Mensagens

Dionísio

Por causa de um Dionísio lembrei-me de um outro, mais simpático e mais humano. Lembrei-me de um texto que escrevi em  23 de abril de 2014 Dionísio Gosto de revisitar o passado apenas para saborear sentimentos, paixões, devoções e emoções. Não preciso de muito e nem é muito complicado. É tão simples. Uma pequena ideia, uma imagem, um som, um aroma, uma lembrança e tudo se transforma, e eu embebedo-me como se fosse o Dionísio da Quinta do Rio. O Dionísio existiu, foi um barbeiro, cortou-me muitas vezes o cabelo, e brincava com os piolhos que dormiam no meio dos cabelos que sabia cortar à maneira. Nunca se preocupou com eles e as lêndeas deveriam ser fonte de inspiração. Piolhos para o Dionísio eram a coisa mais natural do mundo, tão natural como beber um copo de três a meio da manhã. O Dionísio não conseguia mexer bem o pescoço e com o tempo ficou tão rígido que sempre que queria olhar tinha de virar o corpo. Cortava o cabelo, bebia o seu tinto em tesouradas constantes ao lo

Humilhação

Levantei-me cedo, como é habitual. Descansei graças à química moderna. Não é habitual usar certas substâncias para esse efeito. Entendi que tinha de o fazer para obter algum "descanso" a fim de suportar melhor o tormento ou a paz de um novo dia. Tormento ou paz? Sim, porque viver um dia, seja ele qual for, não passa de um jogo, de uma cautela, algo imprevisível que pode fazer a sua entrada em cena com alegria, o que é raro, talvez não passe de uma miserável terminação, ou, então, com o desprezo ou indiferença própria da natureza, que se entende perfeitamente, para não falar e estremecer ao som da violência humana nas múltiplas roupagens com que gosta de vestir-se. É este último aspeto que me causa sofrimento e perplexidade. Quando menos se espera, aí estão, no seu esplendor patético e humilhante a produção de atividades humanas que abomino e não consigo aceitar. Há leis que os protejem, mas não passam de seres que vivem sem saber a razão do seu viver e a forma de ser e de est

Nicolas

"A medicina é a minha vida, os meus pacientes são a minha vida e sinto a falta deles". Esta frase foi pronunciada por um médico francês no decurso do seu julgamento. Nicolas Bonnemaison, de 54 anos, foi acusado de eutanásia. Foi decidido, pela equipa médica, interromper a terapêutica a uma mulher de 86 anos, em coma irreversível, após um acidente vascular cerebral. Até aqui nada de especial, pelo menos nos dias atuais, em que é possível, felizmente, não continuar com terapêuticas encarniçadas e despropositadas. O direito a morrer com dignidade é uma realidade indiscutível em alguns países. O progresso faz-se, mesmo com alguma lentidão, como é o caso da medicina. Mexer com a vida é o menos, o pior é quando se mexe com a morte. Até parece que esta última se sobrepõe à primeira, pelo menos para certos setores da sociedade. Mas Nicolas foi mais longe, na perspetiva da lei do seu país, “injetou na paciente um sedativo utilizado em fases de agonia”. Para o tribunal esta atitude pre

Entregou-se a Deus!

Não sou ministro. Também não tenho pretensões a tal, e mesmo que por uma causalidade qualquer, ditada por um destino embriagado, nunca aceitaria tal distinção. Há gente muito mais qualificada do que eu, e ainda bem. Não há nada melhor do que reconhecer as suas insuficiências e limitações. Também há quem diga que nunca devemos dizer, “que desta água não beberei”. Pois, mas eu prefiro, apesar de tudo, beber uma boa bebida temperada pelo espírito do álcool fermentado numa boa e sensual pipa de vinho. É muito mais saudável. Esta curta e efémera reflexão, ditada com a sobriedade exigida por um escrito que se preze, nasceu dos comentários de um ministro recém-empossado. Ontem, domingo, ocorreu uma tragédia para as bandas do reino dos Algarves. Algo impensável. Não é altura de traçar comentários sobre os desvarios humanos que brincam com a natureza. Neste caso, a água exige os seus terrenos, os seus caminhos, os seus riachos, o seu leito. Podem passar muitos anos sem haver nada de especial,

Relógio

 Ouço o cantar do velho relógio no corredor. Carunchoso e ronceiro não obedece como deve ser à medição do tempo. Sempre foi assim. Quando fica triste, amua e para. Quando está feliz, dança e sonha. É ele que fabrica o seu próprio tempo, um tempo à espera do fim. Ouviu-me. Badalou numa voz rouca doze badaladas, como que a despachar, mas, primeiro, gemeu um pouco. Agora vou dormir embalado no seu cantar. Lá fora, a noite, num silêncio sem luar, tem inveja do meu sonhar.

Cores de outono

Não suporto os dias pequenos. O anoitecer entristece-me, embora consiga enganar-me durante uns adoráveis minutos, em que o ouro do outono se projeta nas montanhas longínquas dando a impressão de serem a entrada do paraíso. Cores deslumbrantes que despertam emoções. Amarelos pungentes, vermelhos delicados e azuis envergonhados, conseguem criar a ilusão de ter descoberto a mina de ouro da vida. Deixo-me ir atrás dessas cores vadias até ser despertado pelo negro precoce do dia. Respiro profundamente a saudade perdida. Sinto um ardor misterioso, frio, irrequieto, desejoso de encontrar a fonte de calor. Não a lareira, mas apenas as lembranças que dormem em silêncio nas campas da morte.

Arte

Os dias são cada vez mais intensos e preocupantes. O cansaço instala-se e a indignação contra o braço armado de qualquer governo, a impiedosa e bandoleira finanças, faz o resto. A iniquidade social em toda a sua força. Começo a não ter paciência para suportar a ditadura dos malandros deste país. Ainda há quem se queixe dos "bandidos da Beira" que, no século dezanove, faziam das suas pela minha região. Nada que que se compare com os mascarados  das finanças de hoje. Chiça! É demais. O cansaço físico instala-se com a maior naturalidade, aproveita-se da corrida da idade, enquanto se encosta ao cansaço moral despertado por uma sociedade injusta, fria e corrupta. Decidi não fazer nada neste serão, a não ser ver um pouco do circo político na televisão e descansar para poder resistir a mais um amanhã. De qualquer modo, ainda consegui passar os olhos pelas notícias do dia. Diverti-me com uma, em que a empregada se encarregou de limpar um espaço que considerou ser lixo. Não era! V