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A mostrar mensagens de agosto, 2013

"Sons e liberdade"...

Ouço sons. Vêm de todo o lado, da ribeira, das pessoas que passam, de uma muda que fala e ri para o bebé, do sino da torre, que, ritmicamente, quer ainda marcar a vida de quem o ouve, da brisa da tarde, do silêncio da vida e do encanto do esquecimento. Embrulham-se uns nos outros criando novos sons, sons que nunca tinha lido, nem ouvido, sons com algum sentido, sons à procura de outros sons, sons com quem possam falar, tocar e amar. Os sons têm alma e gostam de andar nus, não precisam de se esconder, precisam só de liberdade, e a liberdade aproxima-se deles, curiosa, distraída, e deixa-se agrilhoar. O único momento em que a liberdade sabe o que é ser-se aprisionada. Não se queixa e nem se arrepende, porque só assim sabe e sente o sabor do desejo. Depois, quando o silêncio do sono se acende novamente, volta a correr, livre, sem saber o que fazer...

"Explicar"...

Encontrar explicações não é o mesmo que as inventar. Há uma sede para explicar tudo o que nos envolve e o que somos. A angústia do desconhecido e a ausência de motivos assusta o ser humano. É compreensível, o que não é compreensível, e muito menos aceitável, são as "descobertas" e as invenções que se produzem a torto e a direito como se fossem sinónimos da verdade absoluta. Tudo tem de se encaixar nos modelos criados, nem que seja à força. Algumas são ridículas, outras visivelmente especulativas e muitas são de cariz doutrinário suscetíveis de esconder interesses capazes de adoçar a vida dos mais fracos, dos mais obedientes e aparentemente mais despretensiosos. Há explicações para todos os gostos e feitios, mesmo para os que não se interessam por essas coisas, desde que consigam satisfazer-se no deleite dos seus mais básicos instintos. Há quem não consiga encaixar-se em modelos ou em ideias feitas e há quem opte por as contestar, recriando novos paradigmas ou refugiando-se e

"Fogo"...

Querer descansar é um direito. Não basta querer, é preciso poder. Não tenho falta de tempo, mas necessito de uma certa paz de espírito para desfrutar. Como saborear o descanso se em redor a turbulência da natureza é uma constante? Como sonhar com o descanso se em redor os pesadelos atormentam as pessoas? Como merecer o descanso se em redor o sofrimento não dorme? Como pensar em descanso se em redor a morte vive sem pensar? Como desejar o descanso se em redor a vida não deixa amar? Não quero descansar. Não consigo descansar. Só me apetece sonhar...

"São Frei Gil de Vouzela"...

Hoje aproveitei a tarde para dar mais uma volta pela minha região. Fui até Vouzela. Há muito que não passava por aquele local. Da última vez ainda comi os seus maravilhosos pastéis, agora fiquei-me pela recordação do seu aspeto e de um sabor que ainda perdura. O que sabe bem, nunca se esquece. Passeei e visitei alguns locais, como a bela igreja, a escultural ponte do antigo caminho-de-ferro, que este ano comemora o seu primeiro centenário, o centro histórico, rico e bem conservado, e ainda consegui ir ver a magnífica Torre de Vilharigues. Tinha pano para mangas para escrevinhar a propósito de Vouzela. Confesso que queria arranjar um tema para dissertar hoje à noite, e sabia qual o tema, tinha-o premeditado, só me faltava o pretexto, que era visitar Vouzela. O é que eu hoje queria escrever? Coisa simples e fascinante, algo que dissesse respeito a São Frei Gil de Vouzela, uma das mais enigmáticas e fabulosas figuras beirãs do século XIII, cujas lendas, Eça de Queirós, João Grave e Te

"Milho-rei"

Noutros tempos, nesta época, ocorriam interessantes rituais ligadas à vida e à subsistência das gentes. Um deles tinha a ver com as descamisadas. A azáfama era uma constante. À noite, sob o tremelicar de candeeiros de petróleo, ou desfrutando os olhares da lua, curiosa e cúmplice, os trabalhadores sentavam-se em círculo para descamisar o milho. Uma forma de socialização que, também, permitia certos avanços ou namoricos, mesmo sob os pelos das ventas de algumas mães mais radicais. Sempre ouve algum paralelismo entre o fundamentalismo, seja ele qual for, e o aparecimento de pelos nos cantos dos bigodes de certas mulheres. Outras, mais tolerantes, aceitavam com naturalidade as brincadeiras, que não eram propriamente coisas de brincar, porque dali saíam, muitas vezes, compromissos para a vida inteira. Fosse qual fosse a atitude das vigilantes, nessas noites ocorriam episódios curiosos. Um deles dizia respeito ao milho-rei, quem o encontrasse tinha direito a beijar e abraçar os presentes,

"Falam pouco, mas sabem sorrir"...

