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A mostrar mensagens de junho, 2013

"Gritos"...

Não suporto gritaria. A gritaria parece ter sido eleita como desporto nacional. Quero tomar um café ou beber uma água fresca numa aprazível esplanada e acabo por ser agredido com vozearias cruzadas, disparadas entre as mesas. Conversas sem sentido, despropositadas, típicas das que praticam nas suas cozinhas ou às janelas com as vizinhas. Falam alto, muito alto, dizem barbaridades, sendo mesmos inconvenientes. São horríveis, porque de repente conseguem agudizar os sons a ponto de ferirem os tímpanos quando se põem a chamar ou a corrigir os filhos, os quais, por sua vez, revelam que são ótimos mestres na arte da gritaria.  Entra-se no espaço da restauração e é mesma coisa. Toda a gente fala ao mesmo tempo e para se poderem ouvir têm que gritar. Mas gritam mesmo. Claro que neste último caso, atendendo à hora, não se pode por de parte os efeitos das cervejas.  Toda a gente grita, nas manifestações profissionais promovidas pelos mesmos de sempre gritam alto e em bom som para impedirem

"Noite de verão"...

Procuro as noites quentes de verão, sobretudo as que são embelezadas pelas brisas suaves e doces, que sabem correr de forma invisível sobre as águas paradas da ribeira, roçando-as, afagando-as com uma volúpia fácil de imaginar. Deve ser a época de acasalamento entre o ar e a água. Em frente, o vazio de um belo espaço, centrado pelo pelourinho, símbolo da autoridade municipal. Uma coluna "retorcida" terminada numa pequena esfera armilar de metal. Não se pode dizer que seja uma preciosidade arquitectónica se a compararmos com outros pelourinhos das redondezas. Não interessa, conheço-o desde que comecei a  lembrar-me de mim. É o suficiente. Corri e saltei em seu redor, sentei-me nos seus "degraus" e senti o calor das pedras quentes à noite, um estranho calor reconfortante que ele sabe devolver ao fim de um dia de verão. Viu-me crescer e vê-me a envelhecer, sempre em silêncio. Guarda tantas memórias, tantas, que encheria quilómetros de lembranças com almas conhecidas

"Regista, escreve, regista"...

Gosto de histórias, gosto de as registar, gosto de as rescrever, vezes sem fim, e, sobretudo, de entrelaçá-las fundindo num único momento os passados, os presentes e os futuros. Elas nascem como belos e saborosos cogumelos. Quando se acaba uma, as sementes de muitas outras já estão lançadas. Para que possam germinar é preciso tratar do solo. As crianças adoram histórias, não mais do que eu, porque elas permitem-me viajar por todo o lado, fazem-me sentir que sou livre e a verdadeira liberdade, o doce da vida, obtém-se através do conto, do texto, da pequenina e emocionante história. As crianças são fontes de inspiração, tem de ser, então, elas não estão sempre a pedir mais uma, mais uma! Conta. Conta. Conta. Contámos vezes sem conta, até as contamos quando elas já estão a dormir. Elas ouvem, até a dormir, e não sabem se são sonhos. O que interessa é fazer com que elas pertençam aos sonhos e às histórias. Sempre é mais uma que um dia poderão ler, a sua história, as suas histórias. Quand

"À espera"...

Espero. Espero que entrem. Espero que acabe o trabalho. Espero poder ir para a estrada, andar devagar e olhar as margens aquecidas de um rio que corre nos dois sentidos. Olho, sempre a olhar, sempre à espera de um verso, de uma imagem, de um som, de um movimento, de uma lembrança, de um pretexto. Espero, como é habitual. E quando menos espero encontro, o quê, não sei, mas espero encontrar algo que justifique a espera, porque estou sempre à espera de encontrar. Que coisa. Sempre à espera, à espera de descobrir e de ser descoberto. Enquanto espero, escrevo e registo pouca coisa. A senhora entra, é nova, com uma barriga bem empinada.  - É uma menina?  - É!  - Tem todo o aspeto de ser uma menina. Não sei qual é a diferença entre uma menina e um menino na barriga da sua mãe, mas apeteceu-me dizer, e não fui interpelado nesse sentido. Fiquei à espera, porque se fosse, já tinha construído uma resposta que decerto faria sorrir a jovem mãe.  - É o primeiro?  - É.  - Nasce quando

"Enjoo"...

