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A mostrar mensagens de abril, 2012

Doce paganismo

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Depois de uma tarde de trabalho, presidir à assembleia municipal, regressei a casa meio cansado, mas satisfeito. A sessão foi animada, politicamente um pouco quente, o que me agradou sobremaneira, mas com correção. Olho para as portas da minha casa e vejo-as enfeitadas com ramos de giestas, maias. Não foi por nada, pensei logo na minha vizinha, a Maria, pessoa simples, mais nova do que eu, e que sabe cultivar a cultura popular como ninguém. Uma surpresa que me agradou imenso e que me fez recordar outras vésperas do primeiro de maio, quando ia cortar giestas com o resto da miudagem, assim que saíamos das aulas, para depois as distribuir pelos vizinhos, enfeitando as ruas com aquele doce amarelo. Uma festa. Verdadeiros pedaços de sol pendurados nas ombreiras das portas, nas janelas, nos vasos, nas varandas a alegrarem a vida da comunidade, esconjurando os maus espíritos e afastando a fome. Quem não tivesse maias à entrada das casas corria o risco de vir a sofrer fome,

"O tambor"

- Que dia é hoje? Vinte e sete de abril? - Não! Vinte e oito. - Ah, pois é. Faz hoje anos que o teu pai foi hospitalizado, morrendo três dias depois. Foi há vinte anos, não foi? - Vinte? Não! Tanto tempo! - Olha, se não foi há vinte, não deve faltar muito. - Amanhã vejo na campa o ano. - Deixa lá, que eu vou já saber. - Como? - É fácil. Foi no final do Portugal-Escócia, em que nós ganhámos por cinco a zero, que a situação se agravou e eu chamei a ambulância. Olha, foi em 1993. - Como o tempo passa! - Neste dia o Salazar fazia anos. - Fazia? - Sim. - Como é que sabes? - É fácil. Na escola primária, no Vimieiro, obrigavam-nos a vestir a farda dos "lusitos" e, em marcha, a toque do tambor, íamos até à igreja de Santa Cruz para assistirmos à missa pelo "senhor presidente", que fazia anos. Uma chatice. - Mas qual chatice? Ir à missa? - Também. Nunca percebi porque é que tinha de ir à missa por causa do aniversário de uma pessoa. Lembro-me de ter perguntado à senhora que

"Ai o meu menino, ai o meu menino"

Sempre a vi com uma genica dos diabos, a qual, enfeitada quase sempre com um sorriso fulgurante, traduzia o seu amor pela vida, manifestando uma infinita confiança no valor do trabalho. E trabalhava. E ria-se. E fazia rir os outros. E confiava. E amava. Quando me cruzava com ela era certo e sabido que iria ouvir uma expressão com muitos anos, "ai o meu querido menino, ai o meu querido menino", expressão suave, cheia de ternura, doce, dita em voz baixa, contrariando a sua tendência exuberante, para que mais ninguém pudesse saboreá-la, um ato de puro e generoso egoísmo, como quem diz, só eu é que posso dizer isto, pertence-me, não quero partilhá-la com mais ninguém. E eu gostava. E ainda gosto. Não obstante a idade, que, de um modo geral, torna-nos insensíveis a muitas expressões, há algumas que não morrem, vivem e fazem-nos viver. Mais velha do que eu, mas muito mais velha quando era novo, menos, muito menos agora; o tempo de cada um encarrega-se de convergir para o mesmo foco

Engano

- Está? É da casa do senhor Joaquim Flores? - Não, minha senhora, aqui não vive nenhum senhor Flores. - Oh, desculpe, foi engano. - Não há problema. - Muito obrigada e um bom dia. - Igualmente para a senhora. Um engano qualquer um pode ter. Neste caso foi prontamente assumido, porque era evidente e inócuo. Mas há enganos e enganos. Uns são simples, banais, fazem parte do dia-a-dia, mas mesmo assim podem complicar a vida. Mas há outros que são frutos de maus juízos, de preconceitos, de falta de visão, de uma teimosia intrínseca, revelando-se dolorosos e injustos para terceiros. Quando um erro desta natureza não é assumido, então, é uma situação grave, mas há, ainda, situações mais complexas quando é utilizado com propósitos bem definidos. Há quem não admita os seus erros, porque são considerados como sinais de fraqueza, de insucesso ou de inferioridade. É mau, já que podem estar na origem de condutas fabricadas, artificiais, falsas, incómodas, daninhas, as quais são ca

Duas estatuetas...