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Acabámos de almoçar. - Vamos dar uma volta? - Para onde? - Sei lá, por aí acima, para o norte do distrito, para as terras do demo, por exemplo. - Credo, abrenúncio, fora-cão. Terras do Demónio? Ri-me, estava à espera de uma expressão tão regional como esta. - Sim, são belas terras, onde, segundo Aquilino, "Cristo nunca por lá passou, nem El-Rei". - Vamos! Passei por Vila de Paiva, onde nem cheguei a parar, apesar de ter vasculhado as suas ruelas. - Só pedra. É tudo feito com pedra. Podem cair os telhados, mas as paredes não. Cheguei a Moimenta da Beira, enquadrada naquelas terras bravas em que o granito é rei e senhor. Belas praças, monumentos e casario brasonado rico em rendas de pedra. Pena os atentados ao bom gosto dos nossos antepassados, uma dor de alma. Nada a fazer, parece que se perdeu grande parte do sentido estético das populações, mas ao menos a gente é simpática e atenciosa. São de poucas falas, mas sabem sorrir. Sentámo-nos na esplanada e vasculhei o

"Terra batida"...

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Recordar as pessoas é encontrar o caminho da vida, delas e da nossa. Somos frutos do passado, passado esquecido e raramente lembrado. Somos sementes de frutos do passado, desejosas em transmitir a vida ao futuro, um futuro que se esquece amiúde que tem passado. Ai do futuro quando se esquece do passado, é um futuro estéril, incapaz de dar vida à vida porque se esqueceu de quem lhe deu a vida.  A casa, que mais parece um castro neolítico ou um curral dos nossos dias, foi, em tempos, uma habitação. Ali viveram e cresceram, atrás de uma porta, seres humanos, pelitrapos de corpo e de alma, uma porta chorosa por onde meia dúzia de raios solares conseguiam entrar, por breves momentos na parte da manhã, mas que rapidamente fugiam inquietos com o interior. Mais de um século depois ainda permanece no mesmo local a testemunhar um passado de dor, uma chaga viva de terra batida, a querer relembrar que nos mais estranhos sítios é possível nascer sementes, sementes que viajam ao sabor do des

"Viagem ao passado"...

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Ler a "Trindade Artística", um dos capítulos da obra "Beira Alta, Terra e Gente", de Alexandre Lucena e Vale, obrigou-me a penitenciar-me. O autor descreve uma bela viagem em fins de maio, durante a qual visitou e se embeveceu com três obras-primas da Beira. Das três, só visitei, até hoje, uma, a Igreja de São Pedro de Lourosa, a mais antiga do país, senão da península, cujos 1101 anos são prova disso. Quanto às outras duas nunca as consegui desfrutar. Sempre que me desloco às localidades onde se encontram esbarro com o nariz na porta. As nossas igrejas, sobretudo as da zona Centro, estão quase sempre fechadas, abrindo apenas à hora do culto. Perdi o conto às vezes que fui a Oliveira do Conde para ver o túmulo gótico de Fernão Gomes de Góis feito cavaleiro no dia da conquista de Ceuta por el-rei D. João I. Ontem, lembrei-me, e se fosse num domingo de manhã quando há missa. Pus-me a caminho. A porta lateral aberta permitiu-me ver um templo muito interessante. A

"O dia em que o diabo anda à solta"...

Há muitos anos, neste dia, em período de férias, bate-me à porta uma senhora que era minha doente e que vivia numa pequena povoação. Pedia-me com insistência para a ver. Via-se perfeitamente que estava muito assustada e movimentava-se sem parar. Disse-lhe que sim que a consultava. Já a conhecia desde há algum tempo, e apesar de algumas perturbações comportamentais nada adivinharia uma descompensação daquela intensidade. Fiquei intrigado. No decurso do exame a senhora acabou por me dar a "explicação" para o facto. - É o diabo, senhor doutor. É o diabo! - É o quê?! Perguntei-lhe incrédulo. - É o diabo que não me larga. Apanhou-me. Agora não sei o que fazer. Libertaram-no. E foi logo ter comigo. O quadro configuraria um quadro psicótico mais grave do que pensava, mas fiquei na dúvida, porque a par daquilo a que se poderia chamar delírio, o resto da conversa era normal, sem grandes problemas, exceto quando falava do diabo. Aquela coisa de dizer que o tinham libertado e que esta

"São João"...

