos no ar lutando pateticamente contra o vento. Hoje, a montanha seduziu-me. Se pudesse, ficava ali até desaparecer o seu mau humor e ver novamente a beleza da tranquilidade das folhas douradas, dos verdes da vida e o encanto do vermelho de bagas. Hoje, a montanha acalmou-me. Regressei. Assim que cheguei pus-me a saborear as emoções

"Desenho"...

Há tempos, uma colega mostrou-me a fotografia de um quadro que retratava a igreja de uma aldeia. Obra de um parente seu. As cores eram vivas, quentes, cheias de alegria, como se o sol estivesse em todo o lugar, na torre, na cruz, no sino, nas paredes, nos muros, nas árvores envolventes, num casario indefinido e em carreiros tortuosos. Um quadro em que a realidade se tinha transformado numa visão que só um artista consegue colher. Neste caso, o quadro era quente, quente no tempo, quente na fé, quente no calor humano, quente para os não crentes, apenas quente, cheio de todos os tipos de calor. Nunca mais o esqueci. É uma daquelas obras que fica registada para sempre. Um dia cheguei a passar pela localidade em questão. Vi a igreja, as paredes, os muros, o arvoredo, o velho casario e os tortuosos carreiros. Vi. Gostei. No entanto, gosto mais da lembrança do quadro. Muito mais, porque apesar de ter feito a visita num dia de calor, procurei os outros calores, mas não os encontrei, apenas me

"Purgatório"...

Sinto-me numa espécie de purgatório, um local que sempre imaginei ser confuso, indefinido, triste, doloroso, cinzento, uma espécie de corredor da morte à espera da aplicação da sentença ou de uma inesperada mas pouco provável absolvição. Em pequeno ouvia aterrorizado os três patamares do outro mundo, a promessa do inferno era mais do que certa. O cinismo, o sorriso amarelo e frio recaíam sobre mim de forma violenta. Tremia sempre que o ouvia falar para onde iria caso não cumprisse com a ditadura e a norma da religião. Ir para o céu estava fora de questão, tamanhas eram as exigências e condições. Como não era destituído de razão não me foi difícil perceber que nunca lá poderia entrar. Restava o purgatório, um espaço confuso, indefinido, triste, doloroso e cinzento, no qual, na melhor das hipóteses teria de ficar quase uma eternidade a não ser que rezassem por mim ou metessem cunhas e mais cunhas para ir para cima. Nunca acreditei que tivesse tal ajuda para alcançar o céu. Vendo como

"A tela"...

O pintor pegou no pincel, deitou-o ligeiramente de lado sobre o montículo da cor, rodopiou-o com gentileza, embebendo-o de emoção, e começou a beijar a tela. A tela, pálida de ansiedade e ávida de vida, estremeceu ao primeiro contacto. Tentou perceber de onde vinha o calor da carícia. Uma breve carícia que desapareceu imediatamente, deixando-lhe uma sensação amarga e uma delicada dor a querer rasgar-lhe o peito. Não demorou muito esta inquietação, porque de seguida começou a sentir novas carícias, que lhe iam aliviando as dores e a ansiedade, enchendo-a de emoções, despertando-lhe prazeres nunca sentidos e embriagando-a de sensações voluptuosas. Fechou os olhos, cheia de curiosidade, tentando adivinhar quem lhe dava vida, e esperançosa em ter uma alma. Sempre desejou ter uma alma. Ouviu vezes sem conta conversas sobre a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e sobre ter alma. Sonhava em receber no seu peito a arte, a beleza, a emoção, o sentimento e, sobretudo, ter alma. Quando olhava

"Meio-dia"...

A manhã passou depressa e o dia começou a enriquecer-se sem ter necessidade de fazer qualquer esforço. Ouço, comento, e depois deixo correr as almas dos meus interlocutores como se fossem bolas coloridas nas mãos de crianças. Mas não são crianças, longe disso, às tantas já têm dificuldade em recordar esses momentos, porque as doenças, os desencantos e as vicissitudes da vida, espelhados em olhos tristes e nos corpos doloridos, começam a fazer das suas. Sinto que têm vontade de voltarem a ser crianças. Sorrio. Empurro-as, e elas deixam, não se importam, até me agradecem. Contam tudo, falam de tudo, desnudam os seus pensamentos, dúvidas, temores e incertezas, quase que se esquecem das dores e dos tormentos do corpo. Às vezes esquecem-se mesmo. Reparo que têm necessidade de alguém que os possa ouvir, que os deixe falar, lamentar e purgar muita coisa que lhes vai na alma. Eu ouço-os. Não me canso, pelo contrário, fico com a sensação de que descanso. Os dias vão passando, e eu acabo por ir

"Novo dia"...

Começa um novo dia, um dia que vai gerar histórias, um dia que me vai surpreender com palavras, gestos, angústias, alegrias, tristezas, dúvidas, um pouco de chuva, com toda a certeza, e com algum cansaço que, a esta hora, hora em que começa o novo dia, já se faz sentir. Cansaço do corpo? Cansaço da alma? Cansaço da vida? Cansaço das desilusões? Talvez, um cansaço estranho e mais estranho fica no começo de um novo dia. Todos os dias têm um começo, mas há alguns que são a mera continuação ou uma péssima reprodução de outros que ficam na memória pelo desencanto. Há dias que começam com uma sensação de cansaço. Há dias que começam com ar fresco, frescura que não acalma, não adoça e nem embeleza o novo dia. Há dias, em que o começo do dia é velho, feio, pesado como muitos outros dias. Dia sem interesse, dia sem valor, um dia para passar como tantos outros dias. Talvez não, talvez não seja assim, tão mau, tão cinzento, tão desesperançado. Quem sabe se não terei arte e engenho para transforma