Sinto-me enjoado. Estou com a estranha sensação de andar em mar alto, mas não, apenas estou dentro de numa carrinha sob a sombra de duas frondosas e frescas árvores. Os movimentos das pessoas transmitem-se como se fossem ondas suaves, suaves, mas mesmo assim perturbadoras a ponto de abdicar do conforto do ar condicionado. Saí. Sento-me sob as ondas de um vento cálido e reconfortante, esperando conseguir alguma tranquilidade que alivie o sofrimento de um estômago enganado, que protesta, e com razão, por o ter levado para o alto mar, mesmo que esteja em terra. Eu digo-lhe que não estou no mar, estou em terra, mas ele não acredita. Sabe bem beber o vento e sentir o calor filtrado através de árvores frondosas e alegres. Ouço, no intervalo entre as consultas, música, convencido de ter algum efeito terapêutico e leio Hemingway, na esperança de conhecer os pensamentos de almas tangíveis, sofredoras, loucas e amantes da vida e da morte. Valha-me isso. Fujo das notícias, dos relatos políticos

"Impressionismo"...

As manhãs são fontes de inspiração, de lembranças e de temores. A forma como se apresenta é tudo e conduz-nos a seu belo prazer pelos mais diversos pensamentos. Hoje, o sol quente de uma manhã de verão impressionou-me fazendo recordar outras manhãs e obrigando-me a viver outros dias em que as imagens, os sons, as vozes, os aromas e as sensações se cruzam no mesmo momento embora possam ter ocorrido em dias e horas diferentes. Uma estranha miscelânea a relembrar um quadro impressionista. Parte-se da realidade do presente e pinta-se uma fantasia, estranha, mas muito mais bela do que realmente aconteceu. Sinto o cheiro cálido de uma manhã de verão misturado com a perfumada peixeira a tresandar o seu odor característico, orlado do pão fresco da padaria. Passo em frente à taberna onde o fresco do térreo chão evapora constantemente o mosto impregnado de decénios irmanando-se com os arrotos dos fritos que vinham do fundo da cozinha. Inebrio-me com o creosote das travessas a libertar-se

Conversa...

Sempre que posso procuro velhos locais, próximos no espaço e remotos no tempo. Aos domingos mergulho numa casa de pasto onde convergem pessoas do povo, talvez seja a sua extravagância semanal. Para mim não é extravagância, é mesmo uma necessidade, beber e comer num meio rico, popular, onde posso ainda auscultar o sentido das pessoas, deliciar-me com as suas conversas cruzadas e  aprender a ver o mundo de forma diferente. Agora estão a aparecer os emigrantes, que, mesmo tendo alguns vivido mais de quarenta anos em França, não perderam a forma de falar das suas origens embora entremeadas pelo hipotético ganho cultural adquirido lá fora, com o qual se convencem que sabem mais e têm soluções para tudo. Comia e bebia que nem um alarve e meteu conversa com um casal, também, de emigrantes.  - Donde são? - Ah! Eu conheço. Conhecem fulano e sicrano? O casal disse que sim. A partir daqui, entre duas garfadas e um copo de vinho avidamente emborcado de uma só vez, começaram a desfilar hi

"O pássaro preto e a borboleta dourada"...

Há dias vi numa passadeira um pássaro preto meio desengonçado, via-se logo que era criança, a saltitar em direção a uma pequena folha dourada, com raios castanhos e brancos, listada de suaves manchas azuis. Aproximou-se cheio de curiosidade e deu-lhe uma bicada. A folha dourada estremeceu e levantou voo, muito assustada, era uma linda borboleta. O pássaro preto também se assustou, mas, mesmo assim, curioso, como são todas as crianças, foi-lhe no encalce, tentando abocanhá-la. A borboleta batia as asas como muita força, mas como não conseguia voar mais rápido, virou-se para o pássaro preto e perguntou-lhe: - Porque é que queres comer-me? - Tu falas? Quem és tu? - Sou uma borboleta. Não vês? - Também tens asas como eu. Disse o pássaro muito admirado. - Tenho, mas não sou um pássaro. - Gosto das tuas asas. São lindas. Tão coloridas. As minhas são todas pretas.  - Ainda não me respondeste. Porque é que tu queres comer-me? Disse a borboleta dourada listada de manchas azuis.