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O mês de agosto, o mês de não fazer nada, é muito importante. O não fazer nada leva-me a fazer coisas que, de outro modo, não me lembraria de fazer. Abrir gavetas, consultar velhos papéis, redescobrir livros, apreciar e tocar os mais diversos objetos, mas sempre com um objetivo, recordar, viver e desfrutar episódios que se vão acumulando ao longo do tempo. Envelhecer é isso mesmo, trazer o passado até ao presente para ter a esperança de o poder recordar novamente num qualquer futuro. - Onde está o "Galeno"? - Está na vitrina pequena. Vai vê-lo. - Está bem. Levantei-me e fui ver. Fica nem. Reparei que para colocar um objeto outro teria de ser "sacrificado". - Falta aqui o São João! - Pois falta. Foi para a outra, a maior, onde estão os teus "santos". Assim fica melhor, fica junto dos seus "irmãos". Coitado. Aqui sozinho e a vê-los além. Agora fica mais satisfeito. Abri a vitrina, retirei a peça e pus-me a analisá-la. - Já estás farto de a ve

"Juízo de valor"...

Emitir juízos de valor é complexo e, também, uma fonte de injustiças. Na maioria das vezes não causa transtornos, outras até poderá incomodar e algumas vezes chega mesmo a ofender. Empenhar-se em prol dos outros é uma tarefa nobre a qual deve ser respeitada, mas alguns, pessoas de fraca índole, distorcem e repintam quadros onde se reveem nas suas características mais fracas. É difícil de compreender certos comportamentos, sobretudo na espécie humana, em que desejos, vontades e visões do mundo sofrem distorções constantemente.  Trabalhar a favor dos outros é uma honra que nunca desperdicei, embora tenha sido já prejudicado por esse facto. Não me incomoda o prejuízo profissional ou familiar, o que me perturba é o prejuízo pessoal, quando sou rotulado daquilo que não sou e do que não faço.  Em termos institucionais sou de um formalismo total, porque só assim entendo o cargo. Não sou dono de nenhuma posição, represento algo ou alguém, e quando me coloco nessas situações sei o que dev

"Dia de sol"...

Falar de um dia de sol no verão é como falar de uma papoila num extenso mar vermelho que todos os anos pintam muitos campos. Mas há sempre algo de diferente, mesmo quando tudo parece igual. Basta olhar, basta tocar, basta cheirar, basta lembrar, basta oferecer, basta pensar. O sol de hoje foi diferente, acordou tarde, envergonhado, dando a entender que o dia seria mais fresco do que é habitual. Mas não. De repente, talvez por se lembrar das suas obrigações, acordou meio estremunhado e saltou da cama nervoso querendo talvez desculpar-se pela sua falta de pontualidade. Ele sabia para onde ia e ao que ia. Não lhe liguei. Fiquei calado e fui à vida, embora tivesse sentido alguma apreensão, que se dissipou a meio do caminho. Vá lá, não me vai estragar o dia, pensei. Depois, foi a pequena surpresa, um local muito agradável com a companhia dos filhos e netos, que foram genuinamente cúmplices da oferta de um dia de sol à avó no seu aniversário. O sol também participou, com alegria e com cump

"Nossa Senhora da Misericórdia e Cisco Kid"...

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Tive de ir a Viseu, apenas por uma simples razão, gosto de ir, gosto de frequentar aquele local. Conheço a cidade desde há muito tempo - desde que me conheço -,   e não me canso de calcorrear as suas ruelas vezes sem conta. É um ritual, quase uma obrigação. Ir sem motivo é o melhor motivo para encontrar o que ainda não descobri. Entrei na igreja da Misericórdia, mas antes consegui ver o museu, não o de Grão-Vasco, não o do tesouro da Sé, mas o modesto e elegante museu da Misericórdia. Cuidado, simples, elegante, espaçoso e convidativo a reflexões e análises. Adquiri uma obra de Alexandre Lucena e Vale, "Beira Alta, Terra e Gente", escrito quando era menino e moço. Comecei a lê-lo numa esplanada, trago-o comigo e vou deliciar-me com a sua prosa. Logo nas primeiras páginas, o autor faz a descrição das suas viagens. Tinha que passar, naturalmente, por Santa Comba, terra que fecha e abre as portas da Beira Alta no seu entender. Aqui chegava a

"Diferença"...

