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"Poesia e figos"...

Recordo que num dia de sol, deveria estar em férias, ao entrar na sala de comer da minha avó, onde estavam guardados tabuleiros com figos secos, sacos de feijão de diferentes cores, e duas ou três abóboras à espera de serem sacrificadas, vi, ao canto, um livro de capa esverdeada com aspeto de ter sido queimado. Aproximei-me e li que era da autoria de Luís de Camões. Já sabia que tinha escrito os Lusíadas. Pensei que seria o tal famoso livro de que ouvia falar com tanto entusiasmo. Senti uma estranha curiosidade em ler o livro, que deveria ser muito belo. Mas o título não era os Lusíadas. Via-se mal, muito mal, porque tinha a capa muito queimada, nalguns sítios mesmo negra, como se o tivessem retirado do lume. Abri-o e vi que tinha muitos versos, quadras e sonetos. Eu já sabia o que era um soneto, o professor de português já tinha falado sobre isso, e ouvia com frequência a expressão "é pior a emenda do que o soneto". Aprendi o significado embora sem perceber muito bem o que é que o soneto tinha a ver com a emenda! Sentei-me no banco de pedra junto à janela, para aproveitar a luz da tarde, e, num ambiente sossegado, apenas interrompido pelo cacarejar das galinhas, algumas até deviam ter acabado de por ovo, pus-me a ler. Àquela hora, os meus companheiros de brincadeira deveriam estar a dizer das boas pela minha falta ao jogo no Rossio. Comecei a ler os sonetos, procurando o segredo do ditado que ouvia a torto e a direito, mas, depressa, deixei de procurar e embebedei-me com a poesia que ia lendo, ouvindo-me mentalmente e até oralmente. Percebia muita coisa, e quando não percebia passava à frente, lendo os versos cheios de uma estranha sonoridade que me provocavam uma sensação agradável, muito agradável, muito mais agradável do que os figos secos que ia retirando do velho tabuleiro. O tempo passou, a luz do dia arrefeceu, e a maldita lâmpada da sala de comer, que não alumiava quase nada, apenas fazia sombra, assustou-me mais uma vez com o seu amarelo doentio. Levantei-me, subi para o quarto e levei o livro de capa verde, enegrecido, queimado, pouco estimado, e que se transformou no meu culto adorado. Escondi-o. Tive medo que voltasse a ser queimado, e que os lindos versos, que li pela primeira vez, fossem apagados.
No dia seguinte perguntaram-me se tinha visto um livro com uma capa verde e negra. Já sabia mentir. Prontamente respondi que sim, que tinha visto um livro negro, sujo, queimado, mas nem lhe toquei, tive nojo de lhe mexer. Convenci. Quando vi que tinha convencido, perguntei quem tinha sido o maluco que retirou o livro da lareira. - Da lareira? - Sim. Não estava queimado? - Estava. - Então. - Então, o quê? O livro servia para por o ferro de engomar, quando estava passar a roupa. Agora onde é que vou colocar o ferro? Onde? Só me faltava mais esta! - Pois! Alguém deve ter visto que era lixo e deitou-o fora. Eu não fui. Eu não lhe toquei. Olhou-me e não sei se ficou convencida, tamanhas eram as asneiras que fazia. Parecia que a ouvia pensar: - Uma criança tão pequena a mexer em livros? Hum! Não me parece. - Olha lá! Quem é que comeu os figos? - Quais figos? - Quais figos?! Antes que ouvisse mais um sermão, subi as escadas, meti-me no quarto, retirei debaixo da cama o livro de Luís de Camões e andei à cata dos sonetos. 
Foi assim que comecei a gostar de poesia, de figos já gostava.

Coimbra, segunda-feira, antes de jantar, 07.10.2013.

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