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Comecei a trabalhar cedo. A meio da manh ã dei a desculpa habitual, vou tomar um caf é , v á , v á , senhor doutor e descanse um pouco. N ã o fui nada, j á tinha tomado um logo que cheguei. O que eu queria era um pretexto para ir ao lado, à loja das velharias. O dono, o Daniel, tornou-se meu amigo e espera que passe pelo seu estabelecimento. É o que eu fa ç o praticamente todas as semanas. Tenho alturas em que adquiro alguns objetos, desenhos ou quadros. J á conhece os meus gostos. Por vezes, ao entrar, depois de nos cumprimentarmos, avan ç a com satisfa çã o, tenho aqui uns desenhos a seu gosto. Outras vezes antecipa-se dizendo, esta semana n ã o tenho nada que lhe interesse, mas d ê uma volta, pode ser que encontre algo que lhe agrade. É o que fa ç o, duas voltas no m í nimo. Quando n ã o encontro nada, foco a minha aten çã o nas "miudezas" e acabo por comprar uma pe ç a de valor reduzido, desde que seja bonita, claro. Fa ç o-o com prazer. O Daniel agrad

Lírios

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São muitos os dias em que temos necessidade de lhes dar significado e tirar algum sabor. Habitualmente são os dedicados ao estranho descanso que mais angústia provocam, daí, muito provavelmente, a depressão inerente ao domingo à tarde, tão bem retratada por Namora numa obra com o mesmo título. Depois do almoço, em que foi patente a inércia de um dia de primavera acompanhado do barulho e conversas típicas de quem tem necessidade de almoçar, por enquanto ainda vamos tendo, senti o pulsar do tempo e o envelhecer do corpo. Para remediar os seus efeitos abalei sem convicção à procura de algo que me enchesse ou justificasse mais um dia de existência. O corpo estava minimamente compensado e abastecido para longas horas e o sol convidava a um pequeno passeio, o resto deixei à mercê do tempo e da fortuna. Acabei por tropeçar num estabelecimento aberto aos domingos onde sempre se podem ver algumas coisas, úteis e, sobretudo, inúteis, mas suficientes para, eventualmente, desencadearem apetência

Intestinos e personalidade...

Gosto de aproveitar este espaço para comunicar, para dissertar, para refletir, para denunciar, para confraternizar e para informar. Em suma, tentar estabelecer uma relação, de preferência saudável, com muitas pessoas, conhecidas e não conhecidas. De um modo geral não tenho razão de queixa. Ao fazê-lo reforço não só os meus conhecimentos como julgo poder ajudar outros. Este pequeno intróito tem como objetivo transmitir novos factos que considero interessantes. Já tive oportunidade de há dias ter escrito a propósito da predisposição para certos comportamentos. Hoje, gostaria de comunicar que os fetos quando nascem já são portadores de bactérias nos seus intestinos, os quais pensava-se serem "estéreis" contaminando-se com os microorganismos da mãe apenas na altura do parto. Afinal as coisas são mais complexas. Ou seja, a construção do "microbioma" começa a ocorrer durante a gestação e o comportamento ou o estilo de vida da mãe condiciona o tipo e a qualidade das bactér