Como é que sabemos que estamos diferentes? Quando deixamos de sentir uma necessidade que até há pouco nos alimentava e estimulava. Algo que nos empurrava, que nos divertia, que nos fazia sentir melhor, que justificava a nossa forma de ser e de estar e que lentamente se apaga, ou melhor, se transforma na diferença. Na essência nada muda, o que se altera é a forma, enriquecendo o conteúdo. Escrever tem dessas coisas. Escreve-se com muitos motivos e por muitas razões. Começa-se sempre por algum lado, depois vai crescendo, torna-se mais exigente, mesmo gratificante e por fim começa-se a escrever sem razão, sem motivo e para ninguém. Já falta pouco para começar a escrever para ninguém, a não ser para o próprio. Quando isso acontecer será uma maravilha, é chegar a um momento de total liberdade. Quando isso acontecer poucos serão o que irão ler o que escrevo e quando lerem talvez já não saboreie as doces manhãs e as intensas noites. Ser livre é escrever sem receio de que outros possam ler.

"Dez horas"..,

O sino da torre acaba de dar as dez horas. O som é o mesmo de sempre e fez-me lembrar as dez horas de outros tempos, a hora limite para ir para casa. Repete sempre, passado um ou dois minutos, não sei bem, o tempo que mediou as palavras escritas até agora, incluindo o título. Pode parecer pouco, mas, para mim, as dez horas eram apenas ao segundo toque e nunca ao primeiro. Um breve momento, mas para quem andava em correrias loucas, ou tinha de acabar um jogo, era muito importante. Depois, a tristeza invadia-me e ia a correr até casa. - Cheguei! Já deram as dez horas. O silêncio não me confortava, apenas me irritava, porque ainda conseguia ouvir as gargalhadas e os gritos dos outros a serem transportados ao longo da ribeira, o que me entristecia ainda mais. Eram as regras e eu não as queria quebrar, porque senão corria o risco de não sair à noite no dia seguinte, e desfrutar da liberdade vigiada pelos adultos e pelo movimento que àquela hora era uma constante. Havia o jardim, com as su

"Nada"...

Nada. Não tenho nada para fazer. O sol queima. Deve estar furioso com qualquer coisa. Fica assim quando o aborrecem, mas não fui eu. É o que eu penso. O melhor é ficar em casa até que acalme e fique mais dócil. Aquilo passa-lhe. Logo, para o final da tarde, fica mais calmo, mais doce, mais terno e mais humano. É a melhor hora para conversarmos. Ele sabe disso, sobretudo nesta altura em que não faço nada. Sabe, porque tem ciúmes da lua, que nesta época mostra a sua beleza em toda a plenitude. Agiganta-se com a sensualidade de agosto e permanece assim durante muito tempo apagando tudo em seu redor. Nada brilha, a não ser ela. O seu silêncio, perturbador, atrai, e põe qualquer um a conversar com ela. Prenhe de satisfação e de alegria, anuncia vida nova, a vida que alimenta a alma dos poetas. Olhá-la é saborear a liberdade. Ela sabe. Por isso é que engravida sempre nesta altura e entrega o fruto do seu ventre apenas a quem a sabe respeitar. O sol sabe disso e fica invejoso por não lhe da

"Fotografia de sons"...

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Acordei com uma estranha sensação de prazer após uma sesta involuntária. Até parece que andei no outro mundo. Devo ter sonhado, mas não consegui lembrar-me de nada, só sei que ondas de formigueiro percorriam os meus meridianos do prazer. Não sei onde é que eles estão mas posso imaginá-los. Levantei-me do sofá, e sem saber o que fazer, não me apetecia ficar à mercê do sol, fui dar uma volta. Acabei no velho planalto onde os sons de origem humana não conseguem penetrar. Um verdadeiro santuário, onde os nossos antepassados deveriam sentir o mesmo que eu, admirar a beleza da natureza, orar aos deuses de então, questionar sobre a vida e a morte e aprender a amar o que deve ser amado. Solo sagrado, a testemunhar pelos monumentos à eternidade das suas almas. Ali depositavam os seus corpos, aprisionando as suas almas àquele espaço. Os corpos há muito que desapareceram, mas as almas não. Ouço sons. Não os entendo, mas ouço-os, parece que é o vento a beijar as árvores, mas não, devem ser

"Sono"...