Palatucci...

Ler a vida de homens que durante o período nazi enobreceram a natureza humana é um lenitivo e uma fonte de esperança. Tamanhas atrocidades atormentaram a humanidade que depressa se esquece para se recordar novamente quando mergulha na destruição e na violência. Leio que Palatucci, um "justo entre as nações", afinal não merece este título, porque acabou de se provar que foi um colaboracionista nazi. Os italianos acordaram surpreendidos com esta situação.  Incomoda-me o fabrico em série de mártires, de beatos e de santos por parte do Vaticano. Este italiano, Palatucci, foi considerado mártir por João Paulo II e aguardava a beatificação. Os homens podem errar na apreciação da conduta de um semelhante, mas no caso da "santificação" ou "beatificação" como explicar tal conduta? Não sei qual foi o milagre produzido "através" de Palatucci, não sei, nem me interessa. O que me preocupa é a falta de controlo por parte do divino ao conceder privilégios

"Templos a pagar"...

Quando o cabelo começa a incomodar-me tenho de ir à tosquia. O pior é arranjar tempo, mas assim que consigo uns trocos vou a correr até à baixa. Hoje, tive a tarde livre, não estava programada, foi-me muito útil. Passeei, cortei o cabelo, dei voltas e mais voltas pela baixa, sempre debaixo de um vento nervoso e de um frio inquietante. Subi o Quebra-Costas, lentamente, em contraste com os meus tempos de estudante, e olhei para a Sé Velha. Vi que tinha a porta aberta. Pensei, há quanto tempo não entro naquele espaço? Há muito, talvez há demasiado, espero que não tenha sido aquando do batizado da minha filha do meio, porque, se foi, é uma vergonha. Como estava um pouco cansado, e nada me atormentava, exceto o vento desagradável, subi a escadaria com o propósito de passar uns minutos no templo. Gosto imenso de sentar e descansar em igrejas ou capelas. São excelentes fontes de inspiração. Ao entrar, do lado esquerdo, um papel colado na porta ou na cortina, não sei bem, ostentava o segui

"Negócio"....

Acompanho os acontecimentos no Brasil. Leio e fico de boca aberta quando a presidente, a senhora Dilma viaja para São Paulo para falar com o seu antecessor, Lula da Silva, para "compreender o que está a levar milhares de pessoas para a rua, a protestar contra a corrupção, a violência policial e as despesas milionárias com a construção de estádios para o Mundial de futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, quando o país tem tantas carências, na educação e na saúde". Será que não deu conta do que se passa no seu país? Como é que chegou à presidência? Não sabe que, entre outros "negócios", o futebol é dos maiores? E legal!  Gastar dinheiro "à tripa forra" é uma característica de muitos governos. A pretexto de investimentos e respetivos retornos (?) há quem ganhe dinheiro, os que constroem os estádios, os acessos e os que orbitam em redor da "bola". O dinheiro que está a ser investido nunca irá ter, nem de perto nem de longe, um retorno satis

Lágrimas...

Entrou com uma pele escura, não bronzeada pelo sol, talvez queimada ou suja pela vida. O seu ar sombrio, antipático mesmo, quase a raiar o repulsivo, incomodou-me. Formalmente perguntei-lhe, anda bem de saúde? Não. Disse numa voz demasiado baixa para que o entendesse. Repeti-lhe a pergunta. Respondeu-me no mesmo tom, mas agora olhando para mim e eu para ele. Mesmo em voz baixa os tremores do lábio deram-me a resposta, não, não andava bem de saúde. Continuei a olhá-lo em silêncio, à espera que me dissesse o que tinha. Nada, o tempo, escassos segundos, pareceram-me uma eternidade. Continuei a fixá-lo até que foi capaz de responder. Não ando bem desde há um ano, quando morreu o meu filho. Desviei o olhar para o papel, tentando fugir do que iria ouvir. Não fugi. Fui obrigado a perguntar perante tão dolorosa afirmação, foi um acidente? Novo silêncio de apenas alguns segundos, dois, três no máximo, mas que me pareceram, novamente, uma eternidade. Não. Suicidou-se. Um calafrio inesperado in

"Loucura"...

