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"Pulguita"...

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A semana não foi simpática. Um pouco dura para quem quer viver em paz. Não é fácil viver e muito menos sonhar. Quase impossível. Salvam-se alguns momentos de silêncio ou de reflexão. Momentos que não sendo doces sempre vão dando algum alento e esperança até surgir a fúria do tempo. Momento? Sim. O momento é o filho perdido do tempo. Cansado de peregrinar no céu do tormento e nas águas do lamento, surge sem avisar como a querer adormecer no meio da mais estranha fantasia, a humana alegria que, subitamente, cai de podre da árvore do encantamento. Tudo acontece sem previsão, ou talvez não. Mais vale acreditar numa efémera ilusão do que na realidade fria e crua de quem não sabe o valor de uma oração. Tudo gira sem explicação. Tudo morre como resposta à mais singela inspiração. Tudo finge sem se preocupar com a razão. Não interessa viver. O que importa é esquecer e mergulhar no meio da mais singela emoção. Só as coisas simples são capazes de ajudar a viver e ultrapassar por breves instant

São João

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Consigo recordar com facilidade algumas histórias e historietas desta noite. Não sei qual a que devo escolher se a do meu tio Manel, a quem ajudei a construir um balão durante a tarde em casa da minha avó, e que à noite, na ponte da praça, ardeu a pouco mais de três metros do solo – chorei ranho e baba -, se os saltos que um dia dei sobre uma fogueira em que tropecei e me chamusquei. Nada de especial.  A noite para as minhas bandas está “solenemente” silenciosa. Consigo ouvir ao longe um latido ou outro, talvez algum cão saudoso do São João. Fui a uma vitrine e tirei o único São João que anda por aqui. Gosto deste São João. Tosco, foi feito por um pintor de construção civil que conheci e cheguei a tratar há muitos anos. Gostava de fazer santos. Este foi-me oferecido pelos familiares. Tenho muito apreço e admiração pelos santeiros. Este São João tem algo de especial. Deve ter sido feito com muito amor e devoção. Foi o “Borrabotas” que o executou. Os apodos na minha terra não são

Repouse em paz...

Não consigo perceber a expressão “repouse em paz”. Será que a morte é a fonte preferida de repouso? Será que só após a morte é possível encontrar a paz? Mas que raio de ideia é esta, desejar a quem não nos ouve um “repouse em paz”? Não seria preferível dizer, “Recordem-no em paz”? Recordar é muito melhor do que sepultar quem quer que seja através do desejo de "paz”. Paz! Que raio de palavra escolhida para quem morre. Não lhe deram paz em vida, mas desejam-lhe depois da morte. Estranha forma de comportamento. Uma atitude arrogante, como quem diz, “Nós, os vivos, temos o condão de desejar paz aos mortos”! Até parece que nunca irão morrer. Pensem bem. Deixem-se disso. Desejar paz a quem morreu é porque não se soube dar paz a quem viveu. Eu nunca desejei paz a quem tenha morrido, porque para mim não faz nenhum sentido. Prefiro recordá-los em paz, sabendo que para muitos era o que mais desejaram em vida. Não tendo tido, então, o melhor, é esquecer em paz...

Aves...

Quatro e meia da madrugada. Acordei ao cantar de um pássaro. Cantava muito afinado. Parecia um ator de ópera. Um canto complexo, alegre, às vezes trinava. Pus-me a ouvi-lo com atenção. O sono desapareceu. Uma melodia muito estranha. Não é a primeira vez que os ouço. Há um que no final de fevereiro aparece com a sua conhecida cantadoria. Quando ouço, ainda as andorinhas não chegaram, descubro o primeiro sinal da primavera. Todos os anos é a mesma coisa. Por vezes tarda e fico preocupado. Julgo que terá desaparecido, mas não. O seu cantar tranquiliza-me e abre as portas de mais um ano. O começo do meu ano é marcado pelo seu cantar. Mas hoje o cantar era diferente, muito diferente e excecionalmente belo. Tão belo que nunca tinha ouvido. Durante algum tempo, mais de uma hora e um quarto, nunca se calou e nem se cansou, bem pelo contrário. Pareceu-me que emanava felicidade. Subitamente calou-se, talvez em respeito ao momento ou ao aparecimento do primeiro raio do dia, quando a deusa Aurora

Milagre...

É duro ter de ver e ouvir os acontecimentos que nos afligem. Ninguém está preparado. As tragédias são a forma da natureza e dos seres humanos se abraçarem no mais estranho amplexo, dor e morte. Tudo se acasala, mesmo que não consigamos ver ou prever. As causas escapam-se entre os dedos e os medos empertigam-se com violência no meio de todos. Tudo é passível de acontecer, e quando não acontece invoca-se o milagre. A palavra mais estranha e dolorosa que eu conheço. Estranha porque não a entendo, dolorosa porque discrimina sem explicar a razão. Há os que acreditam em milagres. Eu não. Não só não acredito, como abomino qualquer forma de "intervenção" divina que se baseia em critérios que não podem ser escrutinados, dando a entender que existe uma forma de corrupção religiosa. Estranho, associar milagre a corrupção. Sim, é muito estranho, tão estranho como associar morte e dor com as desculpas esfarrapadas que escondem negligência e incompetência.  Um país eternamente adiado à

"VOU DAR UMA VOLTA"...

Amanhã vou dar uma volta. Pode ser que regresse, mas também posso não voltar. Não é propriamente uma viagem, mas uma ida até aos confins do meu interior. O que é que vou fazer, revirar a alma e procurar no sótão atulhado, e cheio de teias de aranhas, motivos ou objetos que alimentem a inspiração. Não é difícil. O problema é o pó do tempo. Mas com o pó sei eu lidar, tenho mais dificuldade com as pessoas. Eu compreendo-as. Nem invoco as razões. Faz parte   da minha natureza e de muitos anos a perscrutar corpos e almas. Custa-me imenso provocar dor, tristeza, raiva ou indignação. Neste mundo de comunicação intensiva, a falta de som, de cor, de calor, de expressão, cerce e até distorce os objetivos das palavras. Eu sei que fazemos parte do verbo. O problema é a conjugação com o sentir e a visão do próximo. Também me insurjo e até sou capaz de sentir raiva e indignação, mas tempero-as e acabo, muitas vezes, por engolir em seco, até porque este tipo de reação gera reação como se fosse

"FIM"...

Uma segunda-feira fresca, sem sol e sem movimento. Caem umas gotas de água como se alguém estivesse a tecer uma delicada cortina. Aguardo a hora da aula. É a ultima que vou dar. Simples. Provavelmente não vão estar mais do que meia dúzia de alunos. O habitual. Tenho a aula, nova, preparada há muito, mas irei comentar apenas a parte inicial. Não a vou terminar, eu é que termino. Estou sozinho. Não vou ter companhia e muito menos a festa do costume a enobrecer e a premiar quem lecionou durante tantos anos, mais de quarenta. Não esperei pela idade da jubilação. Saio agora, no momento certo, durante uma aula normal sem mais nada. Acompanho-me a mim próprio além das memórias de uma vida. Não sinto tristeza, não sinto angústia, não sinto qualquer espécie de alegria, apenas vou viver mais um dia. Vou terminar a minha carreira académica como se a morte fosse a verdadeira razão da vida, sair de cena. Lá fora tudo vai continuar na sua estranha e mais do que previsível rotina. Eu não fujo,