- Estás com sono? - Não. Embora me apetecesse dizer a verdade, que sim, que estava, mas não disse. - E tu? - Estou cheiinha. Vou mas é para a cama.  Criei o título segundos antes de me ter perguntado se estava como sono, porque estava mesmo, mas queria escrevinhar qualquer coisa antes de me deitar.  Escrevinhar sob o efeito do sono é como desejar uma noite sossegada e repleta de sonhos confortadores. Uma forma de fugir à realidade e criar uma outra, diferente, feita à minha medida. Para isso precisava de saber o que é uma medida de vida, o que desconfio muito.  Escrevinhar sob o efeito do sono é sentir um peso suave capaz de alimentar a vida, acender a esperança e apagar o receio e a incerteza.  Escrevinhar sob o efeito do sono é parar o tempo e congelá-lo com um ardor quente de sentimentos e doces lembranças.  Escrevinhar sob o efeito do sono é despertar para uma nova dimensão, a da paz, a da alegria e a do espanto por tudo que desconheço e que gostaria de saber.  Escr

"São Martinho e Galeno"...

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Domingo. Cumpri o meu ritual, fui a uma casa de pasto onde aprendo e apreendo muitas coisas. Época de verão, a presença de emigrantes permite-me ouvir novas histórias para poder construir outras, a par dos autóctones, que são sempre muito ricos nas suas vivências e falas no resto do ano. A forma de ser e de estar de alguns deles foi motivo para alguns reparos que acabei por fazer. Apesar de parecer estar na moda a aceitação pura e simples dos seus comportamentos, mesmo que demonstrem alguma arrogância e ostentação, transformadas em sinónimos de "preconceitos" para quem os critica ou não os aceita, o que me diverte, confesso, porque muitas vezes não passam mesmo disso, levou-me, após o repasto, simples e frugal, a comentá-los com algum detalhe. Entretanto o carro ia à deriva, como já é habitual, para regressar a casa pelo caminho mais longo.  Começo a ficar preocupado, porque começam a faltar alternativas ao regresso. Cada vez tenho que ir mais longe. De qualquer modo

"Segredo"...

Certos segredos conseguem queimar mais a alma do que passar a eternidade no inferno. São filhos de comportamentos abjetos, perversos e animalescos, que emergem das profundezas do que há mais de primitivo no ser humano. São frutos de erupções imprevisíveis. São capazes de destruir qualquer um. Quando as vítimas despertam da acalmia da turbulência, inesperada e dolorosa, sentem que as suas almas estão rasgadas, esfrangalhadas e são acometidas por sofrimentos indescritíveis, como se estivessem possuídas por um diabólico sentimento de destruição que as quer consumir. Arrastam-se longamente com a mesma angústia que os afogados devem sentir naqueles breves e horríveis momentos que precedem a morte. Só que não morrem, mas sentem-se como afogados. Não sabem muitas vezes quem procurar, não podem partilhar os seus problemas, não conseguem confessá-los, embora desejassem. São segredos horríveis. Por vezes sou confrontado com algumas situações que nunca pensei passar, embora saiba que existem. Q

"Manhã"...

Levanto-me depois de uma noite de descanso e cumpro um ritual de férias, vou para a sala, abro as janelas, deixo entrar o suave e morno perfume da manhã, acendo a televisão, pego no que estiver à mão e observo se está tudo no sítio, a serra ao longe ainda lá está, as casas dos vizinhos também, mas hoje o azul do céu está pintado no horizonte de um cinzento descorado e ligeiramente rosa a testemunhar a presença do diabo pelas florestas. Sento-me. Ouço a passarada feliz. Vou continuar a descansar, a não fazer nada, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Por vezes até é, não fazer nada ou fingir que não se faz nada. Pego num livro, pego numa revista, afinal o que faço é apenas mudá-los de lugar. A televisão debita notícias. Fujo, habitualmente de manhã, dos canais nacionais por mera proteção, para que não me recordem os males que nos atinge e não ouvir o massacre dos que teimam em esburacar as feridas com os seus dedos, grossos e imundos, uma prática que devem julgar como sen

"Procissão"...