Conversas loucas alimentam e curam. Sabe bem ouvi-las, construí-las e desfazê-las logo que apareçam. São diferentes segundo a hora do dia. De manhã são alegres, divertidas, cheias de esperança, cheirosas, impregnadas de perfume e de sobras de amor. À hora do almoço começam a inquietar e a comprometer o girar de um sol esquivo e envergonhado incapaz de se mostrar e que chora num sono depressivo e perturbador. Ao final da tarde, as conversas, esfomeadas, despertam a vontade canina de morder e de esfrangalhar as notícias sem sabor e sem valor. Loucos  falam, ufanamente, das suas gloriosas loucuras, atos, palavras e conquistas sem sentido. É uma tristeza ter de ouvir tantas loucuras despropositadas, frias e provocadoras de ansiedade. Não gosto deste tipo de loucuras. São feias e duras. Fujo delas como o diabo da cruz. Eu não sou fã do diabo, eu gosto de uma cruz, a  minha, onde queria pregar uma bela e doce loucura erigida aos céus de braços abertos, abertos a todos os loucos sãos deste

Peixinho de olhos azuis...

A estreita ribeira de águas límpidas dava vida ao povoado, deixando-se passar vezes sem conta pelas pessoas que, no meio da ponte de pedra, paravam quase sempre para a olhar, mas sem pensar. Olhavam e viam pequenos cardumes de peixes pequeninos, brincalhões, muito traquinas, que se punham também a olhar para a ponte de pedra. O Horácio, quando passava a ponte, também olhava, mas pensava nos peixes. Como seria divertido se pudesse brincar com eles. O Horácio era um pescador, mas só pescava no extenso e profundo lago onde havia peixes grandes com olhos tristes. Ali, na ribeira não admitia nem nunca pensou em apanhá-los. Era um local sagrado. Um dia Horácio viu um pequeno peixe diferente. Tinha olhos azuis. Os peixes não têm olhos azuis. Pensou. A partir daí começou a ver que os outros, que andavam sempre juntos, em correrias loucas, não deviam gostar dele, empurravam-no e maltratavam-no. O peixe de olhos lindos e azuis passou a andar sozinho e muito triste. Horácio não sabia o que fa

Viver...

Viver é correr. Viver é fugir para a antecâmara do sofrimento anunciado e não esperado. Viver atormenta qualquer ser. Viver é tentar esquecer. Viver nem sempre faz sofrer. Viver é um faz de conta para ninguém ver.

Silêncio...

Sons humanos e inumanos ameaçaram afogar o meu espaço. Fugi. O sol empurrou-me para a colina solitária, deserta e desnudada de pretensões e de vaidade. Uma colina que dá prazer a quem sabe contemplá-la e desejá-la. Subi e bebi os seus verdes, intensos, sujos, brilhantes, desbotados e alegres. Um belo leque de tonalidades abriu-se em meu redor. Tonalidades que só o verde sabe desenhar numa colina solitária. Colina onde o sol penetra por estreitas e escorregadias frestas do vasto e dançante arvoredo. O seu silêncio repelia todos os sons envolventes da cidade, desviando-os, apagando-os, para se acariciar apenas com o baixo rufar dos seus ramos e folhas e com os cantos harmoniosos de anjos transformados em nervosas aves ciosas do seu espaço. Olharam-me com uma desconfiança avassaladora por ter invadido o seu céu. Olharam-me uma segunda vez e recomeçaram a cantar. Cantaram num silêncio suave, resplandecente de vida e cheio de paz. Quando é que regressas? Sorri.  Deixei, subitamente,

Nada...

