Mensagens

"Castrati"

Li uma notícia que me divertiu e que parece ter incomodado as mais altas individualidades do país. No decurso da abertura do Ano Judicial o bastonário da Ordem dos Advogados terminou a sua intervenção com o famoso poema de Ary dos Santos, "Poeta castrado, não!", trocando "poeta" por "advogado". Imagino o efeito produzido naquela sala onde nos é dado a contemplar o formalismo na sua pureza, pelo menos é essa a minha perceção.  Estou convencido de que ficará nos anais da justiça portuguesa, pela forma e pelo conteúdo das suas afirmações. Não me pronuncio sobre as suas intervenções, que começam a ser previsíveis em termos de provocação e frontalidade. É o seu estilo, cultiva-o, é facilmente compreendido e consegue passar as mensagens com muita facilidade, uma verdadeira arte de comunicar. Podemos ou não concordar com ele, mas há algo que não se lhe pode negar, revela sinceridade e espontaneidade, e tem arcaboiço mais do que suficiente para suportar quaisq

Cães

Lembro-me de algumas histórias ocorridas com cães, umas agradáveis e outras nem por isso. Em pequeno fugia como o diabo da cruz quando os via. Assustavam-me muito quando ladravam e quando me fitavam calados. No primeiro caso interpretava como um sinal de hostilidade e no segundo como uma ameaça iminente de ser atacado. Fugia. Sabe-se lá o que é que estariam a pensar de mim. Para comprovar as minhas preocupações, um cãozito rafeiro, Piloto de seu nome, lembrou-se um dia, à calada, de ferrar a sua bocarra no meu traseiro. Estava a acenar, no final de uma tarde de verão, ao comboio rápido das sete. Sacana. Doeu que se fartou e, depois, o mercurocromo fez o resto. Dois dias de rabo alçado. Se tinha medo com mais medo fiquei. Mais tarde, o Pinóquio, quem sabe se a reencarnação do anterior, nunca me chateou, nunca me ladrou, mas era um animal esquisito, sofria de satiríase à enésima potência. Chegava a desaparecer dias seguidos. Quando perguntava por ele ao dono, respondia-me, "foi às

Dois sítios

Há sítios que obrigam a encontrar-nos, encantam, seduzem e tranquilizam. Não são muitos, mas existem. É preciso procurá-los ou deixar que nos procurem. Opto pelos últimos.  Dois momentos despertados pelo trabalho, dois locais distintos, dois pontos diferentes, duas fontes de emoções, duas atmosferas de reflexões, dois impulsos da alma e duas explosões de escrita. Transcrevo-os. "Estou no meu sítio. Encontrei-o. Sinto-me bem. Quem diria que que num espaço destes pudesse encontrar-me também. Olho em redor e não há frio nem calor, nem sombra de dor. Olho em redor e sinto calor, mesmo num dia frio. Que estranha sensação. Que deliciosa sensação. Desde cedinho que tudo fiz para estar aqui e dispor o pouco tempo que iria receber, aumentei-o, dilatei-o e transformei-o no meu tempo, tempo de tranquilidade, tempo de paz, tempo de saúde, tempo que não quero que se mova, que não ande, que pare, se possível de vez, porque eu sei que há de chegar a minha vez.  Encontrei o meu espa

"Fugir à justiça"...

Morreu a freira espanhola acusada de ter roubado filhos a mulheres à nascença distribuindo-os, ou "vendendo-os", a famílias desejosas de satisfazer as suas libidos maternais. Um escândalo, uma verdadeira iniquidade, que pôs muitas mulheres na loucura quando souberam ou se aperceberam da maldade que lhes tinham feito. No caso vertente o problema é agravado pela circunstância de estar em causa uma religiosa, alguém que pela natureza e particularidade da condição abraçada consegue exponenciar ao infinito a maldade humana encapotada pela sombra da capa de serva de deus e do amor ao próximo. A denúncia ou qualquer comentário a propósito deste caso, tratando-se de uma irmã da caridade, é capaz de ser entendida por alguns proselitistas como um ataque à religião católica. Uma atitude que considero uma obscenidade, já que o que está em causa não é a religião, ou os seus princípios, mas quem os adultera e abusa da sua sombra. Aqui é que está o cerne do problema, um atentado aos direi

Recriação

A evolução da espécie humana é muito aliciante, em todos os aspetos, cativando mesmo os não especialistas ao quererem saber mais sobre o seu passado.  Quando se esbarra em enigmas somos de imediato confrontados com a elaboração de teorias e vários tipos de especulações. Criam-se deste modo explicações deliciosas, que, apesar de nem sempre corresponderem à verdade, enchem os sonhos míticos de uma espécie que até hoje ainda não provou a razão da sua existência. Somos um artefacto, uma singularidade sem pés nem cabeça, uma espécie que deixa muito a desejar e que, pelo andar da carruagem, nunca irá a lugar nenhum. Nem mesmo certas iniciativas, algumas conquistas e interessantes manifestações artísticas e culturais são capazes de manter viva a esperança num futuro melhor, porque somos submergidos nas ondas da tortura, do sofrimento, da iniquidade e da intolerância.  Observo com algum cuidado a emergência de explosões provocadoras por parte de alguns pensadores. Foi o caso de um cient

Quando morre um amigo...

Foi um fim de semana devastador, chuva, vento, tempestade, destruição, falta de luz, alteração dos hábitos, regresso a um passado não lembrado, uma sensação diferente, um esboço de anormalidade que nos faz despertar para a realidade da fragilidade humana, dependente de tudo e de todos. Uma lição de humildade que em breve será esquecida. Nem os resquícios de árvores tombadas, nem o rugir dos cursos de água, nem as pedras roladas das encostas são capazes de mudar o que quer que seja. O mundo gira a uma velocidade louca em que o esquecimento é rei e senhor. O tempo, meio escalavrado, serve para isso mesmo, para nos relembrar a nossa frágil e fatal perenidade. Assusta, e muito, mas ao mesmo tempo recoloca-nos num estado de letargia, à espera de alcançar um qualquer utópico nirvana, como se tivéssemos direito à felicidade. E não temos? Não sei, nem me interessa, o que importa é viver na ilusão de que sim. Foi tudo alterado. Ainda bem, assim, a rotina patológica do fim

Chapéus-de-chuva

Fim de tarde, chuvosa, irritante, deprimente, fria de sentimentos e despovoada de gente. Saio pela porta principal e sou aspergido por gotas amaldiçoadas de um tempo de homens sem tempo, de um povo descoroçoado, de almas sem esperança. O avolumar das notícias e dos acontecimentos são verdadeiras e destruidoras tempestades para quem quer viver e não sabe como, seres que nasceram na esperança de um futuro melhor, um futuro que se transformou no presente repleto de ouro da angústia e de prata do desespero, seres que sofrem na carne e na alma fomes sem sentido. É desesperante chegar a um ponto da existência sem que se consiga descortinar caminhos ou vielas para a vida. Ei-los nas faculdades. Ei-los a prepararem-se para o futuro, mas qual futuro? O desemprego decerto, antes de tudo, e, depois, uma ou outra ocupação temporária, quase sempre sujeitos a regras que envergonham os tempos idos da escravatura. Sempre ganham em estudar, dizem. Sim, ganham conhecimentos que