Hoje foi dia de procissão. Fiquei em casa, estava muito calor e não me apeteceu ir ver a marcha da turba de fiéis que, sob um sol escaldante, acompanhavam a Nossa Senhora e alguns santos, que têm a oportunidade anual de apanhar um pouco de sol. Conheço-os a todos e presumo que devem ficar satisfeitos com a volta. Fazem bem. Ouvi, à hora esperada, os acordes da banda filarmónica. Avisei: - A procissão já lá vem. - Onde? - Na ponte da praça. - Então eu vou vê-la ao cimo da rua do Calvário. Vens? - Não, não me apetece, fico aqui.  Recordei outras procissões ocorridas neste dia e alguns episódios. Nada de especial. Talvez uma ou outra me marcaram. O meu filho mais novo, que devia ter uns quatro anos, a idade da descoberta e das associações, disparou alto, e em bom som, uma exclamação que pôs a sorrir toda a gente e até os próprios santos. No silêncio sepulcral adotado aquando da subida íngreme do Calvário, imprópria para os mais débeis e ingrata para os músicos, os quais guardavam os b

"Coisas"...

Reconheço que a principal característica de um ser humano é a sua tendência para a espiritualidade. Uma forma de se encontrar, uma forma de saborear o mundo, uma forma de fazer poesia, uma forma de criar, uma forma de amar, uma forma de ajudar, uma forma de compreender, uma forma de justificar o futuro e o passado. Sentir essa força não é sinónimo de religiosidade nem sinónimo da aceitação de um Deus maior ou de deuses menores. É uma enorme responsabilidade senti-la, sobretudo na ausência de um Deus a quem se atribui princípios e dons capazes de explicar o inexplicável. A dialética da religião, seja ela qual for, é muito elaborada, mesmo sofisticada, com argumentos complexos e difíceis de entender, tudo serve para a justificar e para fazer entender a sua existência aos que não aceitam entidades divinas. A dialética da espiritualidade, não, é simples, é fácil de entender, embora por vezes seja um pouco complicada na atuação. Não tenho nada contra os que têm fé e se alimentam dela. Eu

"Gavetas"...

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As férias servem para muitas coisas, para descansar, para viajar, para conhecer novas gentes e velhos lugares, para ler, para por o corpo e a mente em sintonia com a natureza e para abrir gavetas. Sim, abrir gavetas é um encanto que me enche de prazer. Encontro sempre coisas que me surpreendem e que me fazem reviver velhos episódios. É uma forma de viajar no tempo, é uma interessante maneira de me encontrar e de compreender o que sou e o que fiz. A gaveta não é muito grande e estava tudo bem acondicionado o que me preocupou, porque sempre que mexo em qualquer coisa fico sem espaço para recolocar as coisas nos seus lugares, um pouco à semelhança de quando eu desmontava um brinquedo, sobravam sempre peças. Atrevi-me e encontrei velhas fotografias. Não me foi difícil relembrar esses momentos e períodos. Numa delas tinha um pequenino cavalo de baquelite cujas pernas e cabeças se movimentavam com pequenos gestos. Vinham dentro de pacotes de café, que o petroleiro, no seu veículo esqui

"Estrela cadente"...

Lembro-me das noites quentes de verão. Não havia televisão e os fracos candeeiros mal conseguiam imitar as estrelas. Olhava admirado para aquele esplendor noturno em que as cigarras enlouquecidas de alegria enchiam o céu de sons fabulosos. As estrelas, agradecidas, tremelicavam de prazer. Uma sinfonia da natureza acompanhada pelo doce e suave resfolegar da ribeira que a meus pés sussurrava de felicidade. A meu lado, na varanda de madeira e um pouco inclinada pelo peso da idade, os meus avós e um ou outro tio e tia do mesmo rebanho conversavam sobre coisas que vinham de outros tempos. Histórias e lendas que me encantavam tanto ou mais do que a sinfonia das estrelas, das cigarras e da ribeira envergonhada pelo estio. Eu ouvia-os em silêncio e só falava quando propositadamente via que interrompiam a narrativa querendo passar para outra. Eu não deixava, enquanto não acabasse a primeira. - Ainda está acordado. Ouvia-os dizer baixinho -Pois estou! Dizia um pouco mal-humorado. Sorriam sem q

"Alva"...