Nada vejo, Nada sinto, Nada desejo. Apenas ouço, Ouço sons do nada. O nada que me espera. O nada que me deseja. Como é bom ser nada...

Vou em frente...

Passo à sua frente E vejo um olhar dormente. Sinto um doce calor A sair da sua alma quente. Não paro. Vou em frente...

Arte...

Olho. Vejo quadros. Olho. Vejo estatuetas. Olho. Vejo jarras. Olho. Vejo objetos. Olho. Vejo arte. Arte silenciosa. Arte doce. Arte balsâmica. Arte do amor. Amor. Sente-se no ar. Amor. Sente-se no pintar. Amor. Sente-se no moldar. Moldar a vida. Moldar o futuro. Futuro é arte. Arte do amor. O amor vive na arte...

Segundos...

Conto-os. Um a um. Simples. Batem um atrás do outro numa cadência sonolenta. Fazem sono. Apetece-me dormir. Os segundos dão tranquilidade. Ouço-os, mas não os conto. Ouço-os. Já os ouvi. Vezes sem conta. Às escuras. Ao luar. Ao acordar e ao deitar. Ouço-os. Sinto-os. Lembro-me ou quero lembrar-me da primeira vez que os ouvi. Foi na barriga da minha mãe. Era o pêndulo do seu coração. Ouço-os. São os mesmos segundos, iguais aos primeiros que ouvi. Ouço-os. Quero sentir os primeiros que ouvi. Não os ouço...

Depressa...

Despacha-te. Come depressa. Anda. Não vês que eu estou à tua espera? Corre, corre depressa se não o tempo desaparece tamanha é a sua pressa.  Eu corro, e fujo à pressa. Não há força que a meça. Sabe-me tão bem comer à pressa, para que o tempo corra sem pressa.  Depressa.  Já estou aqui, e aqui fico sem pressa, apenas à espera de que algo aconteça.  Que belo odor inunda o único espaço sem pressa. Odor de um sorriso vindo de anjos sem pressa. Depressa, mas sem pressa. Era tão bom que o mundo acabasse depressa.  Não, tens que esperar, e sem pressa. Está bem. Eu espero. Já não sinto pressa...

Manhã de junho...

As manhãs são todas diferentes. É o acordar que dita a sua imagem. É o momento de procurar algo. Pode não ser novo, pode não ter cheiro, pode não ter cor, pode não ter encanto, não importa, o que interessa é que seja capaz de despertar emoções afogando angústias e dar sentido a qualquer sentimento esquecido. Lágrimas de águas, sono de animais, sons de cantares avulso e silêncio dos espaços podem ser fontes de paz. Paz de um tempo fugaz... 

Guerra da Flandres...

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Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Exmas autoridades. Caros concidadãos e concidadãs. Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal. Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas. Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outr

Uma tarde de domingo...

As tardes de domingos são os períodos mais depressivos da semana. Só quando a noite cai é que consigo sentir uma certa tranquilidade ao anunciar o dia seguinte, dia de trabalho, dia de vida, dia de esperança. As tardes de domingo servem apenas para roubar a alegria e escorraçar a vontade de viver. Um tormento em contraste com o seu significado, o dia do senhor. O de hoje fugiu à rotina. Acabei numa sala a falar, a ouvir poesia, a ser impregnado com música e a reavivar um passado num local onde vivi, aprendi e moldei grande parte do meu caráter. Até a árvore defronte daquele espaço foi lembrada, era tão pequenina, recordo o seu nascimento e as inúmeras tertúlias juvenis sempre à espera da sua sombra. Hoje não vestiu a sombra, o dia não a deixou vestir-se. A tarde de domingo enobreceu-se de calor humano, de novos episódios e de alguns encantos. Enquanto ouvia, a memória voava incessantemente entre diversos períodos, ávida de encontros, de sensações, de falas, de calores, de sons, de vi

