Mensagens

Um dia

O dia foi longo. Trabalhei como é meu dever e obrigação. O tempo faz sentir que a ilusão da vida é uma realidade, pesada e fatigante. Fiz de conta que não me apercebi de tal coisa. Fingi. Começa a ser costume. Fingir não faz mal, sobretudo quando consigo trabalhar e respirar com denodo e amor. Afasto tudo, as más ideias, as frustrações, as raivas, os pesares e as misérias da vida. Ouvi histórias, desbravei rostos, penetrei, com delicadeza, em almas desejosas de serem compreendidas e amadas, fiz o que mais me agrada, dançar e respeitar seres desesperados e ávidos de franqueza. Apreciam imenso o cantar desconhecido de um ser que os respeita, que sabe ouvir, que gosta de dar, nem que seja por uns breves segundos, um sorriso simples e natural, porque o melhor da vida é abarcar o seu semelhante, desconhecido, alvoraçado num mundo perdido. Um breve momento que consegue dar sentido ao que mais nos perturba e inquieta, a razão de ser da vida. Amo particularmente estes momentos, distantes de to

Montanha

Fui atrás do sol, convicto de que encontraria paz, beleza e silêncio. Penetrei no ventre da serra despovoada, estranha, calada, indiferente à minha passagem, cheia de segredos, sem lágrimas, sem gritos, sossegada e, por que não dizer, desconfiada. Viajei com a angústia dos meus pensamentos. Vivem comigo, massacram-me a qualquer momento e obrigam-me a pensar no futuro com os seus tenebrosos acenos. Tentei libertar-me, mas não foi fácil. O belo sol não conseguiu apagar o mal-estar que sentia. Revivi velhas paisagens, passei por localidades cada vez mais vazias, cruzei-me com algumas pessoas, idosas, sem futuro, esquecidas do passado, com almas geladas à procura do calor de uma tarde de outono, talvez com esperança de não sentir o sofrer prometido pelo advir. Vi o que já vi, senti o que já senti e ouvi o que queria ouvir, o mais belo silêncio da montanha adormecida sob um sol quente e indiferente à vida da pobre gente. Foi o que quis sentir. À medida que me ia afastando comecei a desfruta

"Via Crucis"

Ao final da tarde, após horas de aulas, recebi um telefonema de uma senhora. Com uma voz muito delicada, própria da sua formação, perguntou se ainda se lembrava dela. - Claro que me recordo. Depois, explicou as razões por nunca mais ter aparecido, um acidente incapacitou-a durante longo período. Perguntei o que tinha acontecido. Ouvi atentamente e fiquei a saber alguns pormenores. Congratulei-me com a evolução favorável. Em seguida, explicou-me que queria ter uma pequena conversa comigo, e se poderia ser no dia seguinte. - Claro que pode. - Então, amanhã, irei falar com o senhor doutor. Mas já agora quero adiantar que vou levar o tal quadro. Aqui fiquei um pouco perplexo. São tantas as conversas, que começo a não conseguir recordar com detalhe parte delas. Deixei sair dois ou três sons de perplexidade e de admiração, querendo dizer que ainda me recordava da conversa tida há muito mais de um ano. Não foi apenas um gesto de cortesia, porque tive a sensação de termos falado sobre quadros

País sem sentido

A sensação de viver neste país é muito dolorosa. Recordo que em criança, tempos complicados e muito duros, se transmitia a ideia de nobreza e de esperança na felicidade que iria ocorrer mais cedo ou mais tarde. Perfeita ilusão. O país não consegue, por mais que tente, desbravar as matas do descalabro, da corrupção e da falsidade sem limites, em que o cidadão não passa de um peão que pode ser eliminado a qualquer momento a bem da nação. Dói viver neste país. Abrem-se profundas chagas na alma do vulgar cidadão. Não há nada que as cure. A sociedade fere qualquer um com a impunidade típica de um deus violento, autocrático e miserável que precisa deste tipo de ação para se alimentar. A sociedade apresenta-se como se fosse um leproso, disforme, triste, vazio e perdido sem a possibilidade de renascer com alegria, amor, justiça e respeito por si própria. Dói viver neste país. Nem a história, nem a fantasia, nem a nostalgia ou a esperança de um novo dia, conseguem insuflar qualquer sentido

Libertem Deus!

Há dias, chocou-me a notícia segundo a qual um poeta palestiniano, preso há cerca de dois anos, foi condenado à morte por "insulto a Deus". Arrepiei-me com esta atitude. Não entendo que se mate em nome de Deus. Um poeta encerra em si a poesia do verdadeiro Deus. Sua graça? Ashraf Fayadh. Hoje, li que um físico iraniano foi suspenso por ter "voz demasiado aguda", como se isso fosse sinónimo de feminilidade e, consequentemente, motivo para o retirar do ensino. Ao ler a história verifico que a comissão cultural o questionou sobre que "lugar ocupa Deus nas suas aulas"? A resposta, científica, deve ter-lhe saído de chofre, "a universidade paga-me para dar aulas e, como profissional da matéria, só falo de Física". E faz muito bem, pensei eu. Sua graça? Qasem Exirifard. Não foi condenado à morte, mas não pode ensinar e está revoltado. No primeiro caso temos um poeta, no segundo um físico. Vítimas da "presença de um Deus". Mas que raio de Deu

Liberdade

Olhar para a face de uma pessoa permite indagar em silêncio o que corre numa alma atormentada, e quando os olhos nos fixam podemos entrar dentro dela e sentir a dor e o desespero. Baixo os olhos perante este despir, por respeito e por medo. Inquieta-me conhecer o sofrimento dos outros, sabendo que muito pouco ou nada possa fazer ou oferecer. Tudo decorreu dentro das normas, embora sentisse o peso de uma enorme dor. O silêncio começou a perturbar. Perguntei-lhe pela saúde dos familiares. Confessou que tinha perdido a mãe há poucos dias. Bate certo, pensei. Sofre. Perguntei-lhe que idade tinha a mãe. Sessenta anos. - Qual foi a causa? Explicou-me em breves palavras. Não comentei. Passei para as perguntas subsequentes e continuei na minha tarefa. Ao terminar, começou a descrever as suas vivências e emoções. Larguei tudo e deixei que se expressasse livremente. Fiquei muito ansioso e, ao mesmo tempo, perturbado. De uma forma transparente, limpa, quase que diria literária, expôs tantas coi

Escultura

Dias pequenos, sol escondido, nuvens tristes e povoações despidas causam-me estranheza. Obrigam-me a procurar algo de grande, colorido, quente e alegre. Onde encontrar tamanho bálsamo num domingo à tarde? Andei sem destino, percorrendo velhos caminhos. Conheço bem demais aqueles locais. Posso estar longo tempo sem passar por eles, mas reconheço à distância pedras, árvores, curvas, ruínas, casas, alminhas, pelourinhos, cruzeiros, antas, fontes, lajes, muros, praças, montras, tascas, ruas, travessas, pontes, rios, ribeiras, serranias, igrejas, capelas, e, até, gentes que, na sua tristeza e silêncio, se sentam debaixo de velhas árvores nuas ou chorosas com a vida que se escapa através da queda de folhas amorosas. Passo por todos esses lugares conhecidos e revisitados vezes sem conta à procura de algo de grande, colorido, quente e alegre. Nada. Andei, comentei, recordei, dissertei e desejei que me fosse propiciado num domingo triste um motivo qualquer que me ajudasse a esquecer a melancol