Olhos cinzentos azulados

Acordou sobressaltada. Um frémito doloroso invadia-lhe o corpo. Depressa verificou que um suor viscoso lhe arrefecia a alma, alagando ao mesmo tempo o seu corpo juvenil. Agulhas invisíveis de medo ameaçavam furar-lhe o baixo-ventre, a sua solitária ermida, que, não há muito, foi o altar do culto do amor, um amor físico, intenso, vulcânico. Criada num ambiente de valores artificiais, disciplinados, subjugados a ordens de pureza capazes de escravizar muitas almas, mas não outras, estranhamente castigadas pelo criador a vegetarem neste mundo, depressa interiorizou os locais que lhe estariam reservados, o inferno ou o purgatório, mas nunca o publicitado e desejado céu. O medo controlava-a de forma angustiante, sabia que, um dia, a tentação lhe abriria os braços, ou não fossem os seus olhos a mais perfeita gazua que Deus mandou ao mundo para abrir os corações. Queria saber até que ponto seria capaz de se admirar com a sua obra, sim, porque um Deus solitário tem destas coisas, anseia

"Idade da peste e da fome"

Qualquer sociedade em desenvolvimento tem de passar por certas fases independentemente dos fatores de risco, que estão na génese de muitos problemas, serem passíveis de prevenção e/ou tratamento. Uma espécie de fatalismo sociológico. Podemos apontar como exemplo paradigmático desta afirmação o caso das doenças cardiovasculares. Sabemos qual é o papel da hipertensão, do tabagismo, do colesterol elevado, da diabetes, da obesidade, do sedentarismo, apenas para ilustrar alguns fatores perfeitamente preveníveis e/ou tratáveis. Fazem-se campanhas de rastreio e de informação a todos os níveis. Mas na prática o que é que se verifica? A prevalência desses fatores continua a aumentar ou não diminui de acordo com as expectativas. Sendo assim, muitas das suas consequências, acidentes vasculares, traduzem-se em taxas de morbilidade elevadas. Depois de se atingir um determinado patamar é que começa a diminuir as consequências mórbidas da exposição aos fatores de risco, ou seja, passam a ser m

"Psicopatologia ideológica"

Não perco muito tempo com certas discussões de natureza política, por uma simples razão, muitos são intransigentes nas suas convicções, não havendo maneira de as demover ou mostrar que estão erradas. Nalgumas pessoas a situação é mesmo grave, muito grave, são tão "cegas" que continuam a defender o indefensável. Tento compreender estes comportamentos, mas não consigo, por isso o melhor é estar calado e fazer de conta de que não aconteceu nada. Já me interroguei se, por debaixo daquele comportamento estereotipado, não haverá algum substrato biológico capaz de o explicar, mas evito cair nesta simplicidade, até porque poderia ser rotulado de qualquer coisa desagradável . Em tempos li alguns sociobiólogos a dissertarem sobre esta matéria, queriam dar razão ao darwinismo social com todas as implicações daí decorrentes; perigoso, muito perigoso, ao permitir a legitimação de determinados regimes. De qualquer maneira, ultimamente, tenho vindo a ler alguns artigos a apontarem para a ex

O archote

Semana Santa de 1959. Naqueles dias as quintas e as sextas-feiras eram muito aborrecidas, não se podia fazer nada, nem mesmo brincar. Como não tinha com que me entreter, acompanhei um funcionário da CP até uma pequena horta não muito distante da estação, junto à linha do Dão. Uma tarde muito triste, revestida de nuvens fenestradas por belos raios de sol, os quais desenhavam uma espécie de coroa ou de aura que os santos orgulhosamente são obrigados a ostentar. O que eu queria era divertir-me com os meus amigos, mas não nos deixavam, era considerado uma falta de respeito, chegando mesmo os mais velhos a advertir-nos de que nem se podia rir, uma grande chatice para um miúdo, porque quando não se brinca o tempo recusa-se a passar, o que era um verdadeiro tormento, e a procissão, o único divertimento que antevia para aquele dia, só teria início pelas nove da noite. Deste modo, aceitei o convite para ir até à minúscula leira. Sempre gostei de ver as pessoas a tratar das terras, do cuidado q

Dança, dança com alegria!