Entrevista a Sara Norte

Ontem, à noite, vi a entrevista feita por Fátima Campos Ferreira a Sara Norte, a jovem acabada de ser libertada após ter cumprida uma pena de prisão em Espanha por ter sido apanhada a traficar droga. Fiquei sensibilizado. A jovem contou as suas aventuras e desventuras, a sua ida às profundezas da miséria humana, a perda de dignidade e dos valores, e o ressuscitar para a vida. Ouvi com muita atenção. De facto é de uma beleza sem par saber que é possível vencer e voltar a ser alguém com vontade de viver e de amar, a si próprio e os outros. Um discurso aberto, sincero, enriquecedor, transmitindo esperança, confiança, denotando uma maturidade alcançada através de muita dor, de muitas asneiras e com muito sofrimento, a que não é alheio a morte da mãe, enquanto esteve presa e cujas cinzas irão permanecer no seu espírito para toda a vida.  Afinal, também é preciso elogiar a televisão e os seus profissionais quando fazem o que devem fazer, com qualidade e profundidade como foi este caso.
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Tenho que aprender a não fazer nada. Como, não sei bem, ainda não aprendi, mas deve haver maneiras. É tempo para isso, ou melhor, tenho de arranjar tempo para isso. Hoje, liberto dos afazeres, e sem compromissos de maior no imediato, Cronos deu-me um saco de tempo para o gastar, mas advertiu-me, não penses que és milionário, usa-o para desfrutar um pouco do teu Kairos. Está bem, vou ver o que posso fazer. Deixei corrê-lo entre os dedos. Ouvi conversas de mal dizer e de bem fazer, deliciosas, a ponto de desejar pintá-las com os meus dedos, mas se o fizesse esvaziava o meu tempo duma só vez. Eu não quis. Falei, vi, senti, pensei, desejei, apreciei, comentei, diverti e deliciei-me com pequeninas coisas. Registei o tempo em pequenas frações de lotaria não premiada, mas sempre prometedora de belas ilusões recompensadoras, indo ao futuro e viajando pelo passado. Depois, à socapa, misturei-os, e o presente, estonteado e confuso, pôs-se a rir com tal  felicidade  que até se esqueceu de qu

"Cenário do medo"...

Certos fenómenos ecológicos obrigam-nos a refletir sobre o nosso próprio comportamento.  Acabo de saber que os predadores não atuam no controlo das suas presas apenas pela eliminação, mas também através de outros meios, como o medo. Ou seja, a sua presença, cheiro ou quaisquer outras características obrigam-nas a um estado de alerta permanente através da referenciação de um mapa dito do medo, procurando locais de refúgio e evitando sempre que possível os locais de risco. A reintrodução de lobos num parque americano, para evitar os efeitos negativos nas árvores causados pelos veados, determinou uma redução do efetivo destes não devido exclusivamente à morte, mas a uma diminuição da reprodução em consequência dos efeitos biológicos nas suas hormonas, fruto de carências alimentares provocadas pela permanente vigília. Uma forma de intimidação com reflexos muito importantes na cascata trófica ecológica que não se fica apenas por esta relação, predador e presa, indo muito mais longe, até

Cemitério...

O calor aperta e a falta de tempo também. Procuro alguns minutos de tranquilidade e fujo para os habituais recantos, nem que para isso tenha comido à pressa, contrariando as recomendações que me são feitas amiúde. Que se lixe, controlo melhor uma azia do que a falta de uma emoção. Na primeira basta um simples medicamento, enquanto a segunda exige muita meditação. Passo a correr pelo velho local, onde antes tomava o segundo café, lia e espairecia o meu espírito debaixo de belas e frondosas palmeiras, entretendo-me entre duas páginas com algumas figuras típicas da terra, entretanto desaparecidas. Anda tudo em obras. Não há esplanada, não há nada, apenas pó, calor e barulho. Refugio-me no meu local habitual, onde vou tomar um segundo café, não para o corpo, mas para o espírito, para que acorde cheio de vitalidade. Eis que no meu trajeto, no espaço em obras, projeto a notícia segundo a qual foram descobertos vários túmulos naquele sítio, de várias épocas, com várias pessoas. Espreito e

Não tem...