Há muito que não mergulhava nas águas de um rio. As águas do rio perseguem-me desde pequeno. Suaves, cálidas, com cheiro próprio, amolecedoras do corpo e tranquilizadoras da alma, são um privilégio para quem as procura. Roubaram há muito o meu rio. Procuro-o a montante, longe, onde ainda consigo encontrar-lhe a alma. Gosto de me cruzar com ela.  Cada rio tem o seu encanto e beleza, quase que diria que tem um cheiro próprio. Hoje procurei outro rio, onde em tempos também mergulhei. Tem um cheiro diferente. As deusas dos rios são diferentes, mas todas elas provocam no corpo e na alma a mesma sensação de prazer. A melhor hora de a desfrutar é ao fim da tarde pelas vésperas. Registo com agrado o entorpecimento que me invade. Registo com agrado as emoções engavetadas que procuram avidamente o ar e a liberdade. Registo com agrado a sensação de viver. Registo com agrado as carícias amigas do tempo. Registo com agrado o esquecimento. Registo com agrado o nascer de uma esperança. Registo co

"A moeda de ouro"...

O ouro é considerado o mais nobre de todos os metais. Brilha como o sol, é doce como o mel, é maleável como o amor, incorrupto como um arcanjo e raro como a honra e a honestidade. Serve para homenagear homens e deuses. Serve para dourar santos e altares. Serve para pagar a reis e a traidores. Serve para tudo, para matar, para amar, para comprar, para vender, para roubar e para ostentar. Metal forjado na morte das maiores estrelas do universo, e lançado na imensa escuridão do universo, acabou por cair nas mãos dos humanos, que, deslumbrados com as suas características, sentiram desde cedo estar perante o sinal mais terreno do divino. Os deuses criaram o ouro num tempo antes do tempo, muito tempo antes de criar o homem. O ouro, lágrimas brilhantes dos deuses que habitaram as estrelas, faz chorar, alegrar ou matar quem lhe tocar. Oferecer uma peça de ouro como símbolo de respeito, de admiração ou testemunho de um ato faz parte de uma liturgia em que as suas características, únicas, sã

"O beijo"...

Viajar em Portugal é um privilégio. Ao fim de algum tempo mudam as paisagens, as humanas e as geográficas. Não há tempo para cair na monotonia. Não há tempo para saturação. Não falta tempo para poder saborear tantos prazeres.  Entrei em Amarante como se tivesse saído há pouco tempo. Não foi há pouco tempo, não, foi há muito. A água era a mesma, a ponte era a mesma e a igreja também. Só o tempo é que era diferente.  Passei em frente de Teixeira de Pascoaes, o homem que melhor caracterizou os portugueses. Está magro. Pois está. Está tísico. Entrei no museu Amadeu de Sousa Cardoso. Fui à procura dos seus quadros. Nunca tinha visto um ao vivo. Precisava de os ver. Há muito tempo que prometi a mim mesmo que os iria ver. E fui. Também gosto de cumprir as minhas promessas. Só preciso de tempo. O tempo, desta vez, deu-me um pouco de si. Agradeci-lhe. Coisa rara em mim ter de agradecer ao tempo. Mas fi-lo. Talvez por uma questão de cortesia. Fiquei com os sabores de muitas obras nos olhos

"Ua pequeinha stória"...

Stou an Miranda de l Douro. Bin passar uns dies para tierras de l norte. Sabe bien star eiqui, la çcansar i a ber las gientes. Ua delícia, aliar la cultura, ls questumes, la stória, la gastronomie i l merecido çcanso. Pertual ten ancantos tamanhos. Cumo l mirandés ye ua léngua oufecial de Pertual  i depuis de tener lido alguns testos, lhembrei-me de coincer i gusto  dun scrito miu en mirandés. Ua pequeinha stória "Ampeça a ser mui spesso recebir amboras de muortes. Ye natural, penso, coinço muitas pessonas i yá bebi alguns anhos, lougo, tengo que ls registar, alguas bezes cun naturalidade, outras cun cierto moléstia, por bezes cun sentida tristeza i até mesmo cun sentimiento de perda. Ampeça a ser spesso recebir amboras de passamientos. San tantos que a las bezes chego la cunfundi-los culs mius pensamientos. San tantos qu'acabo por chafurgar an pensamientos custruídos a la custa de las sues bidas i cunfissones. Quien dirie que muitos de ls mius pensamientos so