- Anda bem de saúde? - Não. Nem por isso. Ando com vertigens. Tomo medicamentos, mas não fazem grande coisa. Face triste, postura um pouco tensa, feições a relembrar que em tempos terá sido bela, largos pneus induzidos pela idade ou por qualquer terapêutica. - O que é que lhe aconteceu? Teve algum episódio grave que a marcou? Olhou meio surpreendida e disse: - Sim. Foi ele. - Ele? O que é que lhe fez? - Ah, foi desde que as crianças nasceram. - Tem filhos? - Duas. - Que idades? - A mais velha 35 e a outra 33. - Mas o que é que ele lhe fez? - Tenho medo que me ponha na rua. - Na rua? Mas ele põe-na na rua? - As minhas filhas também lá trabalham, e eu não percebo, sou do quadro, mas não sou efetiva. Aqui fiquei confuso sobre o "ele". - "Ele" quem? - O engenheiro. - O engenheiro?! - Sim, o engenheiro da fábrica. Meteu-se na cabeça que vou para a rua. E depois o que é que vou fazer? Nem consigo dormir. - Não há de ser nada. Mas diga-me, há pouco f

Brisa...

Procuro sempre velhos lugares, o local onde nasci, locais onde me senti feliz, onde encontrei momentos de paz, onde o corpo ainda era leve, tão leve que nem sabia que existia e onde a alma não se importaria de adormecer para poder nascer. São quase sempre os mesmos. Ao procurá-los não faço outra coisa do que cumprir uma espécie de migração, a migração do tempo, que passa por mim fazendo-me acreditar que sou eu que viajo no espaço. Uma agradável ilusão. Olhos para as velhas árvores, hoje bem vestidas, verdes, viçosas, vaidosas, e recordo quando estão nuas, quando eram pequenas e quando as colocaram naquele sítio. Calcorreio os mesmos lugares, e sinto os mesmos sons, a mesma música, o mesmo silêncio e a delicada brisa que corre sem saber donde vem e para onde vai. Olho paras as ramagens, nem uma folha se move. Nem uma. Olho para a água da ribeira e o silêncio do ar transforma-a num espelho. Ouço apenas a queda de água, mais em baixo, com a mesma doçura de outrora, sempre a cantarolar,

Autocolante...

Delicio-me com pequeninas histórias, pessoais, as contadas por amigos, as que ouço indiscretamente, as que presenceio, enfim, é só parar, olhar e escutar, elas aparecem como o velho comboio fumarento a apitar ao fundo da linha. Às vezes registo-as, porque considero que podem ser úteis, a mim são com toda a certeza, dão-me prazer e ajudam-me a viver, mas pode ser que também sejam interessantes para outros, sobretudo para os mais pequeninos, que têm de aprender a voar, a ser autónomos como os pássaros. Mas como não são pássaros, têm de saber, também, o valor dos princípios e criar o seu código de honra de forma a ficarem bem com eles próprios, mais tarde, quando forem confrontados com as consequências das atividades humanas, nem sempre as melhores, nem sempre condignas e nem respeitadoras da condição humana. Uma batalha sem fim, uma derrota anunciada, que, apesar de tudo, merece ser travada. É bom, muito bom, sair da vida em paz, bem consigo próprio, mesmo que os seus exemplos desapa

Vazio...

A vida é uma fonte de tormentos. Quase que me convenço que deve ser a sua forma preferida de entretenimento, e só quando se acalma, durante breves sonos, é que consigo saborear alguns prazeres, os sonhos da vida. Quando está acordada é manhosa, sabida, fingida, atrai e trai, apunhala sem pudor e rouba o que resta do calor. Nunca se sabe quando vai adormecer. A danada deve sofrer de insónias. O melhor é estar atento, e assim que começar a dormitar, fujo, pé ante pé, para bem longe, onde vive a liberdade e o prazer. São sonhos breves, são os seus sonhos, sonhos da vida, sonhos que consigo roubar-lhe. Ela não gosta, nunca gostou que os mortais lhe roubassem os seus sonhos. Fica atormentada porque é invejosa e cruel. Vinga-se criando vazios na alma. Vazios que não se conseguem preencher com as obrigações, com as responsabilidades, com a criatividade, com a devoção, com o suor, com o trabalho ou com a indignação. São estranhos os vazios criados pela vida. Formas de tormento e de angústia.